quinta-feira, 26 de maio de 2022

(Des)sensibilizações capitalistas, alienação da produção cultural


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“Num ser racional, cultura é a capacidade de escolher seus fins em geral e, portanto, de ser livre. Por isso, só a cultura pode ser o fim último que a natureza tem condições de apresentar ao gênero humano.” (Kant, Crítica do Juízo, 83)[1].

 “Um povo faz progressos, tem seu desenvolvimento e tem seu crepúsculo” (Hegel)

Compreendendo que dentro de cada sociedade, a depender de seu contexto histórico que é “aqui agora”, porém ao mesmo tempo passado presentificado na memória e possibilidade futura, objetivada pela transmissão cultural de saberes acumulados, própria dos homens, disserta-se sobre as influências dos processos históricos que perpassam a cultura, sendo esta diversa na medida em que flutuam entre costumes, tradições e crenças.

Numa antropologia dos sentidos é importante considerar que se os homens apreendem o mundo pelos órgãos dos sentidos e que estes são o portal para a percepção do mundo, então é possível compreender a lógica que coloca a percepção sensorial para além da organicidade dos homens, já que ela é uma atitude cultural, pois também assegura a transmissão de valores culturais. Como a percepção sensorial pode constituir-se uma ação cultural? Quando se entende que as relações humanas iniciam-se numa relação que envolve a comunicação sensorial, desde a fala, escrita, música, arte visual, valores, ideias diversas, etc., pois estas envolvem sensações como o olfato, o tato, o paladar, etc. (LOPES, 2004).

No entanto, é preciso diferenciar esses movimentos perceptivos, já que eles são limitados pela cultura, porque os seres sociais percebem o mundo de diferentes formas e isso depende da cultura predominante à sua estrutura social. “Os sentidos são “janelas abertas sobre o mundo”, o que significa que eles são, por natureza, transparentes e, portanto, pré-culturais.” (LOPES, 2004, p. 158). Contudo serão as regras sociais criadas, que determinarão quais comportamentos sensoriais serão permitidos e são essas mesmas regras que determinarão os significados das experiências sensoriais vividas dentro de uma dada realidade social.

Há um ponto interessante que Lopes (2004) traduz em análise dos significados correlacionados as diferentes sensorialidades dentro das culturas diversas, pois essa análise possibilita uma abundância de símbolos sensoriais, como, por exemplo; a visão pode estar localizada simbolicamente nas funções psíquicas superiores – processo racional - ou ao mesmo tempo nas crenças mitológicas - bruxaria, o cheiro pode remeter aos significados de pureza ou pecaminosidade, bem como “... poder político ou exclusão social” (p. 158).

Em se tratando de estarmos intimamente ligados a sociedade do capital, considera-se que a sociedade de classes possui em sua gênese cultural as marcas históricas da revolução industrial e de todos os processos que envolvem a construção da cultura hegemônica que, por agora; determina as relações sociais, através de suas normas e valores. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que dentro dessa cultura que se apresenta como ordeira dos sentidos e significados existe outras culturas paralelas que concorrem com a primeira, seja pela contradição ou pela criação de suas próprias normas e regras comunitárias.

A análise do texto de Thompson (1998) em seu capítulo "A venda de esposas" apresenta algumas percepções culturais muito interessantes. Talvez o texto proponha o afastar-se dos estereótipos para aproximar-se de um olhar antropológico, cujo objetivo é perceber a cultura a partir de seu lócus temporal. Afinal, é muito comum que àqueles, que entram em contato com um determinado tempo e lugar cultural, terminem por significar o observado a partir de seu lócus e historicidade.

Thompson (1998) apresenta a perspectiva de um ritual de venda feminina do Séc. XVIII - [1760-1880], que se fez presença naquele tempo histórico como algo aceitável entre os trabalhadores em contexto pré-industrial e ao mesmo tempo rejeitado pelas regras sociais representativas do estado ou sistema de governo muito atrelado a aspectos de ordem religiosa. Aparentemente, em uma leitura corriqueira, poder-se-ia supor que se trataria de uma reafirmação da existência do patriarcado ou de uma sociedade machista. 

A princípio maculados pela cultura da sociedade burguesa poderíamos afirmar que se tratava de uma forma mais primitiva que antecipava a exploração da imagem feminina. No entanto, para além das primeiras impressões, Thompson (1998) apresenta um quadro subversivo, cuja representação cultural era a própria movimentação de um coletivo social de cultura pré-capitalista para a conquista de direitos e não de perda. O autor faz uma análise deste tempo e de como o ritual emerge de uma necessidade cultural em contraposição as imposições do puritanismo burguês.

O interessante deste texto é que Thompson (1998) apresenta a existência de uma cultura geral que, a princípio, dá conta de responder as necessidades básicas daquela sociedade, porém ao mesmo tempo para além de uma cultura hegemônica ele apresenta a existência de uma cultura revolucionária que parte dos próprios trabalhadores a partir de suas outras necessidades, sendo assim caracterizada como um movimento de contra cultura que parte da união dos coletivos humanos, que criam as suas próprias regras e burlam a regra social geral.

Ginzburg (1989), em seu capítulo “Sinais, raízes de um paradigma indiciário”, parte do princípio de que os saberes da experiência não estão em busca de explicação e que o saber venatório está no interior das práticas culturais, que assinalam a significação do mundo em contexto intrasubjetivo. A semiótica da qual Ginzburg (1989) discursa relaciona-se a indícios, sinais que vem da medicina grega, que conseguia apreender diretamente da experiência as suas práticas. Podemos entender que a semiótica como se conhece hoje não foge à ideia desse saber experiente, porque foi através das necessidades comunicativas dos homens que os signos foram criados.

É na experiência que, como seres sociais, (co)criamos os conceitos, sendo a comunicação um fenômeno cultural. Isso não destoa de Lopes (2004), pois este autor reafirma a existência de uma cultura dos sentidos. Logo, os processos significativos fazem parte desta apreensão, via percepção, que são absorvidos no interior da cultura e que permanecem na memória coletiva dos seres sociais, constituindo as práticas culturais. Os indícios emergem dessas memórias significativas, através dos signos (sinais verbais e não verbais) que se desenham na relação comunicativa entre pares.

Quadro 1 – Relato de Experiência Escolar

Março de 1987, eu tinha 10 anos e vivia minha primeira experiência da puberdade. As mudanças no organismo eram visíveis e eu ansiava pelo meu primeiro sutiã. Minha mãe uma vendedora de roupas havia comprado este artefato e me dado de presente. Naquela época eu não tinha noção das diferenças existentes dentro da cultura escolar pela divisão de classes. E mesmo sendo uma aluna de escola pública podia perceber visivelmente a diferença existente entre pares, já que alguns aparentemente possuíam poder aquisitivo maior que dos outros. Lembro-me dessa vivência como traumática, já que guardei na memória a dor do desprezo causado por uma colega. Aquele dia eu fui à escola toda orgulhosa do meu primeiro sutiã. Ele era cor de rosa, de tecido quadriculado e macio. A ansiedade pelo compartilhamento dessa experiência era tanta que não via a hora de chegar o recreio. Lembro-me do momento em que nós, três colegas, estávamos encostadas num canto da parede e eu efusivamente levantei a blusa para mostrar a minha alegria. No entanto, a resposta que veio me marcou profundamente. Uma de minhas colegas, filha única, levantou a blusa e mostrou o seu Duloren. Ela disse: - Esse seu sutiã é muito feio. O meu é de melhor qualidade. Nessa época a propaganda da mídia era o sucesso do meu primeiro sutiã Duloren. A marcas da diferença sobrepujaram o valor da experiência pela sensibilidade.

Fonte: Da autora

Este relato, agora revisitado à mostra de autores como Thompson (1998) e Ginzburg (1989) pode ser analisado pela perspectiva da cultura e ao mesmo tempo confrontado pela tensão da cultura hegemônica, que se instala no repertório dos seres sociais e que possui a aparência da espontaneidade juvenil, mas carregam em si as ideologias ou conceitos apreendidos dentro de uma dada realidade. Dessa forma ao analisar as atitudes presentes nesta narrativa, podemos perceber que ela se desenha dentro de perspectivas culturais distintas, mas ao mesmo tempo perpassadas pelo tipo de construção social, que neste caso é a sociedade capitalista.

As três meninas compartilham da felicidade da transformação corporal e percebem o mundo pelos sentidos e significados dado pelo meio social. Ambas as meninas, a pobre e a patricinha, demonstram o quanto a passagem da vida infantil para a juvenil ganham características culturais associadas ao crescimento e amadurecimento que deve ser motivo de orgulho. No entanto, dentro dessas interpretações significativas não se exclui o poder do fetiche que transforma dentro da sociedade do capital a vida orgânica e suas etapas em caráter monetizado.

Thompson (1998) ao descrever as questões do tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial declara que o tempo sofreu grandes transformações na medida em que passou a direcionar o ritmo das fábricas. Foi a monetarização do tempo, que conflui nas determinações e guias do desenvolvimento econômico e segundo este autor “... não existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento ou mudança de uma cultura.

Percebe-se no relato acima o quanto as questões pertencentes à vida cronológica humana, relativas à passagem do tempo possuem na sociedade ocidental um caráter monetizado, já que a experiência do desenvolvimento dos seios implica no objeto do desejo, nesse caso, o sutiã, que agora é uma mercadoria. E essa diferença entre quem possui o poder monetário para a compra da mercadoria ganha proporções gigantescas na realidade cultural das crianças.

As percepções sensoriais das fases humanas estão maculadas pela cultura da diferença entre as classes. Veiga-Neto (2003) explica as origens da existência comparativa entre culturas e como essa comparação é conceitual, pois é proveniente de uma cultura da civilidade que busca a autorregulação do comportamento, cuja espontaneidade é substituída pela contenção do afeto. A educação escolarizada abarca a rejeição de toda e qualquer diferença e tem isso como herança da cultura modelar alemã que impõe um padrão escolar único, ou seja, branco, machista, judaico-cristão e eurocêntrico.

No entanto, no relato acima se percebe que mesmo dentro de uma mesma realidade, existe diferença nas percepções subjetivas dos seres sociais, no entanto estas diferenças não sobrepujam a massificação das ideias pelas regras e normas gerais da sociedade capitalista. As culturas existem e concorrem dentro das experiências. A grande questão não é se existe diversidade cultural, mas como elas coexistem dentro de uma mesma realidade, não se descolando da totalidade que compõe a estrutura de uma comunidade social. Desta maneira, é preciso buscar além das aparências imediatas, sem ignorar os aspectos que Lopes (2004) aponta: “A palavra é elemento desencadeador de ações ou energias vitais. De fato, ao ser dirigida para atingir determinados fins, interfere na existência, pois que, uma vez absorvida, pode provocar reações, controláveis ou não” (p. 187).

REFERÊNCIAS:

GINZBURG, C. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

LOPES, José de Sousa Miguel. Fundamentos para uma antropologia dos sentidos. In: Cultura acústica e letramento em Moçambique: em busca de fundamentos antropológicos para uma educação intercultural. São Paulo: EDUC, 2004.

THOMPSON, Edward. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. SP: Cia das Letras, 1998, pp. 142-179.

VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro , n. 23, p. 5-15, Aug. 2003.

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