sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A questão agrária e as suas implicações na existência indígena Yanomami


Por Dâmaris Alcídia da Costa Melgaço

De acordo com a denúncia de Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye'kwana (Condisi-YY), em vídeo divulgado em rede social, Instagram, no dia 25 de abril de 2022, uma mulher e uma criança de três anos haviam sido levados por garimpeiros e a criança estaria na posse dos agressores no rio Uraricoera. A denúncia também acusou violência sexual contra uma adolescente de 12 anos da comunidade Arakaça, em Waikás (Roraima), que ocasionou a sua morte[1]. O mesmo delator postou em 13 de abril de 2022, um vídeo de denúncia contra o então senador Messias de Jesus, cuja declaração explicitava seu total apoio ao garimpo ilegal e a mineração em terras indígenas, ignorando os conflitos existentes entre índios e garimpeiros que; constantemente, culminam na morte de pessoas indígenas[2].

Em nota[3] divulgada pelo Condisi-YY, a Polícia Federal e órgãos públicos responsáveis por investigar a situação compareceram ao local da denúncia para averiguação. Relataram ter encontrado a aldeia vazia e em chamas. Alguns membros da população indígena compareceram ao local, quarenta minutos depois. Eles relataram que não poderiam falar sobre o ocorrido e que haviam recebido suborno pelo silêncio. Aparentemente, a ocultação das informações impediu maiores investigações e dificultou os trabalhos da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Conforme a nota e vídeo divulgado na rede social Twitter[4], quando alguém querido da comunidade morre, como tradição, os índios Yanomamis queimam a aldeia e abandonam a comunidade.

Diante desses relatos levantam-se questões importantes e que devem ser discutidas no atual cenário político. Uma delas é: qual a relação entre as questões agrárias e as invasões de territórios indígenas para a exploração ilegal de minérios na forma do garimpo? Para compreender esta questão, em primeiro lugar, necessita-se desvelar as dimensões sociopolíticas imbricadas na prática política e econômica herdadas do imperialismo[5], na nova república brasileira.

Da colônia e república oligárquica, pode-se abstrair “a passagem do entesouramento e da propensão a economizar pré-capitalistas para a acumulação capitalista propriamente dita (processo econômico que é, também, um processo psicossocial). ” (FLORESTAN, 2006, p. 237). O autor explica que para compreender a passagem do período colonial para o período republicano - fase embrionária do capitalismo brasileiro, é preciso estudar os atores sociais deste período, bem como os papéis econômicos por eles representados. Sem a análise destas personas não se pode entender nada a respeito da Revolução Burguesa. “É no seu enlace que se elevam ao primeiro plano tanto a “força selvagem” quanto a “debilidade crônica” da Revolução Burguesa sob o capitalismo dependente. ” (FLORESTAN, 2006, p. 237).

A teoria do capitalismo dependente expõe a fragilidade da composição social brasileira no que se refere as instituições políticas que reverberaram no econômico e principalmente no social. Florestan (2006) expõe que as características do capitalismo dependente, marcadas pela selvageria e a debilidade agravada surgem junto com ele e podem ser notadas desde o início, mesmo antes de um aprofundamento maior das relações de produção, das relações entre classes sociais e dos embates entre a burguesia e os trabalhadores, pois elas são forças contrárias que agem dentro do percurso histórico, dando as condições para captar o problema agravado, que não faz parte do capitalismo de forma geral, mas é intrínseco a este tipo de capitalismo.

Pensar a história evolutiva das políticas sociais e econômicas do capitalismo dependente em vigência no Brasil dá as condições necessárias para pensar as razões pelas quais a nação parece girar em círculos repetitivos que aparecem nas estruturas sociais que acompanham a evolução deste tipo de capitalismo. Florestan (2006) explica que por não haver uma quebra pactual com o passado, condições semelhantes tendem a ressurgir em novos quadros históricos, cobrando dívidas estruturais que negam ou neutralizam a história, exigindo novas formas de conciliação.

O Brasil é um país que dada sua base colonial não possuía uma burguesia em destaque em oposição à aristocracia agrária. Por ser um país do engenho, da fazenda e da estância pré-capitalista, a nação contou com o engajamento da aristocracia agrária no centro da transformação capitalista. Logo, percebido o surgimento do mercado e das novas relações produtivas, os jogos de interesses se voltaram a conciliação do poder colonial e neocolonial que garantiam o acúmulo monetário pré-capitalista e o maior lucro, próprio do capitalismo moderno. Houve, então a junção do antigo e do moderno, “a antiga aristocracia comercial com seus desdobramentos no “mundo de negócios” e as elites dos emigrantes com seus descendentes, prevalecendo, no conjunto, a lógica da dominação burguesa dos grupos oligárquicos dominantes. ” (FERNANDES, 2006, p. 247).

Salienta-se como questão problematizadora fundamental, quando se investiga a história social da revolução burguesa brasileira, a crise existente no poder da elite como resultado da passagem do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista. Embora o capitalismo monopolista já existisse de forma incubada no Brasil, ele ocorreu subitamente com a chegada das indústrias de capital estrangeiro nos anos 50. O país sofreu pressão externa, oriundas do capitalismo mundial, que ameaçaram internamente muitos interesses econômicos, desequilibrando a base setor do poder burguês. Para manter os investimentos externos era necessário garantir a segurança nacional para proteção do capital estrangeiro dentro do país. Isso gerou concomitantemente outras duas pressões internas, uma advinda da classe trabalhadora e da população em geral e outra do próprio Estado. Como medidas de defesa contra as três pressões dessa transição, o poder burguês reagiu radicalmente, alterando a atividade burguesa em sua forma e função (FERNANDES, 2006).
A burguesia ganhava, assim, as condições mais vantajosas possíveis (em vista da situação interna): 1º) para estabelecer uma associação mais íntima com o capitalismo financeiro internacional; 2º) para reprimir, pela violência ou pela intimidação, qualquer ameaça operária ou popular de subversão da ordem (mesmo como uma “revolução democrático-burguesa”); 3º) para transformar o Estado em instrumento exclusivo do poder burguês, tanto no plano econômico quanto nos planos social e político (FERNANDES, 2006, p. 255).
A partir do conhecimento das forças sociais que se estabeleceram no país e como elas influenciaram a história das forças políticas solidificadas nas mãos de grupos dominantes, que impuseram e; ainda impõem, a sua vontade sobre a classe trabalhadora, sempre a serviço dos seus próprios interesses e dos interesses internacionais, pode-se compreender o atual cenário político-social de base ultraliberal que recai sobre as minorias psicológicas étnicas que dão a reflexão do presente texto. A questão agrária que se correlaciona com a questão indígena perpassa justamente as questões econômicas relativas as invasões de terras indígenas demarcadas e sob proteção estatal, por uma exacerbada exploração da terra e de seus frutos, através do desmatamento e extração de minérios e garimpo ilegais.

Importante, refletir que há no cotidiano das nações subdesenvolvidas uma grande pressão do capital estrangeiro sobre a agricultura, cujo domínio das estatais controlam a produção agrícola, potencializando a violência do capital e sua extensão sobre os trabalhadores da cidade e do campo. Especificamente, no Brasil, isso se dá de diferentes maneiras, com aparência de contradição, mas que possui uma mesma lógica, por assim dizer, pôr para fora o trabalhador do campo a fim de, sob promessa, incluí-lo na sociedade moderna e tecnológica - na indústria do agronegócio que, no entanto, o escravizam. Esta ofensiva do capital no campo expõe com mais clareza as contraposições existentes no sistema capitalista e que são, também, contraposições sociais e ambientais, diretamente imbricadas no futuro da raça humana e de seu habitat. Tanto que a discussão que tem sido feita sobre a crise do alimento é simbólica na exposição da relação entre o rural e o urbano (CALDART, 2009).

Nota-se que o agronegócio tem sido cada vez mais enfático na consolidação do capital em sua política econômica nas áreas campesinas, promovendo dentro da sociedade uma guerra ideológica. Pregam que o fim dos latifúndios virá pelo agronegócio e não pela reforma agrária ou pela luta dos movimentos sociais, considerados atrasados. A promessa do agronegócio é a resolução da questão da produção de alimentos e do aumento das divisas do país. Imbuídos em promover os intentos do agronegócio, os donos de empresa têm se lançado num ataque intensivo contra os movimentos sociais, acusando-os de criminosos, pois precisam de maiores oportunidades exploratórias e embora os movimentos de luta da classe trabalhadora estejam enfraquecidos, eles ainda representam a resistência aos modos de produção capitalista. A preocupação deles é o fomento da luta pela resistência e a adesão de alguns setores sociais aos movimentos, quando se derem conta dos imensos danos causados, por ações exploratórias, ao meio ambiente. O perigo estaria que; ao tomarem consciência dos danos ambientais; estes setores se pusessem contra a lógica de produção alimentícia do agronegócio, porém maior perigo reside no aprofundamento da luta contra as contradições do paradigma vigente evidenciados pela crise do capital (CALDART, 2009).

Vê-se o quanto estas constatações implicam diretamente na sobrevivência e existência preservada da população indígena, que embora esteja legalmente protegida por leis específicas, sofre com a ganância e a inflexível cultura do capital brasileiro, herdada de duas fontes, uma tradicional oriunda da revolução industrial e da construção da hegemonia francesa e americana e outra, própria da história da revolução burguesa brasileira herdada do colonialismo para a manutenção de interesses pessoais de grupos dominantes e sob a égide do imperialismo. Como afirmara Florestan (2006) um capitalismo dependente e selvagem, cujo braço forte se impõe duramente sobre os trabalhadores e se abre como uma madre aos estrangeiros numa política, obviamente, interesseira e não “desinteressada”, como proclamara Gramsci sobre a escola unitária (SEMERARO, 2021).

O processo da construção social existente na história se contrapõe as práticas culturais hegemônicas, revelando os apagamentos da diferença cultural dentro das sociedades, constituídas pela elevação do homem disciplinado ao pódio da moralidade ideal. Se antes a espiritualidade e a mística eram o centro, com a evolução das ciências, o homem passou pelo ideário de centralidade. No entanto, quanto mais avançaram as ciências, este ser social foi colocado à margem de sua centralidade. Para garantir o seu status quo, amparado nas pseudociências oriundas do espaço real da ciência, o homem na ideologia europeia ousou apropriar-se da centralidade modelar, dando aos homens uma superioridade a partir de sua branquitude - homem branco, machista, judaico-cristão, eurocêntrico e monocultural (VEIGA-NETO, 2003).

Criou-se a ideia de uma cultura erudita capaz de subjugar as outras culturas. Tentativa máxima da massificação cultural. Dessa forma tem-se uma cultura que se constitui elemento para a dominação e exploração de outros povos (VEIGA-NETO, 2003). É importante conversar sobre isso, já que, atualmente, vivencia-se na sociedade brasileira as reverberações dessa ideologia de uma única identidade ou de um homem ideal. Os Yanomamis e o seu apagamento na Amazônia, subjugados a cultura exploratória dos garimpos, fomentado pela política nacional que se ampara nos ideais do imperialismo alemão estão gritantes aos olhos de todos.

A máxima da monocultura[6] capitalista que se ampara no conceito de que a universalidade não se dá nos detalhes, na imediaticidade da experiência e sim a nível de princípios gerais, generalizações, precisa urgentemente ser questionada. Os movimentos políticos de defesa do multiculturalismo são essenciais para sairmos das aparências imediatas e revelar o todo que se esconde dentro da necessidade de uma monocultura, que é ao mesmo tempo essencial para a manutenção de um sistema político e econômico que rege as relações do capital (VEIGA-NETO, 2003).

O que ocorre na imediaticidade observada na experiência Yanomami, de ser dizimado em sua aldeia, é a ponta do iceberg revelador de processos antigos realizados em outro tempo, mas que se materializam no aqui agora, nesta sociedade dita moderna, evoluída e detentora de alta cultura. Uma segunda pergunta é, o que dá bases para que atos como esses se perpetuem nesta sociedade? Têm-se por hipótese que seja a massificação das ideias por instâncias maiores que impõem dentro das culturas a necessidade de apagar a heterogeneidade na busca pela homogeneidade, sob a legitimação da monocultura.

Paulo Freire [1921-1997] é um expoente que surge em um momento histórico específico da história brasileira e que se coloca no enfrentamento direto da estrutura social do capitalismo dependente em ascensão no Brasil. Dois livros são fundamentais para entender com lucidez a proposta sociopedagógica deste autor, Pedagogia do Oprimido, redigido no contexto da Reforma Agrária Chilena [1962-1973] e Educação como Prática da Liberdade. Percebe-se neste autor sua humanidade refletida pela busca de uma pedagogia libertadora das massas populares. Defensor da alfabetização, pode-se dizer que deu a ela o sentido de “Aprender a escrever a sua vida como autor e testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se.” (FIORI, 2021).

Em suas primeiras palavras direto do Chile, 1968, Freire (2021) conclama os leitores a uma abertura da consciência para além de suas crenças míticas. Propõe a abertura de diálogo transformador, capaz de revolucionar as mentes e vencer o medo da liberdade. Para ele a verdadeira conscientização não leva os homens ao fanatismo destrutivo, mas possibilita aos homens a sua inserção no processo histórico. Os homens precisam assumir um processo de radicalização, pois ela é constantemente o caminho de criação que alimenta a criticidade. Freire (2021) salienta que não se trata de ser passivo, como alguns o acusavam, diante da opressão, mas apenas de não ser sectário e irracional, ou seja; fechado a comunicação. Ele afirma: “Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, a radicalização é o próprio do revolucionário. ” (FREIRE, 2021, p. 37).

Uma das características fundamentais de Freire são a sua preocupação na relação da massa popular com a sua própria história, sendo revolucionário no sentido de estabelecer diálogos entre saberes populares e o saber escolarizado, trocas preciosas de valorização humana e da cultura, que não subjugam os homens a monocultura, antes desvelam os processos colonizadores da mente que levam os homens a alienação do seu próprio trabalho e de sua própria cultura. Freire é importante para se pensar a questão agrária, visto que ele ficou imerso e participante na reforma agrária chilena, bem como as questões territoriais dos povos étnicos, pois sua teoria é uma teoria que pensa a prática humana que liberta os homens da opressão.
Se houve alguma batalha visível travada pelo brasileiro no Chile, no corpo a corpo do processo educacional de reforma agrária, ela ocorreu junto aos setores do funcionalismo estatal que se impacientavam com o tempo pedagógico de seu método e reivindicavam a primazia do aumento da produtividade acima das peculiaridades subjetivas do campesinato. “O aumento da produção no processo de reforma agrária é eminentemente cultural”, insistiu o pedagogo, “o aumento indispensável da produção não pode ser visto como algo separado do universo cultural em que ocorre. ” (FREIRE, 1968, p. 5 apud VASCONCELOS, 2020, p. 189).
Vasconcelos (2020) explica que é no debate junto aos tecnocratas chilenos que Freire desenvolve alguns de seus principais debates teóricos, entre eles as questões da invasão cultural, cultura do silêncio e ação antidialógica. Para este autor o latifúndio, por ser uma estrutura que não horizontaliza e se fecha em suas artimanhas é por si só antidialógica, portanto, não seria com a ação antidialógica que o silêncio do trabalhador do campo seria rompido, mas com o diálogo problematizador das causas deste silêncio. Retomando as questões indígenas explanadas no início deste texto, pode-se refletir as causas do silêncio desta população, os Yanomamis, diante das violências e invasões a sua cultura, a sua tradição e ao seu povo que sucumbe as artimanhas da sociedade do capital que compra o seu silêncio através do medo da liberdade e pela opressão. Embora eles tenham os órgãos de denúncia e os mecanismos de defesa ao seu dispor se rendem as barganhas monetárias ofertadas pelo opressor, mantendo-se na opressão e no silenciamento.

Freire (1967) é insistente em seu conceito de integração que se opõe a acomodação e explica que por meio dela os homens são capazes de refletir criticamente a sua própria realidade não se conformando a ela, antes transformando-a. Ao tempo em que, contrariamente ao conceito de integração, os homens vão se moldando as realidades impostas por outros semelhantes, estes perdem a liberdade e já não escolhem, vivenciando, assim, o processo de acomodação e ajustamento. Para o pedagogo o homem que se integra ou comunga é o homem sujeito, ou seja; um ser que age no mundo para transformá-lo. E homens integrados e revoltos a lógica do mercado são considerados: os subversivos. Talvez por isso tão temidos pela ordem do capital. “Daí que a massificação implique no desenraizamento[7] do homem. Na sua “destemporalização”. Na sua acomodação. No seu ajustamento. ” (FREIRE, 1967, p. 42).

Enfim, a grande batalha humana que vem sendo travada ao longo do tempo é a do não ajustamento através da superação dos fatores que fazem do homem um ser acomodado. É a batalha pela humanização, cuja ameaça é a opressão que o esmaga e está a pleno vapor, e muitas vezes opressão que age em nome de sua libertação, fato social doloroso. Para Freire (1967), a modernidade cobra um alto preço dos homens, pois os domina pela ordem mitológica, pelas propagandas enganosas, que se organizam na forma de publicidade, podendo ser ideológica ou não, mas que os faz abandonar o seu poder decisório. A atividade dos homens simples vem sendo apresentadas a eles por uma classe dominante que lhes destina um receituário de como fazer, como viver e como existir.

Quando estes homens pensam estar sendo libertos de sua dor ao seguirem estas orientações, submergem na inexistência nivelada pela massificação, já sem nenhuma esperança ou crença, estes homens, agora domesticados e objetificados tornaram-se um não-sujeito. “Por isso, desde já, saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época. ” (FREIRE, 1967, p. 44).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das experiências de violação de direitos indígenas, noticiadas nas mídias sociais diariamente, propus-me a responder duas questões problemas que se levantaram dessa realidade. A primeira era qual a relação entre as questões agrárias e as invasões de territórios indígenas para a exploração ilegal de minérios na forma do garimpo? E a segunda, o que dá bases para que atos como esses se perpetuem nesta sociedade?

Na tentativa de respondê-las trouxe uma caracterização da revolução burguesa no Brasil afim de compreender como as forças do capital retroagiram nas relações de produção, de trabalho e de classes. Vimos que por sermos um país capitalista dependente, termo alcunhado por Florestan, temos em nosso germe uma assumpção dos mecanismos reprodutivos do capital exploratório hegemônico, que tende a ser reacionário em seu interior e progressista em seu exterior. Com isso, as forças de domínio internas são extremamente violentas e subjugadoras, beirando a escravidão.

Como resultado de políticas internas, ocorre a absorção de políticas externas e de pressão agrícola pelas multinacionais estrangeiras, como tendências de domínio dos modos de produção do campo, que se baseiam no agronegócio. Vimos, também que neste modo de produção agrícola o desrespeito a natureza e as populações do campo e indígenas – condição natural dos homens, são agravadas. Discutimos as questões culturais, que são históricas e que ditaram através do legado erudito alemão uma monocultura, branca e patriarcal. Esta monocultura ditou as regras do capital e amparou seu implacável avanço sobre as outras ordens organizativas e culturais. Desta maneira, o homem foi perdendo a sua identidade e se acomodando a modos de produção exploratórias e subservientes.

Procurei, também, demonstrar através da teoria de Freire que o processo de libertação humana advém do coletivo, na práxis, que dialoga as condições reais dos homens a seu tempo, levando-os a conscientização crítica da exploração e alienação do trabalho, bem como da expropriação de sua própria cultura. Enfim, refletiu-se que este homem precisa se resgatar, situando-se como homem histórico em seu tempo, capaz de decidir e de transformar a sua própria realidade em movimentos de luta organizada que rompe o domínio do opressor.

Finalizo este texto retomando as palavras de Paulo Freire em “A pedagogia do Oprimido”, quando afirma que embora a resposta dos oprimidos aos opressores possa parecer contraditória por ser um ato de rebelião, muitas vezes violenta, é na verdade ato de amor, porque pode libertar, também, o opressor, já que este não tem consciência de que a sua violência é uma auto-violência, pois na medida em que não permitem que o outro seja, também não podem ser. Logo, os homens sob opressão ao se rebelarem contra os seus opressores, lhes retirando o poder de esmagamento, podem, enfim, lhes oportunizar a restauração de sua humanidade, perdida no uso da opressão. Portanto, os movimentos sociais de luta são imprescindíveis no combate e no enfrentamento dos efeitos deletérios do capital sobre a vida dos homens.

REFERÊNCIAS

CALDART, R. S. Educação do campo: notas para uma análise de percurso. Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 7 n. 1, p. 35-64, mar./jun., 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/z6LjzpG6H8ghXxbGtMsYG3f/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: nov. 2022.

FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5 ed. São Paulo: Globo, 2006. Cap. 5, 6 e 7.

FIORI, E. M. Prefácio. In: FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 79 eds. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 79 eds. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

VASCONCELOS, S. J. "O lápis é mais pesado que a enxada": reforma agrária no Chile e pedagogias camponesas para transformação econômica (1955-1973). Tese de doutorado, USP, Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-13042021-193600/pt-br.php.

VEIGA-NETO, A. Cultura, culturas e educação. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 23, p. 5-15, Aug., 2003.

SEMERARO, G. Intelectuais, Educação e Escola: um estudo do caderno 12 de Antonio Gramsci. Tradução do caderno 12 de Maria Margarido Machado. São Paulo: Expressão Popular, 2021.


[1] Disponível em https://www.instagram.com/p/Ccy9OTHF7l0/. Acesso em: 01/12/2022.

[2] Disponível em: https://www.instagram.com/p/CcTIdHylAar/. Acesso em: 01/12/2022.

[3] Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cc8NfgkOx86/. Acesso em: 01/12/2022.

[4] Disponível em: https://twitter.com/i/status/1520058417469083648. Acesso em: 01/12/2022.

[5] Termo utilizado para conceituar as questões de forças de interesses de um país dominante e de um país dependente. No país dependente as necessidades de um grupo dominante se associam às necessidades de um país dominante para satisfazerem ambas as necessidades. Determinando, assim, o andamento político, social e econômico do pais dependente. 

[6] Em suma, a linha do argumento teria sido mais ou menos a seguinte: “Está bem. Primeiro deslocaram a ênfase da minha dimensão divina ou espiritual para a minha dimensão humana. E agora mais essa: eu não estou no centro da Natureza, não mais ocupo o centro do mundo natural... Mas continuo sendo único porque sou capaz de erigir uma Cultura única” (VEIGA-NETO, 2003, p. 8).

[7] Freire (1974) defende que a integralização embasa as raízes do homem, ou seja; um ser que é histórico e situado na sua realidade social, mas quando ele passa pelo ajustamento perde a sua capacidade de se reconhecer sujeito histórico, tornando-se um ser genérico ou massificado.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Fascismo em evidência

 




O Filme “A Onda” apresenta um enredo interessante baseado em fatos reais. Um professor chamado Ross ao ensinar sobre autocracia inicia uma experiência educacional instigante revivendo um modelo autoritário e ditatório. Tudo se inicia a partir de um “insight” gerado por uma pergunta referente à Ditadura de Hitler na Alemanha, período em que ocorreu o Holocausto de Judeus e Ciganos.
Souza (2017) afirma que “os homossexuais, opositores políticos de Hitler, doentes mentais, pacifistas, eslavos e grupos religiosos, tais como as Testemunhas de Jeová, também sofreram com os horrores do Holocausto”.
Segundo Souza (2017) “O Holocausto foi uma prática de perseguição política, étnica, religiosa e sexual estabelecida durante os anos de governo nazista de Adolf Hitler”. O filme trás luz a uma prática hegemônica que produziu prejuízos incalculáveis às nações e civilizações principalmente no quesito “humanitário”.
A pergunta que o filme apresenta a priori é: “Como considerá-los inocentes diante de tal genocídio? Como poderíamos afirmar que não tenham visto os horrores da proposta brutal daquele governo?
Apresentamos aqui alguns diálogos iniciais do filme que instigaram o Professor Ross a pesquisar e propor a experiência:


Amy pergunta: “E como ninguém tentou impedir isso?” Ross: “Disseram que não sabiam o que estava acontecendo”. Eric: “Como se pode matar 10 milhões de pessoas sem ninguém notar?” Ross: “Depois da guerra os alemães alegaram que nada sabiam sobre os campos de concentração ou as matanças”. Laurie: “Como os alemães puderam ficar inertes enquanto os nazistas chacinavam gente em volta deles e fingiram ignorância? Como puderam fazer isso, eu realmente não entendo.” (GRASSHOFF, 1981)


A partir dessa questão o professor resolve promover uma vivência de grupo a luz da lógica nazista. Sem que os alunos se apercebam da experiência o educador se propõe a induzir os alunos do Ensino Médio à ordem, disciplina e ideologia de comunidade única. Sob o lema: “Poder, Disciplina e Superioridade”.
Curiosamente professor Ross se surpreende pela adesão ao seu programa e pela fácil aceitação da turma as regras impostas e ideologia proposta. A ideia supera o teste e curioso pela expectativa do devir ele prossegue com sua experiência.
Fica claro ao telespectador a intencionalidade do diretor e produtor em conduzi-los a reflexão de como os seres humanos são suscetíveis as influencias das lideranças e como essas se sobrepõem ao grupo naturalmente, num ato extremamente passivo, dada a não reflexão.
Observamos no filme que muitas das imposições de Ross remontam nossas aulas de Educação Física do Ginásio, onde éramos treinados à disciplina e exercícios repetitivos de ginástica. Segundo Bernardo (2009, p. 01):


Se o taylorismo é a disciplina do corpo para a produção, o fascismo foi a disciplina do corpo para a política. Na experiência pedagógica daquele professor tudo começou com gestos simples, o levantar e o sentar, o estar sentado direito e de pés juntos. E o professor tinha razão, porque antes de ser uma ideologia ou uma forma de governar, o fascismo fora acima de tudo um ritual coletivo, a encenação diariamente repetida da hierarquia e da submissão, da ordem enquanto anulação do indivíduo na grande coletividade, na pátria ou na raça. (BERNARDO, 2009, p.01).


Tudo na postura de Ross trazia um revestimento de ação coletiva submissa às ordens, desde os comandos como também a maneira de responder, se posicionar, reagir, responder. Ross remonta as cenas do exército e a rigidez que enfatiza as hierarquias e o respeito à autoridade.
Além disso, o movimento evolui de forma que há a adoção de símbolos, rituais e uniformes. O uniforme escolhido relembra o traje nazista. A uniformização carrega consigo uma falsa ideia de igualdade, homogeneidade social. Durante muito tempo no Brasil a utilização de uniformes na escola mascarava as diferenças. A falsa ideia de que todos estão na mesma medida e lugar.
O totalitarismo se manifesta enquanto ação. Não há mais necessidade de gastar tempo com os amigos ou namorada, porém somente ao grupo e seus membros. Percebemos que as aulas deixaram de ter um cunho mediador de conhecimento e passaram a ser a afirmação de identidade daquele grupo. Não havia mais vida privada, não havia saída para pensar e se relacionar fora do grupo, ou seja, a existência fora reduzida a uma única maneira de ver as coisas.
Segundo Ferrari (2008, p. 01):

Freire criticava a idéia de que ensinar é transmitir saber, porque para ele a missão do professor era possibilitar a criação ou a produção de conhecimentos. Mas ele não comungava da concepção de que o aluno precisa apenas de que lhe sejam facilitadas as condições para o auto-aprendizado. Freire previa para o professor um papel diretivo e informativo - portanto, ele não pode renunciar a exercer autoridade. Segundo o pensador pernambucano, o profissional de educação deve levar os alunos a conhecer conteúdos, mas não como verdade absoluta. Freire dizia que ninguém ensina nada a ninguém, mas as pessoas também não aprendem sozinhas. "Os homens se educam entre si mediados pelo mundo", escreveu. Isso implica um princípio fundamental para Freire: o de que o aluno, alfabetizado ou não, chega à escola levando uma cultura que não é melhor nem pior do que a do professor. Em sala de aula, os dois lados aprenderão juntos, um com o outro - e para isso é necessário que as relações sejam afetivas e democráticas, garantindo a todos a possibilidade de se expressar.(FERRARI, 2008, p. 01) 


Muito interessante a colocação de Freire apud Ferrari (2008) de que “os homens se educam entre si mediados pelo mundo”, porém no processo grupal daquele grupo houve se assim podemos chamar uma “deseducação” ou um retrocesso das relações mediadoras do educador – educando, visto que “A Onda” deu aos alunos a sensação de que havia uma segurança e um sentido naquela comunhão coletiva, porém arrancou deles a autonomia que foi delegada a outrem na heteronomia.
Bernardo (2009, p. 01) expõe em seu artigo:

Através da hierarquia instaurada, tudo é dado inevitavelmente ao chefe do grupo, por isso ele pode aparecer como o generoso dispensador de benesses e de conselhos. O autoritarismo não é senão a exploração afetiva dos que se entregam à autoridade. O carisma não emana do chefe, é-lhe dado pelos que acreditam nele e que não têm consciência de que recebem de volta no plano simbólico aquilo que lhe concederam no plano real. (BERNARDO, 2009, p.01).

Mailhiot (1973) explica que Lewin (1965) no início se propôs a estudar o comportamento individual e sua ação que partia da estrutura estabelecida entre o indivíduo e o ambiente respeitando o tempo e o momento. Para ele essa “estrutura” é que era considerado um “campo dinâmico”, ou seja, o que proporcionava o equilíbrio. Seria um sistema de força em equilíbrio e quando por algum motivo esse campo se rompesse ocorreria, então, a tensão no sujeito e automaticamente em seu comportamento, pois seria através do comportamento que o mesmo indivíduo tentaria recuperar ou restabelecer o equilíbrio.
Segundo Lane (1984, p. 80):

[...] 1) o significado da existência e da ação grupal só pode ser encontrado dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade, com suas determinações econômicas, institucionais e ideológicas; 2) o próprio grupo só poderá ser conhecido enquanto um processo histórico, e nesse sentido talvez fosse mais correto falarmos em processo grupal do que em grupo. (Lane, 1984, p.80).

Para Lane (1984) existem diferentes conceitos de grupos. Há uma postura tradicional que teria por função a identificação de papéis e identidade social a fim de manter a harmonia das relações sociais objetivando a produtividade e, há também; outras posturas que são mais mediatizadoras, que se preocupam com os processos de produção, ou seja, enfatizam como os grupos se produzem e quais processos participam dessa produção. Para esses há determinantes sociais que são mais abrangentes e que estão presentes nas relações grupais.
Mailhiot (1973, p. 33) afirma que para Lewin o grupo ao qual o individuo pertence é comparado a um terreno para obtenção ou não de determinado status social e a medida que esse grupo fornece esse status entrega ao seu participante a sensação de estar seguro. Para ele essa segurança está relacionada a “fluidez ou a solidez” desse terreno aonde o indivíduo se posiciona já que este pode ou não identificar-se nesse grupo enquanto parte.
Observamos que no caso exposto no filme a relação de liderança que se apresenta é a tradicional que pressupõe a presença de um líder carismático e convincente/inspirador. A autocracia nesse caso apresenta-se como a forma aceitável de governo ou liderança.
Lara (2012) expõe que nesse tipo de liderança há uma centralização das decisões e imposição de ordens ao grupo. Há uma ausência de espontaneidade, iniciativa e formação de grupos de amizade. Por outro lado a tensão, frustração e agressividade estão presentes. Tudo está e acontece na presença do líder.
Por ser um individuo social o homem busca em suas relações inspiração na forma de ídolos e mestres. Essa postura é histórica, aliás, é da história humana. O filme retrata claramente como muitas vezes os jovens são suscetíveis às influencias sociais de “ídolos” ou “personagens em destaque”, justamente porque estão em busca de um lugar ao Sol ou poderíamos dizer que estão formando sua identidade social.
Para Vigotsky (1995) apud Pasqualini (2010, p. 167-168) “a gênese das funções psicológicas exclusivamente humanas não é biológica, mas fundamentalmente cultural”. Ainda de acordo com Pasqualini (2010, p. 170) “[...] ao longo de seu desenvolvimento, a criança assimila as formas sociais da conduta e as transfere para si mesma, ou seja, a criança começa a aplicar a si própria as mesmas formas de comportamento que a princípio outros aplicavam a ela.”
Mailhiot (1973, p.43-44) expõe que de acordo com Kurt Lewin (1973) as minorias que abrem mão de sua identidade optando pela cordialidade das relações geralmente acabam por repetir as atitudes coletivas da maioria. Interessante que ele expõe que essas atitudes coletivas de minorias são particularmente de adolescentes porque esses tentam passar despercebidos acreditando que serão aceitos. Temem tanto não pertencer ao seu grupo de origem, como também ao grupo majoritário.
No filme percebemos que a homogeneização das diferenças fez bem aqueles adolescentes e esses movidos pela necessidade da aceitação e equiparamento assumiram a identidade de seu mestre negando possibilidades de pensar diferente ou questionar os posicionamentos impostos. Tudo que fosse fora da Onda deveria ser eliminado. Houve a partir daí a discriminação e segregação da minoria e a instalação do medo e agressividade.
Observamos que a princípio a heroína (Laurie) era respeitada e seguida pela maioria e que Robert era rejeitado e humilhado pela maioria sofrendo bullying. Após o movimento “A Onda” a situação se inverte e Laurie passa a ser perseguida e humilhada por não se adequar ao movimento. Enquanto Robert passa a ser aceito e bem posicionado na relação grupal.
No filme “A Onda” observamos que os educandos a partir da proposição do movimento sentiram-se atraídos e convocados a viver aquela experiência. De certa forma aglutinaram-se em torno das tarefas propostas e objetivaram algo em comum, no caso: “Poder, Disciplina e Superioridade”, porém de forma alguma os estruturou na coletividade, enquanto grupo. Em algum momento ou tempo, para algumas pessoas do grupo, a ficha caiu e veio a tensão que afetou o comportamento coletivo. A fim de manter o equilíbrio alguns alunos passaram a utilizar-se da força e da pressão amedrontadora para restabelecer o equilíbrio da unidade proposta. O uso da agressividade e da violência tornou-se necessária e justificável.
Del Cueto & Fernandes (1985) ao estudarem a dinâmica dialética de como os grupos se desenvolvem indicaram que existe um papel aglutinador dos sujeitos ao redor de uma tarefa ou de um objetivo que seja comum e que esse é muito mais “convocante” do que “estruturante” do conjunto de pessoas e embora a tarefa reúna o grupo ela não consegue construir ou dotar o grupo de uma estrutura que seja coletiva. Para eles essas ideias têm consequências para a pesquisa-ação-participativa. Faz-se necessário como aspecto importante considerar a indispensabilidade de depositar valor no processo de pesquisa e no desenvolvimento do grupo.
Segundo Mailhiot (1973, p.46):

Não há diagnóstico de uma situação social concreta que possa ser formulada sem a exploração da dinâmica própria do grupo implicado por esta situação. Do mesmo modo, a dinâmica própria de um grupo não se revelará realmente, senão ao pesquisador que tenha conseguido assimilar todos os dados concretos da vida deste grupo. A pesquisa em psicologia social, conclui Lewin, deve originar-se a partir de uma situação social concreta a modificar. E deve inspirar-se constantemente nas transformações e nos componentes que surgem durante e sob a influência da pesquisa (Mailhiot, 1973, p.46).

Ainda segundo Mailhiot (1973, p. 50) “os fenômenos grupais são irredutíveis e não podem ser explicados à luz da psicologia individual. Toda dinâmica de grupo é a resultante do conjunto das interações de um espaço psicossocial”.
Portanto, as relações grupais não são de forma alguma exclusivamente individuais porque necessitam da coletividade da ação. Um ato individual por si só não implica numa ação coletiva, mas se houver de alguma forma identificação com o ato esse se coloca na dimensão da coletividade. Para que um sujeito se identifique com a ação deve-se levar em consideração a sua formação psicológica, social e cultural. Por quê? Porque todo ser antes de ser individual é produto do seu meio e de sua cultura, logo é um ser histórico.
Essa relação identitária reflete o conjunto de todos os valores, vivências e construções sociais que moldaram a “psique” do sujeito social. Valores e construções que tem uma história, ou seja, uma razão para ser da forma que é.
Tozoni-Reis & Tozoni-Reis (2017, p. 10) afirmam que:

O desenvolvimento da dinâmica de grupo manteve as premissas metodológicas da pesquisa-ação. A pesquisa social é indissociável da ação, portanto, seu sentido é favorecer ou provocar mudança. Que tipo de mudança? A que corresponde a uma necessidade do grupo sujeito. Também são indissociáveis mudança social e controle social: o experimento deve fazer sentido para o grupo envolvido que deve se apropriar intencionalmente do processo de mudança. (Tozoni-Reis & Tozoni-Reis, 2017, p. 10).

Ainda, de acordo com Mailhiot (1973, p. 47), Lewin acredita que os fenômenos de um grupo não deixam claro quais são suas leis internas e dinâmicas em marcha. Para ele cabe aos pesquisadores envolverem-se nessa dinâmica pessoalmente respeitando todos os processos de evolução e os sentidos impressos na história do grupo. Cabe a esse pesquisador corresponsabilizar-se dessa realidade social que ele tenta explicar, mas sem deixar de lado a sua própria história. Essa pesquisa deve ocorrer numa ação participante e observadora e em lócus, ou seja; “[...] decorre para ele a necessidade de, durante suas pesquisas, assumirem constantemente os dois papéis complementares de participante e de observador”. (Mailhiot, 1973, p.47).  
Zimerman (1993) expõe que o grupo é responsável pela construção da identidade, ou seja, ele é a “célula-base” onde os sujeitos apropriam-se dos valores, normas e comportamentos, ao mesmo tempo em que se apropriam de necessidades. Inicia-se nessa relação grupal uma dinâmica dialética que se mantêm e que acaba por desenvolver-se durante toda a existência dos indivíduos. São as intersubjetividades, ou seja, as relações de várias subjetividades que acabam por se tornar elementos socioculturais. A identidade individual e grupal existe concomitantemente porque ao mesmo tempo em que a identidade individual se constrói a do grupo também se realiza.
Del Prette (1990) em seu artigo explica que a filiação e a participação em grupos se aplicam universalmente na vida comunitária/social. Para ele o sujeito se torna parte de distintos grupos sociais e é essa filiação pertencente que induz a maior parte de suas relações sociais. “O pertencer psicológico a um grupo apresenta características empíricas tidas como consensuais na Psicologia Social”. (Del Prette, 1990, p. 37).
O autor segue elencando que a primeira característica do pertencimento psicológico é a perceptual, a segunda é a interdependência e a terceira a estrutura social. Na primeira os indivíduos se auto-definem, ao mesmo tempo em que são definidos pertencentes a um grupo, pois compartilham de uma visão/olhar que os tornam distintos dos demais. É “o "nós" em oposição ao "eles".”. (Del Prette, 1990, p. 37). Na segunda os indivíduos percebem que existem necessidades e que essas precisam ser supridas, então providenciam a satisfação das mesmas numa relação de troca. E enfim, a terceira, é o gerenciamento das interações individuais que acabam necessitando de um conjunto de regras, ou seja, é preciso regular as relações e para isso criam-se as normas, valores e status que se diferenciam e são compartilhados.
Del Prette (1990, p. 37) afirma:

Poder-se-ia argumentar, no entanto, que essas características são apropriadas quando se trata de grupos pequenos, podendo não satisfazer inteiramente quando se considera grupos amplos, como por exemplo uma nação. É de fato, a exceção da perceptual, as demais não se configuram como condição presente na maioria dos grupos amplos. (Del Prette, 1990, p. 37).

No filme “A Onda” verificamos como realmente esse pertencimento psicológico é uma priori na vida humana e como as relações grupais influenciam na formação do auto-reconhecimento, ou seja, da identificação do eu. Aqueles jovens a princípio se auto perceberam e definiram parte de um grupo chamado “A Onda” e também foram percebidos pelos outros como tal devido a objetização olhística que os tornaram distintos. Dessa forma a ideia de “nós” em oposição a “eles” ficou bem evidente quando outros indivíduos não se adequaram ao movimento por não identificarem-se com as ideologias propostas pelo grupo.
Consequentemente passaram a verificar algumas necessidades e começaram a tratar de supri-las. Aglutinaram-se em torno de seus objetivos buscando a satisfação total como realização idealística. A violência e agressividade tornaram-se armas para a conquista dos ideais.
Por último o grupo passou a criar um conjunto de regras internas, normatizações e status. Coisas como “isso deve”, “isso não deve”, simbolismos, trajes, maneira de se comportar, etc. Toda essa regulação os identificava e os colocava a vista, em foco.
Del Prette (1990, p. 38) ainda sobre filiação grupal afirma:

A filiação a diferentes grupos sociais constitui a base para o desenvolvimento da identidade social do indivíduo. Esta Identidade relaciona-se com o conceito que a pessoa tem sobre si mesma e é derivada das suas filiações. O indivíduo adquire a consciência de pertencer a um grupo e tende a diferenciá-lo dos demais, maximizando os seus aspectos positivos e classificando os outros segmentos sociais em termos valorativos. Quando a filiação a um grupo contribui negativamente para a sua identidade social pode ocorrer tentativas de abandonar o grupo e, na sua impossibilidade, o indivíduo procura melhorar o próprio status grupal em relação a outras categorias sociais. (Del Prette, 1990, p. 38)

Verificamos que foi exatamente isso que ocorreu com o movimento “A Onda” exposto no filme de Gansel e Grasshoff. Os indivíduos adquiriram a consciência de que pertenciam aquele movimento e tentaram diferenciarem-se dos demais exaltando os aspectos positivos de pertencerem aquele grupo impingindo aos outros um menor valor. Também foi o que ocorreu com Laurie. Ao se aperceber de que aquela identidade grupal lhe era prejudicial, não somente a ela, mas também aos demais, ela abandona a coletividade para uma luta individual que resultou num ponto de luz o que abriu a cortina para o desvencilhamento da Onda.

Referências Bibliográficas:

BERNARDO, João. Passa a Palavra: A Onda: cultura. Nov. 2009. Disponível em: <http://passapalavra.info/2009/11/15523>, Acesso em 08 set. 2017.

CAPITÃO, Claudio Garcia; Heloani, José Roberto. A identidade como grupo, o grupo como identidade. Aletheia, n.26, p.50-61, jul./dez. 2007. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/pdf/aletheia/n26/n26a05.pdf>, Acesso em: 09 set. 2017.

DEL CUETO, A M. & FERNANDES, A M. In: BAREMBLIT, G. (org).  Lo grupal 2.  Bueños Aires: Ed. Búsqueda, 1985.

DEL PRETTE, Almir. Movimentos sociais como tema de diferentes áreas de estudoPsicologia: Ciência e Profissão, vol.10 no.1 Brasília  1990. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pcp/v10n1/11.pdf>, Acesso em 09 set. 2017.

FERRARI, Marcio. Paulo Freire, o mentor da educação para a consciência. REVISTA NOVA ESCOLA. Outubro/2008. Disponível em: <https://novaescola. org.br/conteudo/460/mentor-educacao-consciencia>, Acesso em 08 set. 2017.

LANE, S.T.M. O processo Grupal. In: LANE, S.T.M. & CODO, W. (orgs). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.

LEWIN, K. Teoria de campo em Ciência Social. São Paulo: Pioneira, 1965.

MAILHIOT, G.B. Dinâmica e gênese dos grupos: atualidades das descobertas de Kurt Lewin. 2 ed, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973.

PASQUALINI, Juliana Campregher. O papel do professor e do ensino na Educação Infantil: a perspectiva de Vigotski, Leontiev e Elkonin. p.161. (In) MARTINS, LM., and DUARTE, N., orgs. Formação de professores: limites contemporâneos e alternativas necessárias [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 191p.

SOUSA, Rainer Gonçalves. "Holocausto"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiag/holocausto.htm>. Acesso em: 06 set. 2017.

The Wave (A Onda), Direção: Dennis Gansel, Produção: Alexander Grasshoff, USA: 1981. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=159&v= QBjeX5jPRi4>, Acesso em: 06 set. 2017.

TOZONI-REIS, Marília Freitas de Campos; TOZONI-REIS, José Roberto. Conhecer, Transformar e Educar: Fundamentos Psicossociais para a Pesquisa-ação-participativa em Educação Ambiental. Botucatu: UNESP. Grupo de Estudos em Educação Ambiental, n. 22. Disponível em: <http://27reuniao.anped. org.br/gt22/t228.pdf>, Acesso em: 09 set. 2017.

ZIMERMAN, D.E. (1993). Fundamentos básicos das grupoterapias. Porto Alegre: Artes Médicas.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O 18 Brumário de Louis Bonaparte

Antonio Carlos Mazzeo | O 18 Brumário de Luís Bonaparte | A guerra civil na ...

YouTube · TV Boitempo

20 de dez. de 2012

Nada tão atual. Nada tão rico. Nada tão importante, quanto esta leitura marxiana.

Ressurge o bonapartismo na figura de outrora. O salvador da pátria conciliador das massas, que ainda representa uma classe social e um projeto de capital.

Na medida em que os homens traem, vendem a ideia da humanidade e chacinam ou trancafiam os que lutam por ela, a ideia como tal deixa de ser pronunciável; o escárnio e a sátira constituem a aparência real da sua verdade.
Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos.
E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial.
Não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social do século XIX pode colher a sua poesia. Ela não pode começar a dedicar-se a si mesma antes de ter despido toda a superstição que a prende ao passado.

 

Referência:

Marx, Karl, [1818-1883]. O 18 de brumário de Luís Bonaparte / Karl Marx ; [tradução e notas Nélio Schneider ; prólogo Herbert Marcuse]. - São Paulo: Boitempo, 2011.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Cantando e dançando na chuva







"I'm singin' and dancin' in the rain!"

(Gene Kelly)

Não me convide para cantar na chuva

Na chuva eu já estou

Não me convide para dançar na chuva

Eu sempre estou na chuva

Não me convide para celebrar

se estou maltrapilho

Não me convide, não.

Não me convide para cantar na chuva

se o que me resta

é o leito do hospital

uma gripe que não cessa

uma pneumonia adquirida

nesse cantar

Não me convide para dançar na chuva

se todos os dias estou na chuva

nas ruas à beira dos sinais

nas praças à roda dos bancos

nos mercados à roda dos restos

nas fábricas à roda de contas injustas

Não me convide para cantar na chuva

se a sua dança vier acompanhada da morte

das balas perdidas

e do seu cacetete

os teus fuzíveis dançam sobre os túmulos

dos meus sonhos

Não me convide para cantar e dançar na chuva

se isso serve para amenizar sua consciência

se isso é a esmola que cala a tua 

responsabilidade social

se em algum momento eu sou inferior

se mereço a tua caridade

se sou apenas a tua tarefa diária de bem

Não me convide, na chuva eu já estou

eu sempre estou na chuva

sem teto e sem esperança

Por Dâmaris Costa




sábado, 27 de agosto de 2022

Os vértices recônditos da decadência

 


Vi um homem descendo uma ladeirinha. Vestido de paletó e gravata. Vi um homem com os bolsos cheios de um algo qualquer subindo a ladeirinha com um semblante embotado. Vi milhares de homens a descer ladeirinhas, todos esfarrapados, retornando apavonados. Eram todos iguais, a mesma vestimenta, a aparência de uma mesma cor, o mesmo sapato, o mesmo brilho nos olhos, como de esperança. Retornavam todos da mesma maneira, testas cheias de suor, braços fortes segurando instrumentos de trabalho, e eles se dissipavam em todas as direções. Vi o primeiro homem que descera a ladeirinha com um sorrisinho matreiro em contentamento. Vi que do alto eles jogavam corpos e corpos ladeirinha abaixo. Pareciam extraviados, sujos e desalinhados. Foram fazendo uma cama de mortos na ladeirinha. Vi as máquinas se movimentarem sobre os corpos a cobrirem aquela ladeirinha com terra. Sobre os corpos, dos homens que esperançavam, vi passarem o pavimento. Observei o primeiro homem, que descera a ladeirinha, segurando uma placa na mão. Nela estava escrito em letras garrafais: PROGRESSO!

Das ladeirinhas que nós descemos, subimos aptos a explorar ou a sermos explorados. Compramos as mentiras que nos vendem sob a laje de muitos mortos, nos esquecendo que é ladeirinha abaixo que descemos, ladeirinha acima que esperançamos, mas que é, indubitavelmente, ladeirinha abaixo que retornaremos mortos, soterrados em nome do progresso.

Por Damaris Melgaço


quinta-feira, 26 de maio de 2022

(Des)sensibilizações capitalistas, alienação da produção cultural


Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgrKLicmXEGvkN054cEsWw-6qRz02k-mH6RG8JCiN1AE_P5_MRLggOWt2gDlm8eOCltojwaWNoZTzqobarGxzYW_eH_BHohElTUVCsejvq5hGSXhzZwR3jLTWxNEx1cIM10uyQQXx2C95K8/s1600/cultura02.png

“Num ser racional, cultura é a capacidade de escolher seus fins em geral e, portanto, de ser livre. Por isso, só a cultura pode ser o fim último que a natureza tem condições de apresentar ao gênero humano.” (Kant, Crítica do Juízo, 83)[1].

 “Um povo faz progressos, tem seu desenvolvimento e tem seu crepúsculo” (Hegel)

Compreendendo que dentro de cada sociedade, a depender de seu contexto histórico que é “aqui agora”, porém ao mesmo tempo passado presentificado na memória e possibilidade futura, objetivada pela transmissão cultural de saberes acumulados, própria dos homens, disserta-se sobre as influências dos processos históricos que perpassam a cultura, sendo esta diversa na medida em que flutuam entre costumes, tradições e crenças.

Numa antropologia dos sentidos é importante considerar que se os homens apreendem o mundo pelos órgãos dos sentidos e que estes são o portal para a percepção do mundo, então é possível compreender a lógica que coloca a percepção sensorial para além da organicidade dos homens, já que ela é uma atitude cultural, pois também assegura a transmissão de valores culturais. Como a percepção sensorial pode constituir-se uma ação cultural? Quando se entende que as relações humanas iniciam-se numa relação que envolve a comunicação sensorial, desde a fala, escrita, música, arte visual, valores, ideias diversas, etc., pois estas envolvem sensações como o olfato, o tato, o paladar, etc. (LOPES, 2004).

No entanto, é preciso diferenciar esses movimentos perceptivos, já que eles são limitados pela cultura, porque os seres sociais percebem o mundo de diferentes formas e isso depende da cultura predominante à sua estrutura social. “Os sentidos são “janelas abertas sobre o mundo”, o que significa que eles são, por natureza, transparentes e, portanto, pré-culturais.” (LOPES, 2004, p. 158). Contudo serão as regras sociais criadas, que determinarão quais comportamentos sensoriais serão permitidos e são essas mesmas regras que determinarão os significados das experiências sensoriais vividas dentro de uma dada realidade social.

Há um ponto interessante que Lopes (2004) traduz em análise dos significados correlacionados as diferentes sensorialidades dentro das culturas diversas, pois essa análise possibilita uma abundância de símbolos sensoriais, como, por exemplo; a visão pode estar localizada simbolicamente nas funções psíquicas superiores – processo racional - ou ao mesmo tempo nas crenças mitológicas - bruxaria, o cheiro pode remeter aos significados de pureza ou pecaminosidade, bem como “... poder político ou exclusão social” (p. 158).

Em se tratando de estarmos intimamente ligados a sociedade do capital, considera-se que a sociedade de classes possui em sua gênese cultural as marcas históricas da revolução industrial e de todos os processos que envolvem a construção da cultura hegemônica que, por agora; determina as relações sociais, através de suas normas e valores. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que dentro dessa cultura que se apresenta como ordeira dos sentidos e significados existe outras culturas paralelas que concorrem com a primeira, seja pela contradição ou pela criação de suas próprias normas e regras comunitárias.

A análise do texto de Thompson (1998) em seu capítulo "A venda de esposas" apresenta algumas percepções culturais muito interessantes. Talvez o texto proponha o afastar-se dos estereótipos para aproximar-se de um olhar antropológico, cujo objetivo é perceber a cultura a partir de seu lócus temporal. Afinal, é muito comum que àqueles, que entram em contato com um determinado tempo e lugar cultural, terminem por significar o observado a partir de seu lócus e historicidade.

Thompson (1998) apresenta a perspectiva de um ritual de venda feminina do Séc. XVIII - [1760-1880], que se fez presença naquele tempo histórico como algo aceitável entre os trabalhadores em contexto pré-industrial e ao mesmo tempo rejeitado pelas regras sociais representativas do estado ou sistema de governo muito atrelado a aspectos de ordem religiosa. Aparentemente, em uma leitura corriqueira, poder-se-ia supor que se trataria de uma reafirmação da existência do patriarcado ou de uma sociedade machista. 

A princípio maculados pela cultura da sociedade burguesa poderíamos afirmar que se tratava de uma forma mais primitiva que antecipava a exploração da imagem feminina. No entanto, para além das primeiras impressões, Thompson (1998) apresenta um quadro subversivo, cuja representação cultural era a própria movimentação de um coletivo social de cultura pré-capitalista para a conquista de direitos e não de perda. O autor faz uma análise deste tempo e de como o ritual emerge de uma necessidade cultural em contraposição as imposições do puritanismo burguês.

O interessante deste texto é que Thompson (1998) apresenta a existência de uma cultura geral que, a princípio, dá conta de responder as necessidades básicas daquela sociedade, porém ao mesmo tempo para além de uma cultura hegemônica ele apresenta a existência de uma cultura revolucionária que parte dos próprios trabalhadores a partir de suas outras necessidades, sendo assim caracterizada como um movimento de contra cultura que parte da união dos coletivos humanos, que criam as suas próprias regras e burlam a regra social geral.

Ginzburg (1989), em seu capítulo “Sinais, raízes de um paradigma indiciário”, parte do princípio de que os saberes da experiência não estão em busca de explicação e que o saber venatório está no interior das práticas culturais, que assinalam a significação do mundo em contexto intrasubjetivo. A semiótica da qual Ginzburg (1989) discursa relaciona-se a indícios, sinais que vem da medicina grega, que conseguia apreender diretamente da experiência as suas práticas. Podemos entender que a semiótica como se conhece hoje não foge à ideia desse saber experiente, porque foi através das necessidades comunicativas dos homens que os signos foram criados.

É na experiência que, como seres sociais, (co)criamos os conceitos, sendo a comunicação um fenômeno cultural. Isso não destoa de Lopes (2004), pois este autor reafirma a existência de uma cultura dos sentidos. Logo, os processos significativos fazem parte desta apreensão, via percepção, que são absorvidos no interior da cultura e que permanecem na memória coletiva dos seres sociais, constituindo as práticas culturais. Os indícios emergem dessas memórias significativas, através dos signos (sinais verbais e não verbais) que se desenham na relação comunicativa entre pares.

Quadro 1 – Relato de Experiência Escolar

Março de 1987, eu tinha 10 anos e vivia minha primeira experiência da puberdade. As mudanças no organismo eram visíveis e eu ansiava pelo meu primeiro sutiã. Minha mãe uma vendedora de roupas havia comprado este artefato e me dado de presente. Naquela época eu não tinha noção das diferenças existentes dentro da cultura escolar pela divisão de classes. E mesmo sendo uma aluna de escola pública podia perceber visivelmente a diferença existente entre pares, já que alguns aparentemente possuíam poder aquisitivo maior que dos outros. Lembro-me dessa vivência como traumática, já que guardei na memória a dor do desprezo causado por uma colega. Aquele dia eu fui à escola toda orgulhosa do meu primeiro sutiã. Ele era cor de rosa, de tecido quadriculado e macio. A ansiedade pelo compartilhamento dessa experiência era tanta que não via a hora de chegar o recreio. Lembro-me do momento em que nós, três colegas, estávamos encostadas num canto da parede e eu efusivamente levantei a blusa para mostrar a minha alegria. No entanto, a resposta que veio me marcou profundamente. Uma de minhas colegas, filha única, levantou a blusa e mostrou o seu Duloren. Ela disse: - Esse seu sutiã é muito feio. O meu é de melhor qualidade. Nessa época a propaganda da mídia era o sucesso do meu primeiro sutiã Duloren. A marcas da diferença sobrepujaram o valor da experiência pela sensibilidade.

Fonte: Da autora

Este relato, agora revisitado à mostra de autores como Thompson (1998) e Ginzburg (1989) pode ser analisado pela perspectiva da cultura e ao mesmo tempo confrontado pela tensão da cultura hegemônica, que se instala no repertório dos seres sociais e que possui a aparência da espontaneidade juvenil, mas carregam em si as ideologias ou conceitos apreendidos dentro de uma dada realidade. Dessa forma ao analisar as atitudes presentes nesta narrativa, podemos perceber que ela se desenha dentro de perspectivas culturais distintas, mas ao mesmo tempo perpassadas pelo tipo de construção social, que neste caso é a sociedade capitalista.

As três meninas compartilham da felicidade da transformação corporal e percebem o mundo pelos sentidos e significados dado pelo meio social. Ambas as meninas, a pobre e a patricinha, demonstram o quanto a passagem da vida infantil para a juvenil ganham características culturais associadas ao crescimento e amadurecimento que deve ser motivo de orgulho. No entanto, dentro dessas interpretações significativas não se exclui o poder do fetiche que transforma dentro da sociedade do capital a vida orgânica e suas etapas em caráter monetizado.

Thompson (1998) ao descrever as questões do tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial declara que o tempo sofreu grandes transformações na medida em que passou a direcionar o ritmo das fábricas. Foi a monetarização do tempo, que conflui nas determinações e guias do desenvolvimento econômico e segundo este autor “... não existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento ou mudança de uma cultura.

Percebe-se no relato acima o quanto as questões pertencentes à vida cronológica humana, relativas à passagem do tempo possuem na sociedade ocidental um caráter monetizado, já que a experiência do desenvolvimento dos seios implica no objeto do desejo, nesse caso, o sutiã, que agora é uma mercadoria. E essa diferença entre quem possui o poder monetário para a compra da mercadoria ganha proporções gigantescas na realidade cultural das crianças.

As percepções sensoriais das fases humanas estão maculadas pela cultura da diferença entre as classes. Veiga-Neto (2003) explica as origens da existência comparativa entre culturas e como essa comparação é conceitual, pois é proveniente de uma cultura da civilidade que busca a autorregulação do comportamento, cuja espontaneidade é substituída pela contenção do afeto. A educação escolarizada abarca a rejeição de toda e qualquer diferença e tem isso como herança da cultura modelar alemã que impõe um padrão escolar único, ou seja, branco, machista, judaico-cristão e eurocêntrico.

No entanto, no relato acima se percebe que mesmo dentro de uma mesma realidade, existe diferença nas percepções subjetivas dos seres sociais, no entanto estas diferenças não sobrepujam a massificação das ideias pelas regras e normas gerais da sociedade capitalista. As culturas existem e concorrem dentro das experiências. A grande questão não é se existe diversidade cultural, mas como elas coexistem dentro de uma mesma realidade, não se descolando da totalidade que compõe a estrutura de uma comunidade social. Desta maneira, é preciso buscar além das aparências imediatas, sem ignorar os aspectos que Lopes (2004) aponta: “A palavra é elemento desencadeador de ações ou energias vitais. De fato, ao ser dirigida para atingir determinados fins, interfere na existência, pois que, uma vez absorvida, pode provocar reações, controláveis ou não” (p. 187).

REFERÊNCIAS:

GINZBURG, C. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

LOPES, José de Sousa Miguel. Fundamentos para uma antropologia dos sentidos. In: Cultura acústica e letramento em Moçambique: em busca de fundamentos antropológicos para uma educação intercultural. São Paulo: EDUC, 2004.

THOMPSON, Edward. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. SP: Cia das Letras, 1998, pp. 142-179.

VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro , n. 23, p. 5-15, Aug. 2003.

Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...