domingo, 6 de fevereiro de 2022

Moïse Kabagambe: A barbárie de existir e o poder do Capital na mercadorização humana

 

Por Dâmaris Melgaço

Independentemente das investigações policiais tardias e todas as contrariedades discursivas dos criminosos que anseiam por tornar a vítima, Moïse Kabagambe, culpada, é preciso analisar criticamente as condições precárias das relações de trabalho, que as populações, imigrantes, tem sido expostas. 

A imigração acontece quando indivíduos de outros países fixam moradia em um país diferente do seu e migração ocorre entre estados de um mesmo país e dentro de um próprio estado, cuja condições laborais estão discordantemente situadas.

Moïse Kabagambe, um imigrante do Congo, trabalhador de vinte e quatro anos foi espancado com 39 pauladas até a morte por três homens que o imobilizaram covardemente. A versão da família aponta para uma denúncia sobre relações trabalhistas injustas entre funcionário e empregador.

 "A família do jovem disse que o espancamento ocorreu depois que Moïse Kabagembe insistiu de seu empregador receber um pagamento atrasado, tendo trabalhado dois dias no bar, na cidade litorânea do Rio de Janeiro" (Extra, 2021).

As versões dos criminosos acusados apontam para indisciplina, alcoolismo e conduta irregular da vítima. Retomam às necessidades sociais regrativas, historicamente utilizadas pelo sistema capitalista no seu discurso ideológico. No Brasil, amplamente divulgado pelo movimento higienista. 

No Capital, é exigido coerência e homogeneidade comportamental de todos os envolvidos no processo de produção para a manutenção do regime de acumulação. O caminho para tal é a criação das normas, hábitos, leis, regulamentação, etc. [modo de regulamentação], que garantam a unidade do processo (comportamento individual + esquema de reprodução).

Baseados nessa premissa, os assassinos impõem ao trabalhador "Moïse" a alcunha de desregrado, como se esta fosse uma justificativa plausível para o cometimento do crime. Reforçam com este discurso as associações negativas atribuídas as questões de raça, nacionalidade, escolaridade e conduta; a fim de minimizarem o crime e a pena.

Todas as incongruências existentes neste caso, desde a morte, a prisão dos suspeitos, a apreensão da gravação criminosa, o contato com o dono do quiosque, os crimes anteriores referidos aos suspeitos, os relatos de não socorro da polícia civil, o uso de um dos terrenos por policial, denotam que tornar a vítima criminosa é a estratégia para a manutenção de um sistema corrupto, provavelmente existente neste caso.

De qualquer forma, é importante ressaltar que a precisão cirúrgica na avaliação de ações como estas é necessária para dizimar ações inescrupulosas que tem na conduta humana reforçadores sociais e do discurso para justificar crimes hediondos.

Na hipótese de que "Moïse" estivesse embriagado e alterado, ainda assim nada justificaria a barbárie com que ele foi assassinado. 

Retomando a queixa inicial, razão do assassinato, esta, sim; plausível, precisamos refletir o quanto na história do desenvolvimento humano, a categoria trabalho foi tomando novas formas até a precariedade das relações sociais humanas.

Se antes a hierarquia nas sociedades pré-capitalistas tinham em sua base e cume um mestre produtor que trabalhava em conjunto com seu aprendiz até que este um dia chegasse a ser, também, um mestre-artesão, na sociedade capitalista raramente contemplar-se-á um operário que chegue a ser contra-mestre ou patrão, ou seja; na sociedade pré-capitalista vendia-se um produto e não o seu trabalho, numa relação linear.

No capital, a relação piramidal estabelecida é, em suma, a expropriação do trabalho e a transformação deste em uma mercadoria. E é por isso que é tão cruel. Essas relações se intensificaram ao longo do tempo culminando em relações de trabalho, muitas vezes, análogas a escravidão.

A mercadorização é um processo constante que toma o produto das mãos do trabalhador e o monetariza, retornando-o para o mercado do lucro, que intenciona retorná-lo às mãos de quem o produziu. Àquele que o produziu não usufrui de seu próprio produto, a não ser que possua moeda de valor capaz de comprá-lo de volta. Desta forma os que detém a moeda, também detém o produto e aquele que o produziu. 

Em simples palavras, o capitalista detém não só a força de trabalho, detém o trabalhador e o condiciona às suas regras. Pode-se falar, portanto, de mercadorização da vida humana, cujo homem é a própria mercadoria. Estas formas mais cruéis de relação trabalhista ganham corporeidade ao analisarmos o caso ocorrido com "Moïse". 

Estamos falando da personificação do trabalho precarizado, cada vez mais afastado das garantias sociais regidas pela legislação trabalhista. Estamos falando de condições análogas à escravidão, que impõe ao trabalhador o silêncio - ou você se cala, ou nós te calaremos - processo literalmente vivido pelo trabalhador "Moïse".


Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...