quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

DOIS FILMES, DOIS SILÊNCIOS, UMA NECESSIDADE



O filme A Música e o Silêncio e Filhos do Silêncio abordam pontos convergentes e expõem uma necessidade: o mergulho do ouvinte ao silêncio como quebra de paradigmas e transformação das culturas para uma nova cultura: “A cultura surda”. Em A Música e o Silêncio temos a protagonista Lara que vive o drama de ser filha de pais surdos. Já em Filhos do Silêncio a protagonista é surda e vive o drama de ter pais ouvintes. As convergências das tramas apresentam-se da seguinte maneira:



Observamos que ambos protagonistas e antagonistas vivem o drama da surdez ou do mundo cultural que não está habituado com as diferenças. Existem em ambas as personagens o desejo da inclusão, porém não realizado de forma real.  Isso ocorre porque muitas barreiras e desvios se levantam contra a inserção cidadã das pessoas surdas no mundo cultural e social dominante.   Algumas barreiras são observadas nas personagens ouvintes que, embora bem intencionadas, não compreendem o mundo da pessoa surda. Ainda que James seja um professor diferenciado ele carrega em si a ideia de que é preciso trazer a pessoa com deficiência auditiva para o mundo dito “normal”. O seu trabalho foca a patologia e não o sujeito, então ele trata a amenização da patologia para a adequação do surdo ao padrão estabelecido pela sociedade e nesse contexto entendido como normal. Essa barreira sócio-cultural lhe impede de mergulhar na pessoa de Sarah e assim compreender que ela não precisaria se adequar, mas ter seu espaço no mundo social assegurado por meio de leis que viabilizassem o acesso da mesma na sociedade. Tendo assim seus direitos garantidos para o exercício pleno de sua cidadania. Já Lara embora conheça de perto o drama da surdez e todas as barreiras enfrentadas por seus pais para ser pessoa cidadã no mundo, apresenta barreiras e desvios na relação parental que estabelece com eles. Ela vive a vida de ouvinte, assume as responsabilidades de
traduzir o mundo para seus pais, porém não consegue se desvincular da imposição cultural das normas que regem o mundo social “normal” e que não se adequa e nem proporciona vias de acesso reais para o Deficiente Auditivo. Diante dessas realidades embora eles sejam bem intencionados não conseguiram eliminar os estereótipos e representações sociais que estão impregnados na cultura da comunidade social e que ao mesmo tempo está intrínseca neles próprios. Os dois filmes possuem uma diferença de dez anos entre a primeira produção e a segunda. A música e o Silêncio são datados de 1996 e Filhos do Silêncio de 1986. Provavelmente ambos os filmes apresentam as realidades vigentes da cultura da época em que foram produzidos, ou seja, ainda estavam sob a égide da integração pelos direitos humanos. Sabemos que a ideia da inclusão é recente e que as lutas sociais internacionais pela inclusão como direito para todos são datadas de 1990 a 2009:  1. 1990 - Declarações Mundial de Educação para Todos; 2. 1994 – Declaração de Salamanca; 3. 1999 – Convenção da Guatemala; 4. 2009 – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O filme mais próximo dessa ideia é A música e o Silêncio e percebemos reflexos desses movimentos na trama pela presença do namorado de Lara que é professor e trabalha diretamente com alunos surdos. Ele declara que existem faculdades e atendimento especial para alunos com deficiência auditiva. Uma de suas frases é: “Os USA estão vinte anos luz de nós em termos de inclusão social”, mas é necessário notar que o filme é produzido seis anos após a Declaração mundial de Educação para Todos. Já o filme Filhos do Silêncio foi produzido ainda na época em que a ideia geral era pautada na educação integradora, aliás, ideia vigente no Brasil de 1961 até 1987.  Vemos essa ideia refletida em nossas LDBs (Leis de Diretrizes e Bases): 1. 1961 – Lei Nº 4.024: “A Educação de excepcionais, deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema geral de Educação, a fim de integrá-los na comunidade.” 2. 1971 – Lei Nº 5.692: “deficiências físicas ou mentais, os que se encontrem em atraso considerável quanto à idade regular de matrícula e os superdotados deverão receber tratamento especial”. No Brasil, é a partir de 1988 no período pós-constituinte que a educação de pessoas com deficiência é vista como uma condição que vai além de integração.
1988 – Constituição Federal do Brasil: “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”. Nos artigos 205 e 206, afirma-se, respectivamente, “a Educação como um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho” e “a igualdade de condições de acesso e permanência na escola”.  Filhos do Silêncio mostra claramente a ideia da integração, ou seja, da presença de pessoas com deficiência no meio social, porém é bem claro que esses precisam se adequar ao sistema e as normas sociais. O uso da imposição da oralidade como forma primeira de comunicação fica evidente.  Já em A música e o Silêncio a Linguagem de Sinais aparece como a maneira mais comum de comunicação entre surdos e ouvintes.




As personagens principais divergem porque vivem realidades distintas. Seus mundos são distintos. Enquanto uma ouve a outra não ouve. Isso nos leva a pensar que as realidades distintas enquanto vivências estabelecem constituições distintas de “eu no mundo”. A concepção que fazemos de nós mesmos são construídas nessas relações mediatórias familiares e sociais, ou seja, absorvemos o mundo e construímos nossa existência por essas vivências. Ambas as personagens apresentam suas visões a partir de suas vivências reais com o outro indivíduo. Ambas desejam autonomia, respeito, direito de ser “eu” no mundo. Lutam por reconhecimento, por cidadania plena, pelo direito de ir e vir. De trabalhar, de amar, de constituir família. Independentemente de sua condição física (filogenética) e de sua ontogênese ambas desejam ser aceitas.
Lara deseja ser aceita pelo seu pai e Sarah por James (seu namorido). O único caminho apresentado em ambas as produções é pela aceitação da diferença não como uma barreira ou desvio, mas como uma ponte dialética para o novo que se apresenta. Relação essa que não é divergente, embora pareça.


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Conheça o histórico da legislação sobre inclusão. Disponível em: <http://www.todospelaeducacao.org.br/reportagens-tpe/31129/conheca-o-historico-dalegislacao-sobre-inclusao/>, Acesso em 02 nov. 2017.

Children of a Lesser God – Filhos do Silêncio (filme). Diretora: Randa Haines, Elenco: Marlee Matlin, William Hurt, Piper Laurie. EUA: 1986. 1 bobina cinematográfica (118 min). son., color., 35mm.

Jenseits der Stille – A Música e o Silêncio (filme). Diretora: Caroline Link, Elenco: Sylvie Testud, Howie Seago. Alemanha: 1996. 1 bobina cinematográfica (109 min). son., color., 35mm.

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