sábado, 25 de março de 2023

Ressignificar pra que?


Ilustração:  Uma orgia de manequins no cemitério. Manequim, ensaio fotográfico de Mars Lander, 2013


Por Dâmaris A C Melgaço

Faz tempo que eu não passo por aqui, ao passo que se passo é só para contemplar a obra de minhas mãos como uma boa mulher neurotípica. Um castelinho construído, que de vez em quando se desmonta e se reconstrói, já que não consegue ficar parado em um único pilar. Essa efervescente sede de saber, que incômoda me aflige e me coloca em cheque e; às vezes, em tensão. De toda forma, essa inquietação me obriga a ressignificar o pensamento, a extirpar as muletas, a rever as coisas em ângulos diversos. 

Há exatas horas em que eu me sinto totalmente desprovida de argumentações e outras em que eu me encho de coragem para enfrentar o dilema de dar uma resposta. No entanto, sempre me pergunto se as respostas são realmente necessárias. Afinal, elas se dão dentro da dinâmica social e suas engrenagens.

O último ano foi, sem dúvida - para mim - um momento de grande crescimento humano integral, no entanto; ao mesmo tempo, veio com algumas retaliações da vida cotidiana, das culpas sociais e das desculpas. As engrenagens me colocaram entre duas situações extremamente dolorosas e que envolvem a minha vida pessoal, que reverbera a social.

Como estudiosa da "inclusão" tenho me debatido com as exclusões vívidas e transparentes da cultura social capitalista, mas não como outrora - à distância, mas, aqui e agora; bem pertinho. E quando essas dinâmicas atingem nossos familiares a gente fica sem chão. Sim, a dor da experiência nos humaniza ainda mais. 

Se antes, eu percebia as exclusões e optava por não participar delas, agora eu vivo a exclusão. Óbvio, que a questão da exclusão existe sempre na vida social, principalmente na vida cotidiana de uma sociedade, cuja estrutura econômica é baseada no capital.  Não se trata de negar isso, mas de vivenciar mais de perto a dor do excluído e o martírio da vida marginal.

As respostas que a vida material nos dão são as melhores, porque elas nos ensinam a crescer. Estou experimentando de perto duas dores: a dor da exclusão da diferença e do ritmo inusual do aprendizado e a dor do racismo estrutural.

Eu sou bisneta de um homem negro, meu avô era um homem pardo, minhas tias avós mulheres de "cabelo ruim" - diziam os brancos. Minha mãe nasceu no interior do Rio Grande do Sul. Ela é branca, no entanto; para aquele lugar em 1957 (mil novecentos e cinquenta e sete), ela e sua família eram os pretos e sofreram todas as humilhações possíveis e cabíveis à sua época. 

Minha mãe gostava de estudar, mas parou os estudos na quinta série ginasial. Foi expulsa da escola acusada de roubo. Mais tarde, descobriram a verdade. Nunca pediram perdão. Essas histórias eu sempre escutei, mas não posso dizer que eu vivi a exclusão pela cor da pele, pois eu também sou branca e em outro contexto.

O que estou querendo dizer é que sempre ouvi histórias, mas nunca as vivi literalmente. A vida que vivi foi a vida do pobre, mas daquele que ainda tem o que comer ou vestir. Eu não posso dizer que eu sei o que é passar fome ou morar na rua. Minha mãe, sim.  

Recentemente, vivi uma experiência dolorosa com uma pessoa querida. E diante dos relatos que ouvi, me pus em lágrimas e acho que ainda estou em recuperação. A resposta que a vida nos dá, meu leitor, é a confirmação de que racismo estrutural, exploração do trabalhador, expropriação da dignidade e necessidade de sobrevivência sempre existiram e ainda existem no Brasil e são processos muito cruéis.

Quando você decide estar ao lado do oprimido, sendo consciente de sua própria condição - ora como oprimido, ora como opressor - compreende que este é um caminho sem volta. Que as estruturas sociais desta sociedade são cruéis e desumanas. Que elas nos destroem outorgando-nos toda a culpa pela  miserabilidade que nos é imputada.

É uma chave que vira a concepção de mundo da gente e nos impulsiona a rejeitar com toda a veemência os processos da in/exclusão, entendendo que a decadência de uma sociedade - dialeticamente - é ao mesmo tempo ruim e benéfica, já que a degradação de um sistema pode ser o recomeço de um novo modo de existir em sociedade e que o xeque-mate da consciência embora implacável, é muito libertador.

 Finalizo aqui com este poema reflexivo.

O    A B R I G O   N O T U R N O

Soube que em Nova Iorque
Na esquina da Rua 26 com a Broadway
Todas as noites do inverno há um homem
Que arranja abrigo noturno para os que ali não têm teto
Fazendo pedidos aos passantes.

O mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos
Mas alguns homens têm um abrigo noturno
Por uma noite o vento é mantido longe deles
A neve que cairia sobre eles cai na calçada
Não ponha de lado o livro, você que me lê.
(...)
A neve que cairia sobre eles cai na calçada
Mas o mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos.
(BRECHT, 1986, p. 90)

Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...