sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Reflexões Fenomenológicas 2

 "Precisamos tomar cuidado com a Fenomenologia-Existencial, pois esta está invadindo os meios eletrônicos científicos, ocupando espaços, sendo uma abordagem que dá margem para abraçar a religião (a crítica)."

A Fenomenologia, enquanto método, se propõe a estudar o fenômeno (evento) de forma não lógica-objetiva, porém "subjetiva" pelas diversas variações do fenômeno (evento), destoando das pressuposições deterministas e objetivistas que tentam eliminar as interveniências. É um método filosófico rigoroso e contraditório que pretende por em pausa qualquer verdade através do questionamento. Se a lógica do fenômeno é que se A é A, então não pode "não ser A", tem-se que um fenômeno sendo fenômeno não pode ser outro se não ele mesmo. No entanto, o princípio da contradição está em como aquela verdade fenomenológica é pensada, ou seja; sua validade objetiva está no princípio do verdadeiro e falso (Missaggia, 2018; Evangelista, 2018). 

O método fenomenológico possui três etapas. 1) Epoché - suspensão da atitude natural e estranhamento metódico. 2) Redução Eidética - elimina elementos naturais e contingências para atingir a essência fenomenológica. 3) Redução Transcendental ou Subjetividade Transcendental - deixa para trás aspectos factuais, consciência empírica, manifestando a essência da subjetividade que dá sentido a toda realidade (Evangelista, 2016) .

A crítica de que a fenomenologia-existencial é âncora para a religião pode ser descartada quando compreende-se que a significação dada pela crítica se equivoca, justamente num quesito defendido pela fenomenologia: a redução do fenômeno, que deve suspender atitudes, crenças, teorias, preconceitos e conhecimento das coisas externas do mundo para focar na experiência em si (Santos, 2007; Evangelista, 2016).

Em relação a crítica feita contra a religião, esta pode ser compreendida e aceita na medida em que a mesma pretende indispor-se com a hegemonia judaico-cristã tendo, portanto; razão, já que a religião a serviço do estado, histórico culturalmente, ditou as regras da construção social nos últimos séculos. No entanto, faz-se necessário atentar para o fato de que a fenomenologia não é dogmática e não estuda a religião para outorgar a ela força ou lhe reiterar o seu poder político. A fenomenologia, portanto; não é uma doutrina de pensamento ou de dogma (Aranha, 1993; Chagas, 2017; Evangelista, 2016).

O que a fenomenologia estuda é o fenômeno mítico que como evento manifesto no objeto de estudo "homem" se repete de tempos em tempos sendo sempre fenômeno mítico, porém com diversas variações ou manifestações. Sendo, portanto; uma verdade filosófica não provisória, porque trata-se da consciência que se revela na experiência com significados reais e livres de teorias (Aranha, 1993; Chagas, 2017; Evangelista, 2016). 

O existencialismo, que toma por base o método fenomenológico, estuda o ser mítico e suas diferentes possibilidades de existir sendo mítico. Atualiza-se pela epoché que é a capacidade de por tudo em suspenso e sem julgamentos, portanto não existe uma única maneira ou verdade mítica, mas uma maneira própria de manifestar este ser aí. Logo a suspensão do juízo caracteriza-se pela não aceitação da negação de uma determinada proposta ou avaliação dos seres e das coisas (Evangelista, 2016).

É importante evocar que a Fenomenologia-Existencial pretende desvelar-se de teorias teológicas e rompe com explicações  como noção de pecado, já que somos o que somos. Possui categorias pré dispostas de ser no mundo, sendo honesto consigo. O poder ser é praticidade. Será que existem realmente problemas existenciais? Será que se o homem pudesse viver como quer ou deseja, teria problemas psicológicos? Não se trata de ser inconsequente, mas de um encantamento hermenêutico que abandona a ideia de "modo natural" ou forclusão (Evangelista, 2016). 

Esta abordagem abre mão de pensar o homem como um ser natural, porque dasein não é Teo e nem natural. Se feliz o homem não precisa viver como natureza, mas viver como ser pensante, ou seja; pode escolher ser o que deseja ser. Logo, para Heidegger (1927/2012) não existem verdades eternas. A existência é um processo ontológico, de investigação teórica do ser, ou seja; é relação do ser consigo enquanto extensão ampla, estando em oposição ao ôntico que faz referência a multiplicidade de entes existentes no real. É possibilidade (Heidegger, 1927/2012 apud Evangelista, 2016).

Para o materialismo histórico dialético o fenômeno mítico pode ser entendido como homem mítico ou consciência mítica, ou seja, assim como a partir de dada materialidade o homem por necessidade evoluiu na construção de materiais e artefatos, ele também por necessidade evoluiu na construção de seus mitos. A construção dos mitos, também foi processo criativo e também surgiu de uma necessidade de preservação e perpetuação de sua espécie. O homem não se difere de sua própria produção que é perpetuada pela memória cultural. Logo, os artefatos e criações míticas também são fruto do trabalho humano (Aranha, 1993; Moura, 2004; Chagas, 2017).

A questão primordial a ser discutida é como o sistema capitalista se apropriou dessas produções aliançando-as para expropriar o homem de sua atividade, impondo a ele uma única forma de pensar e agir. O sistema capitalista não ignorou a força do homem mítico, antes expropriou o homem de sua atividade produtiva e criativa na produção de seus mitos para elencar um único viés. Qualquer mito que fosse assumido como fonte de verdade seria hoje criticado, já que o problema não está na religiosidade em si, mas na imposição de uma única fonte religiosa (Aranha, 1993; Chagas, 2017). 

A polêmica está que o estado soube desta força e apropriou-se dela para assim controlar o homem pelo medo, já que o medo é exatamente a necessidade primeira que gerou o mito ou a consciência mítica. Foi pelo medo do desconhecido que a produção mítica se iniciou. Medo de seu único fim, a morte (teoria heideggeriana). Medo das tragédias, medo dos grandes eventos naturais. O medo está intrinsecamente ligado ao instinto de preservação individual e coletiva (Aranha, 1993; Chagas, 2017, Telles, 2005). 

Há os que defendem a não necessidade dos mitos na pós-modernidade, pois o homem já acumulou bastante conhecimento para superação dos mesmos, porém o homem moderno por ter sido expropriado de sua própria atividade produtiva carece ainda de necessidades intrínsecas apropriadas extrinsecamente, já que vive o caos de existir sem poder ser livremente. Se apega a ideologias, patoás, amuletos, rituais, manias, etc., presentificadas na materialidade, como uma proteção exterior e interior das agruras da vida moderna (Aranha, 1993, Chauí, 1996,  Chagas, 2017, Silva, 2004).

O homem mítico é atividade criativa e se não pode exercê-la adoece. Este homem é integral e negar a ele a sua condição mítica é roubar-lhe a garantia de livre produção. Assim como roubar-lhe a sua condição produtiva é roubar-lhe a garantia de usufruir daquilo que ele mesmo produziu  (Aranha, 1993, Chauí, 1996,  Chagas, 2017, Silva, 2004).

Considerações Finais

Finalmente, em defesa da fenomenologia e do existencialismo, se porventura algum pesquisador incauto se apropria do método e da abordagem para construir trabalhos acadêmicos enviesados pode-se afirmar que este está equivocado, justamente porque é uma epistemologia que pretende ser neutra, assim como todo estudo científico deve ser, embora se saiba que não existe neutralidade total. Portanto, não há julgamento de valor no estudo fenomenológico e existencial. Não há defesa de conceitos teológicos. Não pode ancorar doxa (achismos e opiniões). Está para observar e compreender o fenômeno como este é e como é significado e manifestado em determinada realidade, não sendo verdade absoluta a não ser para aquela realidade interpretativa, apenas para fins instrucionais, de movimento compreensivo da história de evolução e produção social, antropológica e cultural de dada sociedade ou comunidade (Silva, 2004, Chagas, 2017, Evangelista, 2016).


REFERÊNCIAS



ARANHA, M. L. A. Filosofando, introdução à filosofia. 2 Ed. São Paulo: Ed. Moderna, 1993.

CHAGAS, E. F. A crítica da religião como crítica da realidade social no pensamento de Karl Marx. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, p. 133-154, Out./Dez., 2017. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/trans/v40n4/0101-3173-trans-40-04-0133.pdf. Acesso 11 set. 2020.

CHAUÍ, M. Oficina de Filosofia. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1997 (vol.01).

EVANGELISTA, P. E. R. A. Psicologia Fenomenológica Existencial: a prática psicológica à luz de Heidegger. Curitiba: Juruá, 2016.

MISSAGGIA, J. A noção husserliana de mundo da vida (Lebenswelt). Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. 1, p. 191-208, Jan./Mar., 2018. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/trans/v41n1/0101-3173-trans-41-01-0191.pdf. Acesso em 11 set. 2020.

SILVA, E. M. Religião, Diversidade e Valores Culturais: conceitos teóricos e a educação para a Cidadania. Revista de Estudos da Religião. nº 2, 2004 / pp. 1-14. Disponível em https://www.pucsp.br/rever/rv2_2004/p_silva.pdf. Acesso 11 set. 2020.

SANTOS, J. H. O trabalho do negativo: ensaios sobre a Fenomenologia do espírito. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

TELLES, M. A. A morte em Homero. Tese de Mestrado em Teoria Literária (UnB - Universidade de Brasília). Novembro de 2005.




Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...