terça-feira, 1 de outubro de 2024

Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis

Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o saiba e ela também - a intenção - não a resolução de tal mistério. O título é tão óbvio que de tão simples, como ela mesma afirmava acerca de suas palavras, parece complexo. Suponho que para, em partes, compreender o conto de Clarice será necessário recuperar na memória cultural o seguinte dilema causal, popularmente difundido na vida comum humana - afinal, quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Portanto, é para mim óbvio que o conto perpassa a determinação do início da vida e do universo e também o paradoxo deste início representados pelo ovo e pela galinha. Esta ideia torna-se clara no primeiro parágrafo do seu conto, pois ela retoma uma pseudoancestralidade na qual esboça ao seu eu lírico o poder de ver o início, que de certa forma ela vê, mas não vê.

Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo (Lispector, 1975, l. 170).

Nota-se que Clarice retoma a ideia de um elo perdido, um mistério que não se desvenda. Confesso que ao ler este texto de Clarice fui tomada de uma grande emoção na qual o texto se incorporou a mim e a emoção aflorou. Foi tocante, profundo e vários trechos deste conto me levaram à ela e a mim, nessa vivência atemporal. Ao término da leitura, a carne tremia, o coração pesava, recompus-me a recompor-me.

Atente-se a profundidade de suas palavras quando reafirma a dúvida categórica se haveria pensamento implicado num primeiro momento de contato na ação de ver o ovo. Há uma dialética incrível entre a origem do conceito e sobre a origem das coisas. Tal mistério não se revela, embora esteja de alguma forma - não a contento, me parece - explicado na teoria da evolução. 

A partir dessa contradição disforme Clarice discorre o conto, apresentando outras contradições cotidianas e altamente filosóficas que se abrem em portais e nos deixam sem respostas e ávidos em buscá-las. Abre-se um elo infinito de possíveis e impossíveis sempre encostando na i/materialidade da vida. A todo tempo a autora conclama ilhar para olhar. Dentro da galinha, fora da galinha.

– Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe  (Lispector, 1975, l. 170). 

 O mistério da vida original é comparado a algo impossível de captar a olho nu, devido a sua velocidade temporal, acima da captação do tempo natural, por isso é "supervisível", pois está além do que os olhos podem capturar de imediato. "Como o mundo, o ovo é óbvio", mas não é, entende? Porque falta a visão completa da vida originária. 

É bastante interessante como Clarice expõe o princípio como uma página em branco que não pode ser lida, pois ao mesmo tempo que é algo, não é, mas pode ser reescrita na esperança de um novo. Como se a esperança pudesse nascer na folha branca. Ela disseca a historicidade do conceito originário que nasce no passado e que repousa sobre o presente nos ombros de quem vê e recebe a informação. Dessa maneira, ela desvela o mundo das aparências conceituais, pois não pode entender o conceito da origem e tão pouco fechar a questão, sem que com isso fira mortalmente a gênese de tudo. 

Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo ... – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa (Lispector, 1975, l. 170).

Para tudo, Clarice! Exclamo eu. Com o que existo decartiano - cogito ergo sum, ela retoma o ceticismo metodológico e o considera hipoteticamente essencial, pois esta consciência do existo aponta exatamente para o seu oposto limitado, o que eu não sei, o que eu não explico, o que eu não compreendo, o que eu não assimilo, o que me foge à vista. Por isso,

– Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome (Lispector, 1975, l. 170).

Clarice gentilmente contrapõe a cultura ocidental com a oriental e explicita a sua origem - desde a Era do Bronze - desenhada na história humana mais popularmente conhecida e encontrada nos registros de uma matriz cultural originária, a helênica e em detrimento a dos etruscos. Ela novamente põe em análise questionável o conceito originário da vida. "– Ovo por enquanto será sempre revolucionário".

Clarice parece questionar a real existência e a própria consciência do que existo, pois estar consciente de si mesmo pode levar a autodestruição. Como se o conhecimento profundo das coisas reativasse um potencial destrutivo em si mesmo. Mas não assim como aparece de imediato, pois a ideia de origem de tudo está dentro de cada um e também fora, no coletivo humano. 

A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de “galinha”. A vida interior da galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue (Lispector, 1975, l. 172).

 A análise da existência de um "eu" coloca a autora em suspensão, pois para ela o eu existo não é. Ela apresenta que a ideia conceitual de um eu existo prejudica a existência da origem, porém reflete que se assim não fosse este princípio estaria comprometido, porque caso o objeto portador da vida existente tivesse consciência de seu princípio originário, talvez não seria possível a manutenção segura da existência em si. Metaforicamente, ela parece afirmar que a vida originária habita o indivíduo que a possui, como simbiose da sua gênese, porém esta consciência é impactante demais para alguns.

Acho significativo como ela se apresenta como àquela que tem consciência de sua gênese, mas precisa distrair-se para não se autodestruir. "É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam"  (Lispector, 1975, l. 173).

Acho as seguintes palavras de Clarice o ponto nevrálgico do que se esconde e ancora a vida existente,

Nós, agentes disfarçado se distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, a um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é mais necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente (Lispector, 1975, l. 173).

Nota-se que na busca pela interioridade e exterioridade, Clarice apresenta a forma original dos que carregam dentro de si o princípio original, o qual ela define como amor, mas não um desses amores iludidos e romantizados na figura do ganho pessoal. Amor é in/exterioridade da dor, da perda da ilusão, da consciência do vazio, pois os que dele são portadores desconfiguram a vaidade e a honra. Estes maus agentes precisam desse amor dolorido para não retornarem a sua gênese autodestrutiva, é preciso sorver a vida originária devagarinho, em doses limitadas.

Clarice, se expõe como alguém consciente de uma missão que lhe é em partes desconhecida, mas que se junta a tantas outras com um propósito de busca e de apresentação de desvelos e mistérios. Ela sabe que para apresentar estas catarses, precisa da intersubjetividade, precisa ir no início da própria vida, escarafunchar o seu princípio, esse que lhe habita, que lhe reflete, para emergir em êxtase na apresentação das palavras na forma de um descoberto mistério da vida. Esta tarefa é dolorosa, pois escarafunchar a gênese das coisas exige mergulhar em autoconhecimento, acessar o que não se deseja, mas que por amor é extremamente necessário.

Não tive a pretensão de revelar todas as nuances deste conto, que a cada leitura nos toca de maneira diversa, mas espero de alguma forma ter traduzido um pouco deste sentido filosófico que pensa a vida e a existência do mundo das coisas. Obviamente, como afirmei no início, nem Clarice o fez. O importante é o movimento dinâmico dos agentes, portadores do embrião, que desejam compreender o sentido da vida original. A resposta não interessa tanto, pois ela fragilizaria a questão. Embora, a maioria de nós se empenhe em não refletir a gênese de si mesmo, há os que dela se aproximam em mergulhos in/externos profundos, retornando a superfície com novidades antes não reveladas. 


Fonte: Lispector, Clarice. O ovo e a galinha. (In) Lispector, Clarice. Todos os Contos. Prefácio e organização de Benjamim Moser. Rocco Digital, e-book online, p. 170-175. Disponível em: https://aulasdathaisunitau.com/wp-content/uploads/2023/08/todos-os-contos-clarice-lispector.pdf. 

   

 

Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...