Raymond Williams [1921-1988] expõe que pensar a cultura social é trabalhar com a ambiguidade, porque opera sobre a vida concreta, sobre classes, indústria, política, família, crime, mas também no campo imaterial, religião, educação e conhecimento. Destarte, a partir de uma visão antropológica do século XIX, verifica-se uma amplitude de significados dados a cultura, desde a idealização da formação humana via religião e nacionalismo até o idealismo moderno da vida vivida nos processos sociais, bem como a ordenação política e econômica. Desta maneira, a cultura tem transitado entre o pensamento da globalidade e da parcimônia.
Podemos distinguir uma gama de significados, desde (I) um estado mental desenvolvido - como em "pessoa de cultura", "pessoa culta", passando por (II) os processos desse desenvolvimento - como em "interesses culturais", "atividades culturais", até (III) os meios desses processos - como em cultura considerada "as artes" e o "trabalho intelectual dos homens" (Williams, 1992, p. 11).
Nos dias atuais permanecem a terceira posição, acima discriminada, tanto no campo da sociologia, quanto da antropologia., entendendo cultura como um modo de vida global, tanto de um povo, como de um grupo. Segundo Williams (1992), a teoria de base e estrutura de Plekhanov (1953) defende que os fatos estruturais de base social são refletidos no concreto, nas obras artísticas, podendo ou não serem identificados. Essa teoria pode ser melhor compreendida a partir de Lukács (1950). Para esse último autor a ideia de "reflexo" expõe o fato de que as obras de arte incorporam diretamente a materialidade social pré-existente, mas é substituída de forma gradual pela ideia de mediação - "... modo indireto de relação entre a experiência e a sua composição" (p. 23). "A forma desse modo indireto é interpretada diversamente nos diferentes usos do conceito" (p. 24).
Williams (1992) toma como exemplo o romance de Kafka, intitulado "O Processo", para expor sua leitura sob diferentes perspectivas: "1) mediação por projeção; 2) mediação pela descoberta de um 'correlato objetivo' e 3) mediação como função dos processos sociais básicos de consciência". Na primeira, o fenômeno aparece como projeção da realidade concreta, porém de forma conceitual indireta. Na segunda, ele aparece da personificação conceitual objetiva da realidade e na terceira, ele aparece de forma cristalizada, como se fosse uma verdade conceitual inquestionável e natural, no puro sentido da realidade alienada do autor e sua própria realidade social.
Para além destas questões, Williams (1992) aborda outra questão considerada por ele como de difícil discussão, o conceito de ideologia, porque divide-se dialeticamente entre a descrição de crenças formais e conscientes de uma classe ou grupo social e/ou a visão geral de mundo consciente e inconsciente de uma classe ou grupo social. Desta maneira, este conceito implica em saber sintetizar e diferenciar aquilo que representa a realidade concreta da vida social - expressão humana consciente e aquilo que é expressão de ficção, teatro, poesia ou lirismo. De qualquer jeito, trata-se da produção e/ou reprodução do pensamento humano na forma do conceito significado e resignificado. Trata-se, portanto, de uma linha tênue entre o aprovável e o reprovável.
A partir dessas discussões breves, questiona-se o limite da arte na promoção e/ou reprodução do pensamento social via cultura. Recentemente, o humorista Leo Lins recebeu uma sentença judicial que determinou sua prisão por oito anos e três meses de prisão, em regime fechado, devido a propagação de conceitos antiéticos e imorais em seu show de stand-up comedy: 2022, divulgado no canal You Tube.
As mídias sociais divulgaram comentários de pessoas influentes no campo artístico, entre outras áreas, contra a decisão do judiciário e também a favor. Vários foram os argumentos pró-decisão, bem como contrários à decisão judicial, entre eles, a garantia do direito à liberdade de expressão artística e o direito da defesa do direito das pessoas ofendidas pelo humorista em suas atuações de stand-up comedy.
Fato é que o humorista em questão tem por costume desenvolver piadas sob temáticas raciais, físicas, sexuais e psicológicas, envolvendo questões humanas, cuja luta é assegurada pela lei vigente do país, disseminando via arte conteúdo dúbio e de desinformação para causas importantes referentes a pedofilia, ao feminismo, a lgbtfobia, ao racismo, a gordofobia, etc.
Ao refletirmos sobre o papel fundante da arte como reprodutora e mediadora da materialidade concreta da vida humana, considerando a liberdade da expressão humana abordadas anteriormente, temos um entrave entre o limite da arte e sua influência sobre a vida humana. Williams (1989) apud Cevasco (2001) expõe que a cultura possui para si o sentido da vida cotidiana e a incorporação do significado geral da vida comum, reproduzida pela arte. Dessa maneira, pode-se refletir que as piadas de Leo Lins são tanto as reproduções da vida cotidiana brasileira - comum a todos, como a sua incorporação pela individualidade do ator no humor reproduzido. Por inferência, percebe-se as raízes conceituais estruturais na forma do preconceito reproduzidas na arte de Léo Lins, denotando a cristalização de pseudoverdades às quais são reiteradas no palco da vida e nos aplausos que a evocam.
Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 13) expõem que:
Na perspectiva de Williams (1989) apud Cevasco (2001) questionar sobre a cultura é o mesmo que questionar coletivamente a nossa própria comunhão significativa (propositiva comunitária) e ao mesmo tempo questionar os significados individuais de caráter profundo, já que não se pode entender a cultura como um processo individualizante, pois a cultura pertence a todos não importando o tipo de sociedade ou as maneiras de pensar.
Portanto, a questão maior está no quanto as bases socioculturais brasileiras ainda mantém a hegemonia do pensamento excludente, que desenraiza os homens de sua existência cidadã (Martins, 1997). Ações contra o pensamento cristalizado e hegemônico que reiteram a exclusão de uma maioria que se torna minoria pela ausência de representatividade jurídica é essencial como garantia do existir social. No entanto, as punições repressivas com excesso da força podem surtir efeito rebote contrário ao que se deseja, tornando o "vilão" um "herói", como ocorreu com Edir Macedo em 1992. Afinal, se Leo Lins tem fã clube considerável numericamente, isso reflexiona a tensão social que se estabelece em sua defesa.
Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 13) afirmam a partir dos estudos de Raymond Williams que:
[...] o sistema central dominante implica diretamente na ação dos homens; porque estes agem sob a influência da hegemonia cultural dos significados e valores, em sua concretude, ou seja; eles são organizados, apreendidos e vividos pelos homens. Para entender como funciona uma cultura hegemônica deve-se compreender o processo social real em que ela acontece na prática. Esse processo é chamado de incorporação, as formas pelas quais os indivíduos apreendem a cultura e se apropriam dela como verdade.
Obviamente que não se defende as ações de Léo Lins, mesmo que em sua defesa esteja a liberdade de expressão artística e/ou a performance de sua persona humorística, haja vista o teor do conteúdo divulgado. Defende-se que o mesmo deva ser punido, pois a lei existe para tal, mas para além dessa questão "individualizante" estão questões prioritárias como, por exemplo, a transformação da forma do pensamento brasileiro acerca desses temas sensíveis, porque Léo Lins representa o pensamento comunitário, que infelizmente é naturalizado e aceito pela maioria da população brasileira, inclusive por pessoas atingidas pela sua linha de discurso.
Salienta-se que a educação e todas as suas implicações no seio comunitário, como a formação social familiar, do trabalho, da tradição, do intelecto - teórico, etc. são forças sociais imbuídas tanto na produção, quanto na reprodução da cultura e, portanto, precisam ser repensadas para a melhoria do quadro social dominante, pois a vida comunitária delas dependem (Williams, 2011).
Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 19) reiteram o pensamento teórico de Raymond Williams no qual estão implicadas a ampliação da:
[...] conceituação para a compreensão de uma totalidade humana que não exclui as subjetividades mais profundas, compreendendo que os seres sociais são o produto de toda a cultura existente. E que a cultura não pode ser afastada do processo humano como princípio heterogêneo, pois isso corrobora para uma fragmentação da produção humana. Logo, as artes são uma produção capaz de transmitir e produzir cultura, bem como modificar cultura e transformá-la na medida em que acessa aos homens, levando-os ao despertar de sua consciência crítica. Isso retorna o homem a sua própria gênese.
Portanto, o caso Léo Lins serve para acender a luz sobre o papel da arte na propagação de formas de opressão ou de revolução conceitual, bem como do quanto a arte no tempo que produz e reproduz ação humana pode romper ou manter padrões sociais pré-existentes de forma direta ou indireta. A censura nesse caso, como mediação de conteúdo prejudicial a vida humana pode e deve ser pensada, não no sentido estrito da palavra, mas na forma do limite, afinal até onde a arte pode ir e quais são as leis que definem esses limites?
Acredita-se que há limites referentes a humanização que não devem ser ultrapassados e para reafirmá-los têm-se, historicamente, a Declaração dos Direitos da Mulher e Cidadã de 1791, a Lei nº 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha), a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, a Lei nº 7.716 de 1989 e a Lei nº 14.532 de 2023 (criminalização do racismo), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 de 2015), o Projeto de Lei nº 7.292 de 2017 (dispõe sobre a criminalização da LGBTfobia) e etc. Como hipótese, têm-se que o limite da produção artística se encontre na justa forma da vida humana, em compromisso com a história humana, na qual a liberdade de uma pessoa começa na liberdade de outra e vice-versa. Isso, a meu ver, é primordial para a justiça dos processos coletivos.
REFERÊNCIAS:
CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
MELGAÇO, D. da C. A.; SANTOS, L. R. dos; TOLEDO, D. A. da C. Trabalho & cinema: correlações culturais na análise fílmica de “7 prisioneiros”. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, SP, v. 24, p. 1-23, 2024. DOI: 10.20396/rho.v24i00.8674334. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8674334. Acesso em: 19 abr. 2024.
WILLIAMS, R. [1921-1988]. Cultura: Sociologia. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
WILLIAMS, R. [1921-1988]. Cultura e Materialismo. Tradução:
André Glaser. São Paulo: UNESP, 2011.