terça-feira, 2 de maio de 2023

A arte de ser conhecido, o epicentro

https://www.greenpeace.org/brasil/blog/todos-juntos-em-defesa-do-meio-ambiente/


Dizem que as forças determinam as condições, eu digo que as condições determinam as forças. Se somos intimamente, participantes dos processos sociais, então; somos os responsáveis pela constituição das forças que controlam os espaços sociais, porém as condições materiais pré-dadas são as alavancas para o desenvolvimento destas forças.

Condições de base material permitem que os processos evolutivos dos homens em relação ambiental ditem o caminho das forças que se instituem dentro da sociedade e que, posteriormente, controlarão a forma como os homens convivem.  Não podemos afirmar que as forças determinam as condições, pelo simples fato de que as forças sociais inexistem sem a presença de um ser social. 

No entanto, as relações naturais, em nível biológico, acontecem obedecendo um sistema caudal. É assim no mundo cíclico. Os seres naturais coexistem em um ambiente natural, obedecendo as condições ambientais, consideradas forças naturais. Isto parece paradoxal ao dito anteriormente e poderíamos facilmente perguntar: - O que veio primeiro - o ovo ou a galinha?

Chegamos no encontro das oposições, que pedem uma intersecção.  Primeiramente, é necessário distinguir o caminho das forças, pois existem duas - uma natural e outra construída. A primeira é condição para a sobrevivência e a segunda é oriunda da primeira e possui desdobramentos somente possíveis na presença do ser social, um humano capaz de pensar as condições primeiras e reorganizar a segunda. 

O homem como ser natural relaciona-se com a natureza e dela retira os meios para a sua sobrevivência, a esta ação, chamamos imediata. Essa sobrevivência depende de diversas condições, desde as climáticas, geográficas, físicas, etc. No entanto, estas condições ganham uma nova configuração quando os homens juntam-se para pensar formas coletivas de burlar as condições naturais, criando resoluções e registrando as mesmas. Forças sociais vão ganhando condições novas a medida em que os homens vão recriando maneiras de viver e conviver. 

É interessante pensarmos como a humanidade é capaz de dominar a natureza e transformá-la a seu bel prazer. Cada vez mais os homens apropriam-se das condições naturais e transformam-na. Gosto da analogia metafórica em que o homem através de seu poder transformador, recria o mundo. Ao transformar a natureza ele se expande na ação-reação. Criou a machadinha e estendeu suas mãos, criou a roda e extensionou seus pés, descobriu o fogo e extensionou a pele, inventou o computador e ampliou o cérebro. Característica própria do humano é trabalhar a seu favor, mas - estranguladamente -, em seu oposto. Notoriamente, essa busca para a acomodação dos sentidos, impele os homens - cada vez mais -, a subjugar o cosmos em torno de si mesmo. 

O instinto humano transmuta-se para além da natureza, implicando no desequilíbrio cíclico. Visivelmente, escancara-se a matriz básica dos desequilíbrios humanos: tudo que o homem cria é lixo, ou quase tudo. Ao transformar a natureza criando suas extensões o ser humano produz lixo. Eu sei, muitos dirão: - Você está sendo radical. Sinto dizer que a radicalidade é o princípio ativo da crítica, então eu sou radical.

Em "Discurso de Primavera e algumas sombras", Carlos Drummond de Andrade, em seu poema - Antibucólica 1972 -, questiona: " - Até a clorofila?..." (2014, p. 113). Este autor inicia seus versos interrogando a antítese da saúde e da doença, que prescinde às relações do homem com a natureza. Toda a secção recebe o título de ASSIM VAI (?) O MUNDO. O ponto de interrogação é essa brecha ausente entre a vida e a passagem da vida no mundo, mas que subentende a culpa humana, ou talvez a sua não isenção nesta passagem.

Com que prazer me uno aos seus versos:

[...] Diz-nos um doutor
de Illinois que, em matéria de monóxido
de carbono, a graminha é uma parada.

Aparemo-la então, que em disparada
a relva, no jardim ou em depósito
no quarto de dormir (sei lá) é o mesmo que automóvel queimando gasolina.

O poema é tão dialético e aponta para o epicentro da bucólica vida dos passantes, no entanto é antítese. Ressalta a incerteza dos homens na relação natural, na imediaticidade da relação, que bucolicamente retoma a natureza como seu habitat saudável. No entanto, de maneira catártica, às vistas de uma notícia, o poeta desvela a ruptura entre as forças naturais e as culturais, para em seguida afirmar:

— A sina, pois, do mundo, é sem remédio?
Se da fumaça escapo, e rodo a esmo
pelos parques cisneiros da cidade,
trato de preparar meu epicédio,
pois o verde de amigo fez-se inimigo
e me leva, com toda a falsidade,
para o último hotel, vulgo jazigo.

Aqui o autor encena a culpa da natureza e; de forma irônica, encaminha seus versos à natureza, impondo-lhe cinicamente a culpa de suas mazelas. Há a inversão proposital das culpas. No entanto, deixa claro o autor, que o veneno humano subjuga a todos, transformando as condições.

Não são usinas gigantescas,
bombas, resíduos mil, restos largados
à flor das águas em sinistras bolhas
que corrompem a vida que vivemos.
É a grama, o capim, leve, ondulante,
forma que o vento curva a seu talante,
e que, ao perecer, nos envenena
o ar, desprendendo o tóxico tremendo.
É grama, é folha, é rama, ó Tom, é planta,
são as flores de março… mas que pena.

O autor está em luto, ao reconhecer o cinismo sepulcral dos homens. Silêncio entorpecedor das vicissitudes humanas, camufladas na culpa dos vegetais. Retomar as relações do homem com a natureza, requer reconhecer a responsabilidade humana em sua transformação. Drummond (2014, p. 114) continua: 

A poluição, sabe-se agora, é velha
mais do que o homem. E não será o homem
freguês da poluição, em vez de autor?
Por pessimista, rogo, não me tomem,
nem quero ser tachado de farsista:
se tudo é poluição, até na flor,
no vergel, no quintal, seja o que for,
tratemos com a máxima presteza
de redigir político tratado:
teremos cativado a natureza,
convindo em que convivam lado a lado
o homem e a poluição fazendo amor.

Este final conspira para a máxima individualista, cuja letal sorte é a morte. Retomamos aqui a questão inicial, expondo as determinações sociais da vida humana reverberadas em sua primeira condição: a natural, o que retira da natureza a culpa e nos devolve a sentença. Ao recriar a natureza o homem é o alquimista voluntário, o manipulador das poções, o grande místico da natureza. Ao recriar a si mesmo, esse mago destrói o espaço natural do seu habitat. A quantidade de lixo que criamos e jogamos na natureza, contaminando-a com nossos resíduos é o grande dano, cuja máxima garantirá a morte de toda a condição primeira. 

Um relatório da Comissão Lancet sobre Poluição e Saúde publicado na revista científica The Lancet Planetary Health informa que a poluição do ar ambiente foi responsável por 4,5 milhões de mortes em 2019, ante 4,2 milhões em 2015 e 2,9 milhões em 2000. As mortes por poluentes químicos perigosos aumentaram de 0,9 milhão em 2000, para 1,7 milhão em 2015, para 1,8 milhão em 2019, com 900 mil mortes atribuíveis à poluição por chumbo em 2019. No geral, as mortes por poluição moderna aumentaram 66% nas últimas duas décadas, de uma estimativa de 3,8 milhões de vítimas em 2000 para 6,3 milhões em 2019 (¹). 

Lembremo-nos que nossa alquimia, subordinada às ordens econômicas, determinam o nosso fim. Essa postura individualista que cinde a condição natural, é a premissa da decadência. Quanto mais determinados em ampliar nossos corpos, menos humanos nós somos. Estão aí a robótica e as inteligências artificiais. Esse assunto daria pano para a manga, mas por agora, ficam estas reflexões. 

Termino, retomando Drummond em seus versos do poema "Mal do século": 

Como se não bastasse o mundo de tristezas
entre céu e terra,
principalmente em terra,
vem o agrônomo, descobre
o vírus da tristeza nas laranjeiras. (p. 112).


Referências:

(¹) Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/com-9-milhoes-de-mortes-em-2019-mundo-avanca-pouco-contra-poluicao-diz-estudo/#:~:text=A%20polui%C3%A7%C3%A3o%20do%20ar%20ambiente%20foi%20respons%C3%A1vel%20por%204%2C5,polui%C3%A7%C3%A3o%20por%20chumbo%20em%202019.

ANDRADE, C. D. de. Discurso de Primavera e algumas sombras. São Paulo. Cia das Letras, 2014.

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