quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Análise do Decreto 12.686/25: aspectos positivos e negativos


Decreto nº 12.686 foi promulgado no dia 20/10/2025 e institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva e a Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva, revogando o decreto 7.611 de 17/11/2011. Desde a data de sua publicação muitas controvérsias se levantaram contra o mesmo, principalmente no que tange as instituições como APAE's e afins, cujo funcionamento é sem fins lucrativos. Essa questão é antiga e esbarra na questão primeira, cuja razão aponta as dificuldades estruturais do setor público na garantia da inclusão total. Até o presente momento, há dois projetos de decreto para a revogação do decreto nº 12.686. São eles, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 845, de 2025 do senador Flávio Arns e o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 846/2025 do deputado federal Diego Garcia. 

Desde a criação do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP) em 1973, atual Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Empreendedorismo e Inclusão (SECADI), houve preocupação com a integração dos alunos com deficiência no sistema regular de ensino. Posteriormente, impulsionado pelas agências de fomento internacionais, com a determinação das Nações Unidas para o  Ano Internacional da Pessoa com Deficiência (AIPD), entre 1983-1992 e com gradual progressão para o movimento da educação inclusiva, essa preocupação tornou-se maior para a inclusão total das pessoas com deficiência em ambiente regular comum e para a diminuição progressiva das organizações sem fins lucrativos. 

No entanto, essa prerrogativa nunca foi totalmente alcançada, inclusive com aumento dos movimentos privatistas que descartam a inclusão, retornando-a ao lugar da segregação nas instituições especializadas e sem fins lucrativos. Fato observado na tentativa do PL Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020 no governo de Jair Messias Bolsonaro. Portanto, as alianças com o setor privado e com os incentivos financeiros de agências como o Banco Itaú, que se apropriam das agendas culturais de esquerda, tem se fortalecido e contraditoriamente à ideologia marxista fomentado a agenda desses interesses, tanto para a saúde como para a educação (Catini, 2021).

Assim sendo, por interesses econômicos, observa-se que historicamente todas as principais legislações brasileiras mantiveram as parcerias com a escolarização ofertada por Escolas de Educação Especial, na Modalidade de Educação Básica. Logo, os defensores dessas instituições alegam que o presente decreto traz prejuízos aos direitos pré-estabelecidos no Decreto n. 7.611/2011, cujo teor está amparado pela LDBEN nº 9394/96. Veja,
A primeira constatação desse prejuízo decorre justamente da revogação do Decreto n. 7.611/2011, que em seu art. 8º, VII previa como diretriz do Poder Público no dever com a educação dos estudantes público alvo da educação especial o “apoio técnico e financeiro pelo Poder Público às instituições privadas sem fins lucrativos, especializada e com atuação exclusiva em educação especial”. 
Ressalta-se que o decreto não dissolve as instituições especializados, mas reafirma a preferência da rede pública no oferecimento da vaga regular e de AEE e, somente em excepcionalidade às outras instituições. Também reafirma a preferência para os investimentos educacionais ao setor público no amparo da formação continuada de qualidade aos docentes e garantia de recursos materiais de tecnologias assistidas e adaptativas  ao público da educação especial (PEE).
Art. 9º O AEE na educação básica poderá, excepcionalmente, ser realizado em Centro de Atendimento Educacional Especializado da rede pública de ensino ou de instituições sem fins lucrativos, conveniadas com a Secretaria de Educação ou com órgão equivalente dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.
Parágrafo único. Os Centros de Atendimento Educacional Especializado privados, sem fins lucrativos, conveniados, deverão atender aos requisitos estabelecidos pelo Conselho de Educação do respectivo sistema de ensino, para seu credenciamento, sua autorização de funcionamento e sua organização de AEE para a educação básica.
Portanto, deve-se observar que a atual legislação apresenta as seguintes afirmativas e não destitui as instituições especializadas. No entanto, ela retifica a preferencialidade da educação básica comum e a oferta do AEE na escola regular para a pessoa com deficiência, bem como o investimento prioritário das verbas públicas nas instituições da rede pública. Ela afirma:
§ 3º A garantia do sistema educacional inclusivo ocorre por meio da organização do sistema educacional geral, de forma a assegurar que os estudantes que são o público da educação especial estejam incluídos em classes e escolas comuns, com o apoio necessário à sua participação, permanência e aprendizagem.
VII - oferta de Atendimento Educacional Especializado - AEE, preferencialmente nas escolas comuns da rede regular dos sistemas de ensino.
II - universalizar a matrícula na educação básica para o público da educação especial, dos quatro aos dezessete anos de idade, em classes comuns da rede regular de ensino. 
§ 1º A modalidade da educação especial será oferecida de maneira transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, com vistas a assegurar recursos e serviços educacionais para apoiar, complementar e suplementar o processo de escolarização. 
Vivian Ribeiro (2020) e Dâmaris Melgaço (2024) em suas pesquisas no sudeste e sudoeste mineiro através do estudo de caso (campo de pesquisa) verificaram como o processo educacional ocorre na práxis educativa da pessoa com deficiência e concluíram que na prática escolar o trabalho pedagógico baseia-se na emissão de laudos e diagnósticos médicos o que dificulta o acesso ao AEE e, principalmente, ao professor de apoio (ACTLA). Esse recorte, adiciona-se a outros estudos e pesquisas de outros estados consubstanciando discrepâncias relativas ao padrão nacional, ferindo as legislações nacionais, como a Lei Brasileira de Inclusão nº 13.146/2015 e a Lei Berenice Piana nº 12.764/2012, Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, entre outras (Fontenele et.al., 2023). Desta maneira, o decreto nº 12.686/25 reafirma,
Art. 5º O Atendimento Educacional Especializado - AEE é atividade pedagógica de caráter complementar à escolarização de pessoas com deficiência e transtorno do espectro autista, e suplementar à escolarização de pessoas com altas habilidades ou superdotação, de acordo com o disposto nos art. 27 e art. 28 da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015.
§ 2º A oferta do profissional de apoio escolar independerá de resultado de diagnóstico, laudo, relatório ou qualquer documento emitido por profissional de saúde.
O recente decreto nº 12.686/25 da atual gestão de Lula busca reafirmar essas legislações, inclusive garantindo a autonomia de atuação da equipe pedagógica na escola para o encaminhamento das crianças com deficiência e dificuldades de aprendizagem para o AEE e também para a solicitação de professor de apoio especializado através do estudo de caso essencialmente necessário ao Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE) e ao Plano Individual de Desenvolvimento (PDI). O decreto nº 12.686/25 explica,
§ 7º A garantia da oferta do AEE ao estudante não será condicionada à exigência de diagnóstico, laudo, relatório ou qualquer outro documento emitido por profissional de saúde.
Art. 12. O PAEE é um documento obrigatório e individualizado de natureza pedagógica, com atualização contínua, que deriva do estudo de caso.

§ 4º Para realização do estudo de caso, quando necessário, será estabelecido diálogo com profissionais que compõem a rede de proteção social, como os da saúde, da assistência social e dos órgãos de proteção à criança e ao adolescente. 
Ao afirmar como objetivo do AEE (artigo 6º): "VII - fomentar e integrar as ações intersetoriais, notadamente entre as áreas que compõem a rede de proteção social", observa-se a preservação da liberdade nas ações de articulação e colaboração entre diferentes setores e políticas públicas (como saúde, educação, assistência social, trabalho, habitação, etc.) para resolver problemas complexos de forma mais eficaz do que cada setor faria isoladamente. Também o decreto 12.686 reitera e explicita como um objetivo da Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva no artigo 17: "II - efetivar a articulação intersetorial para promover atenção integral aos estudantes que são o público da educação especial". Ou seja, está claro que não há o descarte das equipes multidisciplinares dos vários setores públicos no trabalho articulado junto as pessoas com deficiência. Abaixo, quadro resumo com as principais problemáticas do Decreto 12.686/25:

ASPECTOS POSITIVOS DA LEGISLAÇÃO

ASPECTOS NEGATIVOS

 

1. Autonomia pedagógica no encaminhamento ao AEE.

1. Complicadores práticos.

2. O laudo é apenas complementar e não uma exigência.

2. Ausência de formação específica dos docentes.

3. Combate ao capacitismo.

 

3. Presença de atendimento generalista.

4. Retificação das principais leis nacionais da inclusão.

 

4. Prejuízos acumulados pela ausência de mediações no desenvolvimento cultural desde a primeira infância.

 

5. Retificação da garantia de matrícula da pessoa com deficiência na escola comum e no AEE (preferencialmente).

 

5. Falta de acesso aos materiais de produção humana acessíveis à todas as especificidades.

 

6. Reiteração do direito da pessoa com deficiência ao currículo básico comum.

 

6. Ausência de equipes da saúde e sociais como centros públicos de referência acessíveis às necessidades psicofisiológicas (não pedagógicas) dos alunos integrados e participativos na escola para complementar o desenvolvimento integral da pessoa com deficiência.

 

7. Compromisso com a Educação Especial e maior investimento público na formação profissional técnica.

 

7. O caráter da escolarização é pedagógico, NÃO DIAGNÓSTICO, mas a pessoa com deficiência é um ser integral que também necessita do atendimento de profissionais da saúde pública. Para muitos, esses atendimentos são essenciais.

 

8. Exigência de no mínimo 80 horas em formação técnica para ser profissional de apoio do aluno com deficiência.

 

8. O movimento para a privatização da educação e sua lógica in/excludente, meritocrática e mercadológica é um entrave grave.

 

9. Reiteração da necessidade de integração entre União, Estados e municípios.

9. Ausência de explicações mais específicas sobre a regulamentação e fiscalização dessas novas propositivas.

 

10. Padronização nacional do AEE.

 

10. O sistema capitalista e seus modos de produção.

    
11. Universalização do método: estudo de caso.

 

 

12. O AEE como parte indispensável na participação e construção do PPP escolar.

 

 

 

Muita coisa, neh?

Obs.: COM O MOVIMENTO DE CUNHO NEOLIBERAL PARA A REVOGAÇÃO DO DECRETO, AINDA TEM ÁGUA ROLANDO DEBAIXO DA PONTE 🤷‍♀️ AGUARDEMOS


REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 12.686, de 20 de outubro de 2025. Institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva e a Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva. Diário Oficial da União. Edição 201, Seção 1, p. 4. Órgão: Atos do Poder Executivo. Publicado em 21/10/2025.

CATINI, Carolina de Roig. A educação bancária, "com um itaú de vantagens". Germinal: marxismo e educação em debate. Salvador, BA. v. 13, n. 1, p. 90-118, abr. 2021. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/VisualizadorPdf?codigoArquivo=577618&tipoMidia=0. Acesso em: 12 nov. 2025. 

FONTENELE, Luciana Queiroz; BESSA, Leticia Leite; LAVOR FILHO, Tadeu Lucas de; SOUZA FILHO, José Alves; MIRANDA, Luciana Lobo. Laudo e Diagnóstico como Dispositivos de (Ex)Inclusão Escolar: Uma Revisão Sistemática // Report and Diagnosis as Devices of School (Ex)inclusion: A Systematic Review. Revista de Psicologia, [S. l.], v. 14, p. e023009, 2023. DOI: 10.36517/revpsiufc.14.2023.e023009. Disponível em: https://periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/81699. Acesso em: 12 nov. 2025.

MELGAÇO, D. A. Concepções de deficiência presentes na práxis educativa dos educadores de uma "escola inclusiva" no sudoeste mineiro. 2024. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2024. Disponível em: https://www.repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/1411013 Acesso em: 15 fev. 2025

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Ser esquizofrênico num mundo de "sãos"

Você sabe que é a luta antimanicomial?

A esquizofrenia é uma condição humana regida por fatores hereditários, ambientais e múltiplos. Segundo a Cid 11, ela é caracterizada por "distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção, e por afetos inapropriados ou embotados".

Somente quem convive ou já conviveu com pessoas que apresentam essas condições sabem melhor expressar os graus de sofrimentos vividos pela própria pessoa e seus familiares ou rede de apoio. 

Numa sociedade caótica, essas condições insalubres se intensificam. As cobranças e exigências por uma pseudo-normalidade agravam a situação numa cadeia aprisionante. Se, para os cidadãos "normais", as pressões da vida estão insuportáveis e adoecedoras, imagina para os que são munidos de uma hipersensibilidade afetiva?

Ao tentarmos resolver nossas internalidades junto as externalidades criamos um campo indizível e muito subjetivo, pois na relação do eu existo com o mundo do existir - na socialização das ações - cada humano segue uma cartilha própria dos afetos. 

Nessa relação entre eu-outro-outros - campo interacional - a forma como sentimos e experimentamos o mundo constrói a nossa relação íntima com ele que pode ser positiva ou negativa (conceito). As sensações experimentadas desenvolvem nossos sentimentos e emoções, bem como a forma como lidaremos com eles desde a mais tenra idade. Penso que é nesse campo que se desenha a esquizofrenia que conhecemos de forma conceitual.

Existe um espaço próprio do desenvolvimento infantil que Lev Vygotsky (1896-1934) conceituou como pensamento sincrético. Esse espaço do desenvolvimento cultural ocorre entre os três e sete anos - não estático - e é muito rico na formação dos conceitos (linguagem e compreensão do mundo cultural). É interessante que nesse período dinâmico, de acordo com Henri Wallon (1879-1962), pode-se pontuar objetivamente quatro características acerca deste tipo de pensamento infantil: fabulação, tautologia, elisão e contradição. Segundo ele, na fabulação a criança tende a inventar histórias, na tautologia há a repetição das palavras na intenção de compreendê-las, na elisão parece não haver muito sentido nas palavras e na contradição a conservação do conceito entra em prejuízo. 

Note-se que como característica fundante explicitada na Cid 11 e no DSM 5 a esquizofrenia possui explicações como, distorções do pensamento e da percepção que implicam na regulação da emoção e sentimento. Portanto, tem-se a hipótese de que a pessoa com esquizofrenia é uma criança que se perdeu no campo desenvolvimental e que teve esse desenvolvimento prejudicado por suas interações objetais, de tal forma que o trauma experienciado no campo afetivo e sem as mediações corretas implicou num retorno cíclico a resolução do problema (campo individual) que nunca se resolve.

Dessa maneira, explica-se a idade da manifestação da "doença", entre 15-25 anos, quando a vida social começa a exigir maior responsabilidade sobre a ação e as pressões externas criam uma prensa emocional instaurando a crise existencial (por todos experienciado, em menor ou maior grau), vulgo adolescência freudiana. A criança que não cresce rompe com a estrutura e mantém o pensamento sincrético na tentativa de resolução interna. É um momento de extrema solidão e angústia e sem as mediações necessárias o cérebro em atividade extrema gera a pane no sistema neuronal (a tal ruptura).

A confabulação entre o eu mesmo se dão como tentativas de resolução da dor in/externa, a tautologia como fonte de reafirmação do conceito se manifesta veementemente, as palavras começam a não fazer sentido para o mundo social, a conservação do conceito entra em prejuízo acelerado e a contradição fica evidente como sintomas da esquizofrenia. O que na criança era um espaço de desenvolvimento, na criança em adultização torna-se um espaço inadequado e inapropriado que sob a força hegemônica do olhar médico-clínico necessita urgentemente da "medicalização".

Pode-se afirmar que houve uma ruptura no desenvolvimento cultural, com prejuízos à vida cultural daquele ser humano específico. A esquizofrenia, portanto, é uma condição humana que carece de intervenções humanas como a compreensão e o acolhimento da criança que sofre presa em si mesma, porém o que se verifica na sociedade são ações preconceituosas e normalizadoras que não admitem a existência dos seres em sofrimento. Para tanto, subjugam as pessoas com esquizofrenia a tratamentos desumanos, com medidas preventivas e curativas opressoras que impõem exclusão e segregação, como verificadas ao longo do tempo histórico, tendo no Brasil como exemplo e marco a história do hospital psiquiátrico de Barbacena-MG.

A luta antimanicomial é uma premissa indispensável para tratamentos mais humanizados que considerem a esquizofrenia uma condição de existência e não uma aberração que deve ser apagada. 

REFERÊNCIAS:

WALLON, H. As origens do caráter na criança. São Paulo: Nova Alexandria, 1995. 
GALVÃO, I. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. 
VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.




segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Qual é o preço? Você já parou pra pensar nessa questão do valor das coisas?



De vez em quando eu paro para pensar sobre e, hoje, é um desses momentos, propícios à reflexão. Observo como nós "civilizados" estabelecemos a sociedade sob a marca do valor. Penso que enquanto seres humanos essa é uma questão material que perpassa as relações basais - primordiais à sobrevivência coletiva. 

Desde cedo aprendemos a valorar as coisas. Nessas relações objetais enquanto sociedade criamos a pirâmide das valorações. Tal qual as pirâmides de Maslow, mas penso eu que essa questão é mais profunda porque implica no ato da vida coletiva e promove a estática da vida humana. 

A equilibração da vida humana, portanto; não se movimenta de forma simétrica à necessidade, ela se contrabalança entre as relações de valores sociais, valores esses que são construídos em sociedade. Por isso, a pergunta.

Com a contrabalança da mercadoria observa-se a maximização do poder monetário, no qual perdem-se as expectativas de valor real para o valor ilusório. Comumente observa-se o reducionismo do valor das relações objetais, dentre elas as afetivas, a um valor numérico. Por exemplo,

- Você vale o número de aprovações, 

- Você vale o número de amigos,

- Você vale o número de amores,

- Você vale o número de viagens,

Então, consuma monetariamente o que te fará ser àquele número.

Desta forma, a mercadoria tem dominado todas as nossas relações objetais. Como disse Marx acerca da alienação do trabalho, como produto final temos um organismo vivo que se movimenta descolado da sua relação produtiva e, por conseguinte, apartado de sua consciência de valor, condicionado ao consumo daquilo que ele mesmo produz, porém sem sentir-se parte dessa produção.

Qual é o preço desse processo? Ausência de pensamento autônomo. A maioria de nós é um consumidor, ou seja, recebemos verdades prontas e inquestionáveis, já valoradas por outros de nós. Na biologia, a natureza obedece uma cadeia de consumo, o ser humano dentre elas ocupa desde os níveis primários até mesmo terciários. Podemos afirmar que somos consumidores por natureza. 

Consumir é uma verdade inquestionável, mas a nossa fome não é somente de comida, entende?

A música "Comida" da banda Titãs expressa na arte a nossa fome consumidora, cujo fim é contraditório à nossa expectativa de produção. Veja,

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé

A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer
A gente não quer só comer
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor

A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade

Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo, é
Necessidade, vontade, é
Necessidade

Percebe como cada palavra revela a confusão de valor?  A alienação dos sentidos, da vida coletiva, da necessidade real?

Cada um busca o sentido dentro de um esquema pré-desenhado, supostamente produtivo, mas questiono, que produção é essa que recai no consumo?

À luz da biologia, nós somos consumidores naturais que serão em algum ponto consumidos pela natureza, mas no nosso ato de "produção" criamos coisas que fatalmente serão consumidas por nós e por nossa prole, talvez na ânsia de não sermos consumidos pela natureza. Doce ilusão que nos consome. 

O problema reside em que nossas criações (atos produtivos) não podem ser consumidas pela natureza. Automaticamente, travamos essa breve luta contra a finitude da vida que nunca se assegura nas nossas pífias produções. 

Nesse ato filosófico, deixo a você leitor a pergunta inicial, que inutilmente eu tento responder. 

Então, que a vida seja um brinde à morte e à vida que sempre renasce. Que o ódio seja derradeiro ao amor e vice-versa. Que a paz encontre em nós o sabor. Que a justiça seja a balança da estática humana. Que a verdade seja pura e simples como o sorriso do velho e da criança. Que os ciclos sejam renováveis em mim e em você. Que sejamos leais aos sentidos mais nobres escondidos nos rastros humanos que deixamos às futuras gerações. E que a breve vida seja um lugar de amar em conforto, junto dos que amam a vida e a morte, sem medo. Te espero.


segunda-feira, 9 de junho de 2025

Do palco pra vida, da vida ao palco: o limite da arte na promoção do pensamento.



Dizem que a vida imita a arte, mas acredito que a arte imita a vida, pois sendo a arte uma produção propriamente humana, ela é, com certeza, transpassada pela cultura social. Seria o mesmo que questionar o que vem primeiro, a machadinha ou a ideia da machadinha? Se como premissa básica a materialidade determina a necessidade produtiva que impulsiona a criação da ferramenta, também a arte se caracteriza pelo mesmo princípio, a necessidade de expor a vida em tela na expressão da arte para então refleti-la a partir dela mesma. 

Raymond Williams [1921-1988]  expõe que pensar a cultura social é trabalhar com a ambiguidade, porque opera sobre a vida concreta, sobre classes, indústria, política, família, crime, mas também no campo imaterial, religião, educação e conhecimento. Destarte, a partir de uma visão antropológica do século XIX, verifica-se uma amplitude de significados dados a cultura, desde a idealização da formação humana via religião e nacionalismo até o idealismo moderno da vida vivida nos processos sociais, bem como a ordenação política e econômica. Desta maneira, a cultura tem transitado entre o pensamento da globalidade e da parcimônia. 

Podemos distinguir uma gama de significados, desde (I) um estado mental desenvolvido - como em "pessoa de cultura", "pessoa culta", passando por (II) os processos desse desenvolvimento - como em "interesses culturais", "atividades culturais", até (III) os meios desses processos - como em cultura considerada "as artes" e o "trabalho intelectual dos homens" (Williams, 1992, p. 11). 

Nos dias atuais permanecem a terceira posição, acima discriminada, tanto no campo da sociologia, quanto da antropologia., entendendo cultura como um modo de vida global, tanto de um povo, como de um grupo. Segundo Williams (1992), a teoria de base e estrutura de Plekhanov (1953) defende que os fatos estruturais de base social são refletidos no concreto, nas obras artísticas, podendo ou não serem identificados. Essa teoria pode ser melhor compreendida a partir de Lukács (1950). Para esse último autor a ideia de "reflexo" expõe o fato de que as obras de arte incorporam diretamente a materialidade social pré-existente, mas é substituída de forma gradual pela ideia de mediação - "... modo indireto de relação entre a experiência e a sua composição" (p. 23). "A forma desse modo indireto é interpretada diversamente nos diferentes usos do conceito" (p. 24). 

Williams (1992) toma como exemplo o romance de Kafka, intitulado "O Processo", para expor sua leitura sob diferentes perspectivas: "1) mediação por projeção; 2) mediação pela descoberta de um 'correlato objetivo' e 3) mediação como função dos processos sociais básicos de consciência". Na primeira, o fenômeno aparece como projeção da realidade concreta, porém de forma conceitual indireta. Na segunda, ele aparece da personificação conceitual objetiva da realidade e na terceira, ele aparece de forma cristalizada, como se fosse uma verdade conceitual inquestionável e natural, no puro sentido da realidade alienada do autor e sua própria realidade social.

Para além destas questões, Williams (1992) aborda outra questão considerada por ele como de difícil discussão, o conceito de ideologia, porque divide-se dialeticamente entre a descrição de crenças formais e conscientes de uma classe ou grupo social e/ou a visão geral de mundo consciente e inconsciente de uma classe ou grupo social. Desta maneira, este conceito implica em saber sintetizar e diferenciar aquilo que representa a realidade concreta da vida social - expressão humana consciente e aquilo que é expressão de ficção, teatro, poesia ou lirismo. De qualquer jeito, trata-se da produção e/ou reprodução do pensamento humano na forma do conceito significado e resignificado. Trata-se, portanto, de uma linha tênue entre o aprovável e o reprovável.

A partir dessas discussões breves, questiona-se o limite da arte na promoção e/ou reprodução do pensamento social via cultura. Recentemente, o humorista Leo Lins recebeu uma sentença judicial que determinou sua prisão por oito anos e três meses de prisão, em regime fechado, devido a propagação de conceitos antiéticos e imorais em seu show de stand-up comedy: 2022divulgado no canal You Tube. 

As mídias sociais divulgaram comentários de pessoas influentes no campo artístico, entre outras áreas, contra a decisão do judiciário e também a favor. Vários foram os argumentos pró-decisão, bem como contrários à decisão judicial, entre eles, a garantia do direito à liberdade de expressão artística e o direito da defesa do direito das pessoas ofendidas pelo humorista em suas atuações de stand-up comedy

Fato é que o humorista em questão tem por costume desenvolver piadas sob temáticas raciais, físicas, sexuais e psicológicas, envolvendo questões humanas, cuja luta é assegurada pela lei vigente do país, disseminando via arte conteúdo dúbio e de desinformação para causas importantes referentes a pedofilia, ao feminismo, a lgbtfobia, ao racismo, a gordofobia, etc. 

Ao refletirmos sobre o papel fundante da arte como reprodutora e mediadora da materialidade concreta da vida humana, considerando a liberdade da expressão humana abordadas anteriormente, temos um entrave entre o limite da arte e sua influência sobre a vida humana. Williams (1989) apud Cevasco (2001) expõe que a cultura possui para si o sentido da vida cotidiana e a incorporação do significado geral da vida comum, reproduzida pela arte. Dessa maneira, pode-se refletir que as piadas de Leo Lins são tanto as reproduções da vida cotidiana brasileira - comum a todos, como a sua incorporação pela individualidade do ator no humor reproduzido. Por inferência, percebe-se as raízes conceituais estruturais na forma do preconceito reproduzidas na arte de Léo Lins, denotando a cristalização de pseudoverdades às quais são reiteradas no palco da vida e nos aplausos que a evocam. 

Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 13) expõem que:

Na perspectiva de Williams (1989) apud Cevasco (2001) questionar sobre a cultura é o mesmo que questionar coletivamente a nossa própria comunhão significativa (propositiva comunitária) e ao mesmo tempo questionar os significados individuais de caráter profundo, já  que  não  se  pode  entender  a  cultura  como  um  processo  individualizante,  pois  a  cultura pertence a todos não importando o tipo de sociedade ou as maneiras de pensar.

Portanto, a questão maior está no quanto as bases socioculturais brasileiras ainda mantém a hegemonia do pensamento excludente, que desenraiza os homens de sua existência cidadã (Martins, 1997). Ações contra o pensamento cristalizado e hegemônico que reiteram a exclusão de uma maioria que se torna minoria pela ausência de representatividade jurídica é essencial como garantia do existir social. No entanto, as punições repressivas com excesso da força podem surtir efeito rebote contrário ao que se deseja, tornando o "vilão" um "herói", como ocorreu com Edir Macedo em 1992. Afinal, se Leo Lins tem fã clube considerável numericamente, isso reflexiona a tensão social que se estabelece em sua defesa.

Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 13) afirmam a partir dos estudos de Raymond Williams que:

[...] o sistema central dominante implica diretamente na ação dos homens; porque estes agem sob a influência da hegemonia cultural dos significados e valores, em sua concretude, ou seja; eles são organizados, apreendidos e vividos pelos homens. Para entender como funciona uma cultura hegemônica deve-se compreender o processo social real em que ela acontece na prática. Esse processo é chamado de incorporação, as formas pelas quais os indivíduos apreendem a cultura e se apropriam dela como verdade.

Obviamente que não se defende as ações de Léo Lins, mesmo que em sua defesa esteja a liberdade de expressão artística e/ou a performance de sua persona humorística, haja vista o teor do conteúdo divulgado. Defende-se que o mesmo deva ser punido, pois a lei existe para tal, mas para além dessa questão "individualizante" estão questões prioritárias como, por exemplo, a transformação da forma do pensamento brasileiro acerca desses temas sensíveis, porque Léo Lins representa o pensamento comunitário, que infelizmente é naturalizado e aceito pela maioria da população brasileira, inclusive por pessoas atingidas pela sua linha de discurso.

Salienta-se que a educação e todas as suas implicações no seio comunitário, como a formação social familiar, do trabalho, da tradição, do intelecto - teórico, etc. são forças sociais imbuídas tanto na produção, quanto na reprodução da cultura e, portanto, precisam ser repensadas para a melhoria do quadro social dominante, pois a vida comunitária delas dependem (Williams, 2011). 

Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 19) reiteram o pensamento teórico de Raymond Williams no qual estão implicadas a ampliação da:

[...] conceituação para a compreensão de uma totalidade humana que não exclui as subjetividades mais profundas, compreendendo que os seres sociais são o produto de toda a cultura existente. E que a cultura não pode ser afastada do processo humano como princípio heterogêneo, pois isso corrobora para uma fragmentação da produção humana. Logo, as artes são uma produção capaz de transmitir e produzir cultura, bem como modificar cultura e transformá-la na medida em que acessa aos homens, levando-os ao despertar de sua consciência crítica. Isso retorna o homem a sua própria gênese.

Portanto, o caso Léo Lins serve para acender a luz sobre o papel da arte na propagação de formas de opressão ou de revolução conceitual, bem como do quanto a arte no tempo que produz e reproduz ação humana pode romper ou manter padrões sociais pré-existentes de forma direta ou indireta. A censura nesse caso, como mediação de conteúdo prejudicial a vida humana pode e deve ser pensada, não no sentido estrito da palavra, mas na forma do limite, afinal até onde a arte pode ir e quais são as leis que definem esses limites?

Acredita-se que há limites referentes a humanização que não devem ser ultrapassados e para reafirmá-los têm-se, historicamente, a Declaração dos Direitos da Mulher e Cidadã de 1791, a Lei nº 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha), a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, a Lei nº 7.716 de 1989 e a Lei nº 14.532 de 2023 (criminalização do racismo), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 de 2015), o Projeto de Lei nº 7.292 de 2017 (dispõe sobre a criminalização da LGBTfobia) e etc. Como hipótese, têm-se que o limite da produção artística se encontre na justa forma da vida humana, em compromisso com a história humana, na qual a liberdade de uma pessoa começa na liberdade de outra e vice-versa. Isso, a meu ver, é primordial para a justiça dos processos coletivos.


REFERÊNCIAS:

CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.  

MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.

MELGAÇO, D. da C. A.; SANTOS, L. R. dos; TOLEDO, D. A. da C. Trabalho & cinema: correlações culturais na análise fílmica de “7 prisioneiros”. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, SP, v. 24, p. 1-23, 2024. DOI: 10.20396/rho.v24i00.8674334. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8674334. Acesso em: 19 abr. 2024.

WILLIAMS, R. [1921-1988]. Cultura: Sociologia. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

WILLIAMS, R. [1921-1988]. Cultura e Materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: UNESP, 2011.


terça-feira, 27 de maio de 2025

REVISITANDO A INFÂNCIA: A ONDA REBORN.

A onda dos bebês reborn não é uma novidade, nem mesmo o uso dos objetos para coordenar em nível psíquico interno os significados. Sabemos que a vida começa por uma busca desenfreada pela sobrevivência e a afetividade é a arma com a qual lutamos para manter a humanidade intacta. Como integrantes da natureza (parte dela) somos movidos por instinto de sobrevivência que exige processos coletivos. Dentro dessa dinâmica, o ser humano cria uma rede de proteção, um aparato humano que se origina da necessidade de produção. Acredito que a linguagem é esta primeira necessidade, porque ela expressa aos outros o que precisamos para nos manter vivos. Inicialmente, esse processo não está definido pela palavra, mas por outras vias sensoriais, não verbais, por exemplo. Expressões corporais, comumente dizem com precisão o que estamos sentindo e experimentando na natureza. Obviamente que a comunicação é essencial para a manutenção do clã em segurança.

Note-se que para tanto a humanidade foi desenvolvendo maneiras de comunicar as necessidades coletivas adiante - a outros pares sociais. Podemos afirmar que os signos são essa ferramenta tão importante, como aparato de primeira grandeza, que garante a manutenção histórica da atividade de produção como evidência à sobrevivência das futuras gerações. Notemos que antes da escrita, a linguagem oral foi uma arma histórica poderosa.

O ser humano, portanto, precisa de interações sociais, isso é, pelo visto, um manual de sobrevivência psicofisiológica. No entanto, ao longo da história e com a ampliação tecnológica, o ser humano tem-se distanciado de relações reais para viverem as relações virtuais. Cada vez mais distantes dos processos naturais que envolvem a comunicação e a partilha das sensações, o ser humano a exemplo da máquina está se esquecendo de sua humanidade ao tentar tornar-se uma.

Estudiosos como Vigotski, Leontiev e Elkonin ao estudarem os processos de desenvolvimento cultural das crianças especificam o jogo ou as atividades de brincadeira na infância como um processo de interação que busca nas relações adultas a reprodução da atividade material e social. A brincadeira com bonecas, por exemplo, é uma forma de estabelecer e reproduzir as relações afetivas adultas com o objetivo de internalizar os sentidos e significados produzidos dentro da ação do cuidado. Afinal, quem de nós, pertencentes à sociedade ocidental, não brincou de papai, mamãe e filhinha?

Desde a pandemia, como exemplo do ápice do isolamento, estamos vivenciando um afastamento das atividades sociais mais comuns, que envolvem a interação humana em relação consigo e com a natureza. Cada vez mais dentro de pequenos espaços sociais, em frente aos tablets, ipods, notebooks, computadores, o ser humano se metaboliza num ser sem sentido, mas que sente. Antigamente, rodeados por uma família imensa, espaços amplos de interação, afastados da tecnologia e mais próximos da natureza éramos talhados na vida pela experiência da vivência comunitária. A gente aprendia a expressar os sentimentos, aprendia a abrandar as emoções e principalmente a ser humano com outro humano.

Atualmente, mais próximos das relações artificiais o ser humano adulto apresenta como sintoma, relações de interação inanimada, permeadas por um retorno à infância na justa forma da brincadeira, como exemplo temos a concretude da onda reborn. Claro, que há um marketing em cima dessa febre mercadológica, pois não há nenhuma evidência de que pessoas estejam por aí carregando reborn nos hospitais, farmácias e fóruns das cidades, mas essa hipótese levanta uma urgente necessidade em discutir as relações sociais e a necessidade humana de estar envolvida em relações afetivas de verdade. 

Antes da onda reborn, nós tínhamos o amor pelos pets, ou seja; relações afetivas com seres animados, que nos acolhem, esquentam e promovem carinho. É preocupante essa repentina necessidade de adultos jovens em regredir ao nível do pensamento por complexos. Isso denota uma grande ruptura com a realidade material e uma urgente necessidade de reorganizar o pensamento. Segundo Vigotski (1998) as crianças generalizam no pensamento aquilo que não experienciam na vida real, utilizando-se de recursos sensório-emocionais já experimentados em outra realidade e que estão acomodados em nível de psiquismo, ou seja; tendem às analogias.

Note-se que a criação de um pseudoconceito vem justamente da incapacidade momentânea de experimentar a vida concreta por meios materiais consistentes. A imaginação fica em alta, criando complexos associativos e imagens sincréticas.

A formação de complexos inicia-se quando uma mesma palavra tem diferentes significados em diferentes situações, desde que haja qualquer nexo associativo entre esses significados. Como as crianças com certa idade pensam por pseudoconceitos, haverá significados que não serão aceitos pela lógica dos adultos. Dependendo do que seja, ela pode ter diferentes atributos concretos, portanto pode ter vários nomes. A utilização de um ou de outro depende do complexo que seja ativado em um determinado momento (Vigotski, 1998 apud Dias et. al, 2014, p. 496).

Ao frigir os ovos, percebe-se que o mundo adulto está permeado por ausências e a palavra cada vez mais extinta. Isso expõe a urgente necessidade de revisitar a infância e as interações humanas presentes lá. Talvez, como insistente ânsia por reestabelecer conceitos antigos. Afinal, “(...) a palavra é o microcosmo da consciência” (Vigotski, 1998, p. 190). Dias et. al. (2014, p. 494) afirma que a palavra "... é um instrumento de análise da informação, visto que percorre um caminho até ser internalizada e adquirir a função de analisar e generalizar um objeto; o conceito é o mediador que permite adquirir o significado da palavra".

Parece-nos que o ser humano desaprendeu o significado dos conceitos, interação afetiva, reciprocidade e cuidado. Dessa maneira, quando diante da extrema solidão proporcionada por essa adoecida sociedade moderna, os sintomas psicológicos aparecem na retomada da brincadeira, talvez na tentativa de recuperar os conceitos antes apreendidos e em desuso. Estamos na adultice tentando ressignificar a vida através da imaginação, pois na falta do real tendemos a criar a imagem do real. Nada mais humano que isso.

REFERÊNCIAS:

DIAS, M. S. DE L. et al.. A formação dos conceitos em Vigotski: replicando um experimento. Psicologia Escolar e Educacional, v. 18, n. 3, p. 493–500, set. 2014.

Vygotsky, L., S.. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

domingo, 25 de maio de 2025

A velha monogamia

Foto: Dominique Filippi / Flickr. Extraído de https://www.worldanimalprotection.org.br/mais-recente/blogs/8-animais-que-sao-fieis-aos-seus-parceiros/. 

Minha reflexão hoje se acomoda entre a ação-reação humana que justifica a multiplicidade de parceiros sexuais a associando às necessidades biológicas da fisiologia humana. Para tanto, verifica-se um intenso esforço em recorrer a fisiologia dos macacos e outros animais não monogâmicos a fim de justificar a monogamia como uma atividade construída pelos homens para subjugá-los ao sistema capitalista. Não que este argumento perca a sua verdade histórica. A questão que abordo não está localizada na evidência social e histórica de que a humanidade por longos anos manteve diferentes maneiras de se relacionar socialmente e de estabelecer seus vínculos afetivos e sexuais, mas no porque o ser humano exclui os poucos, mas existentes exemplos de monogamia na natureza. 

Se dotados de capacidade reflexiva, nós seres humanos construímos nossos significantes mediados por objeto-interação dentro de uma conservação histórica, por que escolhemos manter padrões que comprovadamente acabam por trazer consequências psicofisiológicas nada agradáveis? 

A primeira resposta à minha pergunta, pode estar ecoando na mente de algum leitor mais libertário, não que eu mesma não seja libertária, agora mesmo, como conservadora, retrógrada e de fundo moral-religioso. No entanto, tenho a dizer que embora o pensamento monogâmico tenha referências sólidas no conservadorismo ocidental, ele é um aprendizado também representado pela natureza, porém ignorado. São exemplos de relações monogâmicas, a arara-vermelha, o castor europeu, o pinguim imperador, o cisne, o gibão, o lobo, a coruja e a águia careca. Seja quais forem as razões que estas espécies utilizem para manter afetos e relações únicas, elas o fazem de bom grado. Os cisnes, por exemplo, quando perdem seu parceiro de vida tendem a permanecer sós. Portanto, não é impossível à natureza humana cumprir estes padrões.

Penso eu, que nos processos coletivos o respeito e a busca por relações completas (não no sentido de completude) deveria ser uma prioridade, pois quanto mais próximas as relações estão do vernáculo confiança, melhor são as interações afetivas. No entanto, movidos pela pretensa paixão, o ser humano escolhe saciar a fome sexual sem compreender as funções afetivas existentes dentro dela. Observo nessas ações uma busca desenfreada por saciação (até não poder mais). O objeto de desejo passa a ser qualquer coisa, desprovida de afeto, desde que nos favoreça de forma amoral ou antiética. 

Movidos pelo impulso, justificado na nossa natureza fisiológica, agimos sob o domínio do nosso próprio instinto como se não tivéssemos o poder de dominá-lo ou detê-lo e mesmo sabendo que é possível dominá-lo não deveríamos fazê-lo já que isso iria contra a nossa necessidade do corpo biológico (seria burrice). Nesse caminho monogâmico ignorado, temos a defesa da vivência irrestrita dos instintos e desejos, significados em várias terminologias modernas para nomear as relações afetivas (patriarcado hipócrita que o diga). Obviamente, que não estou condenando quem assim deseja viver (sexo livre), mas apenas refletindo sobre a possibilidade de ousar ser monogâmico num estado moderno dialeticamente anti-monogâmico.

Recentemente, a atriz Samara Felipo declarou não acreditar na monogamia porque já experimentou em todas as suas relações afetivo-eróticas a dor da traição masculina e atualmente estar adepta à uma "monogamia afetiva", dando a entender que o corpo e os afetos ocupam lugares distintos. No velho clichê patriarcal: "... o que o corpo faz a alma perdoa". A partir dessa declaração, observa-se a grande confusão humana que distingue as sensações dos sentimentos. No entanto, sabe-se que toda sensação gera uma emoção expressa na forma de um sentimento (esse conceituado em nível de psiquismo). O sentimento, portanto, é o significado da experiência e pode ser compartilhado aos outros pela linguagem corporal ou verbal. 

É importante refletir sobre isso, porque a ação sempre reflete um conceito, ou seja, o conceito é aquilo que mantêm e impulsiona a forma como o ser humano interage com outros seres no mundo (práxis). Existe nessa reflexão a tentativa do desvelamento da tendência teórico-filosófica acerca da biologia humana que movimenta a prática sexual individual e coletiva. Por isso, amigo leitor, pode haver em nós mais do patriarcado do que nós julgamos ter. A ação da prática sexual "não monogâmica" tem uma história, cuja raiz ocidental é o patriarcado (poligamia israelita), na qual a mulher é o objeto do prazer pelo prazer para servir ao homem na procriação. Desde a antiga Grécia, as mulheres serviam apenas para a procriação (não para relações afetivas) e não foi diferente na posterior educação sexual cristã (o prazer e o afeto estava fora de questão). As mulheres historicamente foram conformadas para a monogamia. Talvez por isso elas saibam ser monogâmicas.

Um argumento contra a monogamia seria a existência de outros tipos de relação afetiva-sexual em culturas não ocidentais ou anterior a mesma. A questão é que estamos no ocidente, mergulhados nessa cultura e essa é a nossa realidade histórica. Não podemos afirmar as reações subjetivas existentes dentro de outras culturas, as quais são usadas para justificar a poligamia e outras formas de relações e práticas afetivas e sexuais. São processos históricos únicos, com a sua peculiaridade cultural e com desdobramentos próprios à sua realidade, que só pode ser observada na experiência dos povos e pelo indivíduo pertencente àquele tempo histórico. 

De qualquer maneira, saliento que não estamos falando de certo ou errado. Estamos falando daquilo que conforma às nossas ações a partir de um constructo teórico-filosófico acumulado historicamente. O resultado do que observamos como fenômeno sexual, nessa sociedade, é a solidão, a ausência de vínculos reais, a inautenticidade da vida e a venda da experiência traumática (já que eu não posso com eles, junto-me à eles) ao mercado sexual. E nessa onda de "amores líquidos" diz Zygmunt Bauman: "O amor está em sobreaviso, pautado no padrão dos bens de consumo: mantenha-o enquanto ele te trouxer satisfação, e o substitua por outros que prometem ainda mais satisfação".

Não descartemos toda a contradição existente na sociedade de classes, cuja base é a família judaico-cristã e que inaugura o tripé das relações extraconjugais masculinas livremente, mas também não descartemos a nossa própria incorporação desses mesmos conceitos "pseudo" libertários, mas que conservam em si os mesmos comportamentos machistas. Frida Kahlo que o diga, neh! Diego! 

Na era moderna, está aí, para a surpresa de Rita von Hunty, os exemplos de Samara Felipo e como exemplo de homem politizado escroto, o caso Luísa Sonza (Chico, ah! Chico) que não nos deixam mentir.

Sei bem o que é conviver com isso, é muito doloroso, principalmente para quem tem alma de pinguim. Para um pinguim, o que o corpo faz a alma sente sim e não perdoa.

 



Análise do Decreto 12.686/25: aspectos positivos e negativos

O  Decreto nº 12.686  foi promulgado no dia 20/10/2025 e institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva e a Rede Nacional de Ed...