sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Setembro Amarelo: reflexões acerca do suicídio


O homem quando expropriado de sua produção criativa torna-se prisão. O suicídio, então; é possibilidade de um último ato produtivo que rompe com o distanciamento existente entre ser aí e ser dasein.

Pensar o suicídio de forma objetiva exige elaboração de campos históricos e de contextos culturais. Marx ao abordar o assunto faz relação com as questões propriamente relativas às condições do trabalho no sistema capitalista. O autor alega que são as formas de coexistir na sociedade do capital são determinantes para a  morte ou a decisão pela morte.

Para Marx, o homem quando desapropriado de sua produção e compulsoriamente jogado as condições de miserabilidade econômica pelo sistema monetário a que se submete, toma para si a possibilidade da desistência da vida. O fenômeno do suicídio sempre esteve presente ao longo da história nas mais variadas formas de  organização política, inclusive nas sociedades socialistas. Isto é algo que motiva reflexão.

É claro que esta razão econômica sempre perpassou e ainda perpassa o ideário social. No Brasil, o índice de suicídios tem crescido assustadoramente. A maior parte ocorre por motivações nem sempre específicas ou objetivadas. O que mais se ouve são proposições de possibilidades de ordem orgânica em adoecimento, dentre eles; a depressão, estados ansiógenos e psicóticos.

A questão levantada é por que há tantos estados adoecidos na sociedade ocidental? Como estes processos se dão? Há uma lista gigantesca a ser debatida. A fugacidade da vida, a chamada  superficialidade, as relações abstratas, a sociedade do consumo, os distanciamentos das relações interacionais, etc. A questão primordial refere-se a expropriação do ser de si e dos outros, mas como este processo de expropriação ocorre? Nesta questão, retomado em Marx as questões mais básicas, pode-se buscar explicações plausíveis a este fenômeno social.

O homem advém de suas produções e é nelas que o sentimento de utilidade se completa. Sejam nas produções de trabalho intelectual ou material, cuja força é exigida, os homens encontram o prazer produtivo. O prazer produtivo é dotado de energia vital que dá ao homem a realização, o prazer e o poder criativo. 

Nas bases mais primitivas, na luta pela sobrevivência, as necessidades são de preservação e manutenção de si e de outros. A luta e a fuga são ativos do medo e reinventados na produção de materiais protetivos. A produção humana, fruto do trabalho, é em si um bem maior dotado de poder e de domínio sobre outras espécies. A dominação, por si só, é; sem dúvida, liberdade. E é pela liberdade que o homem luta e labuta.

As invenções sociais, a medida que foram sendo necessárias, iniciaram os processos de castração da liberdade, pois a convivência coletiva exigiu que a liberdade de alguma forma fosse cerceada. A criação das regras foram a construção coletiva para estabelecer a comunicação e a interação necessárias para a boa convivência.

Todo este processo, em si, não é retrocesso, já que ele, pela própria distribuição da coletividade, se fez por um bem maior; a melhor convivência nos espaços sociais. A questão do suicídio não ocorre pelas formas rudimentais de comunicação ou apropriação espacial, mas pelas invasões territoriais dos espaços intrínsecos e individuais do existir humano. A transferência da volição primitiva pela conquista dos espaços enquanto domínio, quando transposta para o campo da individualidade intrínseca, talvez; seja a grande chave da inexistência e apatia existencial. Nestas condições o ser humano é tornado propriedade de outro e não de si. Eis aí a questão mais pungente na relação morte e vida.

Acostumado a existir para a produção criativa, o homem agora é expropriado de sua função primeira para acolher uma única produção universal, agora assumida como a mais importante verdade conhecida. A diminuição da autonomia criativa, seja na produção de suas ferramentas, sistemas, mitos e conhecimentos, causa apatia social. 

Geralmente, àqueles; acostumados e condicionados a expropriação, se reproduzem na imitação e permanência inconsciente de sua condição. Ao retomar o mito da caverna de Platão, pode-se repensar como a inércia presentifica a transmutalidade do mito em fascínio reduzido ao medo do desconhecido. Nestas condições alienantes da real face do mito, o homem não retoma a consciência e não sente e se não sente; se ressente.

Quando despertos de sua consciência, há nestes homens o desejo de reapropriação dos espaços antes invadidos e expropriados. Diante de toda a força existente na pressão comunitária, em forma organizada de políticas sociais, que subordinam os seres às autarquias, renascem as ideias maniqueístas que entendem a igualdade das origens que não necessitam de subordinações no campo individual do existir.

Estes homens, dotados da consciência crítica das relações em sociedade, são os inconformados. E assim, o sendo; despertam-se para a luta contra toda forma de opressão. Em Marx, pode-se perceber a anuência do consciente. É permitido pensar a sociedade em suas bases materiais. É permitido questionar estas bases. É inerente ao homem pensar sobre si e os outros e nos processos da coletividade.

Ser consciente é doloroso porque perceber as injustiças existentes, naquilo que constitui humanidades, é responsabilidade. E se é responsabilidade é culpa. E se é culpa é morte. E se é morte é luto. E se é luto é viver na obscuridade existencial. É morrer na existência.

A ideia do suicídio é um antagonismo da existência, pois se já não vivo na vida, confirmo na literalidade quando enfrento a morte. A finitude no existencialismo é o ponto crucial do existir. A morte é a maior proximidade do dasein, pois é ali que o eu real se manifesta, sem as brumas da inexistência. Portanto, suicidar-se é possibilidade de autonomia e resgate de si, mesmo que a obscuridade do pós-morte amedronte. No entanto, o suicida já experimentado da morte do ser nada teme. 

O medo é o princípio da vida e da luta pela sobrevivência. Moreno nos conta que suas experiências infantis lhe deram o estarte para a questão do ser. Em suas brincadeiras dramáticas, aonde rei e senhor ele era, certa feita ousou pular de sua cama e o resultado foi um machucado fenomenal. A partir deste memorial, entendeu um princípio básico, o de que o medo é o freio que nos estagna e nos coloca em vigília pela vida.

O ato de libertar-se implica em aceitar os limites da existência. O homem livre sabe que o seu poder criativo restringe-se a sua finitude. Eis aí o empasse final. O suicida transpassa o limite que o sufoca, incluso o de seu finito, na esperança de retomar o controle de seu poder criativo ou produtivo num ato final. O da tragédia humana.

Como numa peça de teatro, ele atua o último ato. Nada mais propício lembrar de Shakespeare e o ato final de Romeu e Julieta. A trágica estória mesmo que por acaso retoma o ato suicida como o apogeu e a vitória dos amantes. É na finitude da existência que há a libertação de toda opressão.

Entendendo que todos os seres são atores de sua existência e que são dotados de liberdade para escolher entre a vida e a morte, compreende-se o ato livre suicida como a expressão de todo o peso existencial que carrega. Não se pode condená-lo, pois muitos homens já pensaram em fazê-lo. 

A questão que se desvela não é a culpabilização de suicidas, mas a retomada da consciência suicida. 




Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...