quarta-feira, 30 de março de 2022

A venda de esposas de Thompson


A análise do texto de Thompson (1998) em seu capítulo "A venda de esposas" apresenta algumas percepções culturais muito interessantes. Talvez o texto proponha o afastar-se dos estereótipos para aproximar-se de um olhar antropológico, cujo objetivo é perceber a cultura a partir de seu lócus cultural e temporal. Afinal, é muito comum que aquele que entra em contato com um determinado tempo e lugar cultural acabe por significar o observado a partir de seu lócus e historicidade. É necessário afastar-se de preconceitos para mergulhar na gênese cultural daquele tempo e espaço. É muito comum que nós tentemos explicar sentimentos e emoções a partir de nós mesmos. Sobre a própria ideia construída neste tempo histórico.

Thompson (1998) apresenta a perspectiva de um ritual de venda feminina do Séc. XVIII - [1760-1880], que se fez presença naquele tempo histórico como algo aceitável entre os trabalhadores em contexto pré-industrial e ao mesmo tempo rejeitado pelas regras sociais representativas do estado ou sistema de governo muito atrelado a aspectos de ordem religiosa.

Aparentemente, em uma leitura corriqueira, poder-se-ia supor que se trataria de uma reafirmação da existência do patriarcado ou de uma sociedade machista. A princípio maculados pela cultura da sociedade burguesa poderíamos afirmar que se tratava de uma forma mais primitiva que antecipava a exploração da imagem feminina.

No entanto, para além das primeiras impressões, Thompson (1998) apresenta um quadro subversivo, cuja representação cultural era a própria movimentação de um coletivo social de cultura pré-capitalista para a conquista de direitos e não de perda. O autor faz uma análise deste tempo e de como o ritual emerge de uma necessidade cultural em contraposição as imposições do puritanismo burguês.

O retrato aparente de uma mulher sendo levada ao mercado público, amarrada por corda atada a sua cintura para ser vendida a outro homem em um leilão como mercadoria, parece remeter a diversas temáticas existentes neste tempo atual, Séc. XXI, entre eles as lutas e trajetórias feministas a favor do direito das mulheres como uma reparação histórica contra o patriarcado.

E realmente a princípio esta ação parece associar a venda de mulheres à venda de gado e outros animais em mercado público com todas as obrigações pertencentes as negociações daquele tempo - anúncio, venda, intercepção, pagamento de taxas, firma de contratos e entrega de mercadoria. E é fato que ao nos debruçarmos sobre essa narrativa acabemos por sentir uma certa repugnância.

Thompson (1998) não ignora estes fatos, mas busca na investigação minuciosa do estudo objetal outras evidências reveladores de aparatos culturais essenciais daquela temporalidade histórica. Por isso sua investigação busca relatos históricos não só de casos reais, bem como se debruça na literatura e outras fontes para perceber o caráter real daquele evento fenomênico. Não parece ser seu intento a defesa de alguma ideologia, mas de revelar costumes comuns daqueles indivíduos a seu tempo.

Há a percepção de uma certa ironia na forma como esse processo ocorria, no entanto há intencionalidade na ação daqueles indivíduos que começam a desvelar-se quando nos é apresentada a razão das vendas, já que estas surgem da necessidade de soluções para o divórcio. 

Era uma tradição inventada para resolver a existência de novos relacionamentos no pós-guerra e o colapso dos relacionamentos. Era também uma forma de garantir a sobrevivência destes indivíduos em uma cultura puritana que não aceitava o divórcio e impedia o livre exercício laboral para a sobrevivência do casal separado e reagrupado.

Além disso, também correspondia a uma forma de resolver as relações afetivas caracterizadas como adultério, pois muitas daquelas mulheres já se encontravam em novos relacionamentos e estavam totalmente em consentimento ao ato da venda. Muito raro que ocorresse sem a concordância feminina.

É importante lembrar que Thompson (1998) apresenta um contexto cultural de repressão as demonstrações livres de afeto. As estruturas sociais impulsionavam a necessidade deste ritual, afinal havia a existência e vigência de determinados comportamentos sexuais e normas conjugais. O ideal de pertença não era um processo livre, já que ambos, homem e mulher, careciam do ritual para garantir o direito de sobreviver socialmente naquela sociedade.

Naquela forma de constituir-se grupo familiar não havia algo que separasse as relações econômicas das pessoais. O namoro estava associado ao amor, mas a unidade familiar acabava por ser associada ao companheirismo, cuja função além de doméstica era ao mesmo tempo econômica. 

Havia um certo cerceamento do ato livre de amor, sendo estes associados as formas mais expúrias próprias da plebe ou dos inferiores de caráter imoral. É clara a influência da religião nesta concepção moralista, cujo resultado era a vigilância moral. Daí a necessidade de criar um ritual que propusesse a solução para os dramas amorosos daquela população trabalhadora.

O interessante deste texto é que Thompson (1998) apresenta a existência de uma cultura geral que, a princípio, dá conta de responder as necessidades básicas daquela sociedade, porém ao mesmo tempo para além de uma cultura hegemônica ele apresenta a existência de uma cultura revolucionária que parte dos próprios trabalhadores a partir de suas outras necessidades, sendo assim caracterizada como um movimento de contra cultura que parte da união dos coletivos humanos, que criam as suas próprias regras e burlam a regra social geral.


sábado, 12 de março de 2022

Barbárie institucionalizada, razão de toda guerra no filme "O Poço"

Por Dâmaris A C Melgaço

O filme, "O poço" nos apresenta uma perspectiva polarizada, de possibilidades restritas às determinações do funcionamento territorial. Os homens adentram a ele como elementares, mas nunca são permanentes. Eles viajam pelas estruturas do sistema funcional do poço como escravos. A depender de sua habilidade estratégica dentro da prisão, sobem ou descem às camadas de territórios existenciais.

No entanto, o poço não valida suas próprias leis e a priori garante uma certa preferência de indivíduos em detrimento a outros, que embora possuam habilidades estratégicas são excluídos de alguns territórios. Há no poço os inconformados, os revoltados e os altruístas. Estes por sua vez caminham entre territórios, a fim de destruir as algemas do sistema funcional do poço. 

Todos os envolvidos buscam sobreviver, alguns individualmente, outros coletivamente, porém ao ignorar os condicionamentos do poço eles sofrem as consequências da ajuda não solicitada. 

Percebe-se nesta base funcional que a barbárie é acionada e quanto menor a escassez maior a barbárie, porém a barbárie vista apenas desta forma parece maquiar a barbárie existente dentro da forma existencial do poço, já que ela constitui-se a premissa básica daquele sistema funcional. O interessante é que há uma tentativa de justificar a violência existente dentro daquele território existencial, como se o rigor da barbárie física pudesse superar a barbárie funcional.

Em nome do bem comum, vale o terror, vale a espada, vale a morte do outro. Esquecem que todos estão no poço, aprisionados ao sistema funcional daquele território existencial. Desde as camadas mais altas, cuja provisão garante a sobrevivência, às mais baixas, cuja escassez garante a barbárie física. Parecem esquecer que são, em suma; indivíduos existentes naquela prisão, cuja cegueira das suas mentes garante o funcionamento do poço.  

No poço não há janelas e não há quem pense criá-las. Todos só pensam nas camadas, todos pelejam nas estruturas, todos só vêem o que desejam ver através de suas lentes condicionadas. Não há um louco para romper as lentes. Não há um louco para criar janelas. Todos condicionados a sua gênese animal, evocando a barbárie física contra um fosso desigual que eles mesmos criaram.

As lutas por territórios são e continuam sendo as rendas do sistema que tem sua gênese na necessidade instintual humana de ser o líder do bando e deter o poder. As guerras são a expressão dessa gênese. A luta pela imposição de um novo sistema funcional, a meu ver; é tão alienante quanto este, cuja mão de ferro regerá as vidas. De escravos a escravos melhor remunerados.

Enquanto a humanidade insistir na mercadorização da existência e da natureza, pela ostentação da moeda e do lucro, a vida será somente uma possibilidade: barbárie. E sinto muito informar que boas intenções não salvam o sistema e nem os que dele fazem parte. Não salvam os detentores do poder, porque à eles nada falta, nem tão pouco os que nada têm, porque estes precisam sobreviver e encontrar formas mecânicas de fazê-lo.





Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...