segunda-feira, 9 de junho de 2025

Do palco pra vida, da vida ao palco: o limite da arte na promoção do pensamento.



Dizem que a vida imita a arte, mas acredito que a arte imita a vida, pois sendo a arte uma produção propriamente humana, ela é, com certeza, transpassada pela cultura social. Seria o mesmo que questionar o que vem primeiro, a machadinha ou a ideia da machadinha? Se como premissa básica a materialidade determina a necessidade produtiva que impulsiona a criação da ferramenta, também a arte se caracteriza pelo mesmo princípio, a necessidade de expor a vida em tela na expressão da arte para então refleti-la a partir dela mesma. 

Raymond Williams [1921-1988]  expõe que pensar a cultura social é trabalhar com a ambiguidade, porque opera sobre a vida concreta, sobre classes, indústria, política, família, crime, mas também no campo imaterial, religião, educação e conhecimento. Destarte, a partir de uma visão antropológica do século XIX, verifica-se uma amplitude de significados dados a cultura, desde a idealização da formação humana via religião e nacionalismo até o idealismo moderno da vida vivida nos processos sociais, bem como a ordenação política e econômica. Desta maneira, a cultura tem transitado entre o pensamento da globalidade e da parcimônia. 

Podemos distinguir uma gama de significados, desde (I) um estado mental desenvolvido - como em "pessoa de cultura", "pessoa culta", passando por (II) os processos desse desenvolvimento - como em "interesses culturais", "atividades culturais", até (III) os meios desses processos - como em cultura considerada "as artes" e o "trabalho intelectual dos homens" (Williams, 1992, p. 11). 

Nos dias atuais permanecem a terceira posição, acima discriminada, tanto no campo da sociologia, quanto da antropologia., entendendo cultura como um modo de vida global, tanto de um povo, como de um grupo. Segundo Williams (1992), a teoria de base e estrutura de Plekhanov (1953) defende que os fatos estruturais de base social são refletidos no concreto, nas obras artísticas, podendo ou não serem identificados. Essa teoria pode ser melhor compreendida a partir de Lukács (1950). Para esse último autor a ideia de "reflexo" expõe o fato de que as obras de arte incorporam diretamente a materialidade social pré-existente, mas é substituída de forma gradual pela ideia de mediação - "... modo indireto de relação entre a experiência e a sua composição" (p. 23). "A forma desse modo indireto é interpretada diversamente nos diferentes usos do conceito" (p. 24). 

Williams (1992) toma como exemplo o romance de Kafka, intitulado "O Processo", para expor sua leitura sob diferentes perspectivas: "1) mediação por projeção; 2) mediação pela descoberta de um 'correlato objetivo' e 3) mediação como função dos processos sociais básicos de consciência". Na primeira, o fenômeno aparece como projeção da realidade concreta, porém de forma conceitual indireta. Na segunda, ele aparece da personificação conceitual objetiva da realidade e na terceira, ele aparece de forma cristalizada, como se fosse uma verdade conceitual inquestionável e natural, no puro sentido da realidade alienada do autor e sua própria realidade social.

Para além destas questões, Williams (1992) aborda outra questão considerada por ele como de difícil discussão, o conceito de ideologia, porque divide-se dialeticamente entre a descrição de crenças formais e conscientes de uma classe ou grupo social e/ou a visão geral de mundo consciente e inconsciente de uma classe ou grupo social. Desta maneira, este conceito implica em saber sintetizar e diferenciar aquilo que representa a realidade concreta da vida social - expressão humana consciente e aquilo que é expressão de ficção, teatro, poesia ou lirismo. De qualquer jeito, trata-se da produção e/ou reprodução do pensamento humano na forma do conceito significado e resignificado. Trata-se, portanto, de uma linha tênue entre o aprovável e o reprovável.

A partir dessas discussões breves, questiona-se o limite da arte na promoção e/ou reprodução do pensamento social via cultura. Recentemente, o humorista Leo Lins recebeu uma sentença judicial que determinou sua prisão por oito anos e três meses de prisão, em regime fechado, devido a propagação de conceitos antiéticos e imorais em seu show de stand-up comedy: 2022divulgado no canal You Tube. 

As mídias sociais divulgaram comentários de pessoas influentes no campo artístico, entre outras áreas, contra a decisão do judiciário e também a favor. Vários foram os argumentos pró-decisão, bem como contrários à decisão judicial, entre eles, a garantia do direito à liberdade de expressão artística e o direito da defesa do direito das pessoas ofendidas pelo humorista em suas atuações de stand-up comedy

Fato é que o humorista em questão tem por costume desenvolver piadas sob temáticas raciais, físicas, sexuais e psicológicas, envolvendo questões humanas, cuja luta é assegurada pela lei vigente do país, disseminando via arte conteúdo dúbio e de desinformação para causas importantes referentes a pedofilia, ao feminismo, a lgbtfobia, ao racismo, a gordofobia, etc. 

Ao refletirmos sobre o papel fundante da arte como reprodutora e mediadora da materialidade concreta da vida humana, considerando a liberdade da expressão humana abordadas anteriormente, temos um entrave entre o limite da arte e sua influência sobre a vida humana. Williams (1989) apud Cevasco (2001) expõe que a cultura possui para si o sentido da vida cotidiana e a incorporação do significado geral da vida comum, reproduzida pela arte. Dessa maneira, pode-se refletir que as piadas de Leo Lins são tanto as reproduções da vida cotidiana brasileira - comum a todos, como a sua incorporação pela individualidade do ator no humor reproduzido. Por inferência, percebe-se as raízes conceituais estruturais na forma do preconceito reproduzidas na arte de Léo Lins, denotando a cristalização de pseudoverdades às quais são reiteradas no palco da vida e nos aplausos que a evocam. 

Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 13) expõem que:

Na perspectiva de Williams (1989) apud Cevasco (2001) questionar sobre a cultura é o mesmo que questionar coletivamente a nossa própria comunhão significativa (propositiva comunitária) e ao mesmo tempo questionar os significados individuais de caráter profundo, já  que  não  se  pode  entender  a  cultura  como  um  processo  individualizante,  pois  a  cultura pertence a todos não importando o tipo de sociedade ou as maneiras de pensar.

Portanto, a questão maior está no quanto as bases socioculturais brasileiras ainda mantém a hegemonia do pensamento excludente, que desenraiza os homens de sua existência cidadã (Martins, 1997). Ações contra o pensamento cristalizado e hegemônico que reiteram a exclusão de uma maioria que se torna minoria pela ausência de representatividade jurídica é essencial como garantia do existir social. No entanto, as punições repressivas com excesso da força podem surtir efeito rebote contrário ao que se deseja, tornando o "vilão" um "herói", como ocorreu com Edir Macedo em 1992. Afinal, se Leo Lins tem fã clube considerável numericamente, isso reflexiona a tensão social que se estabelece em sua defesa.

Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 13) afirmam a partir dos estudos de Raymond Williams que:

[...] o sistema central dominante implica diretamente na ação dos homens; porque estes agem sob a influência da hegemonia cultural dos significados e valores, em sua concretude, ou seja; eles são organizados, apreendidos e vividos pelos homens. Para entender como funciona uma cultura hegemônica deve-se compreender o processo social real em que ela acontece na prática. Esse processo é chamado de incorporação, as formas pelas quais os indivíduos apreendem a cultura e se apropriam dela como verdade.

Obviamente que não se defende as ações de Léo Lins, mesmo que em sua defesa esteja a liberdade de expressão artística e/ou a performance de sua persona humorística, haja vista o teor do conteúdo divulgado. Defende-se que o mesmo deva ser punido, pois a lei existe para tal, mas para além dessa questão "individualizante" estão questões prioritárias como, por exemplo, a transformação da forma do pensamento brasileiro acerca desses temas sensíveis, porque Léo Lins representa o pensamento comunitário, que infelizmente é naturalizado e aceito pela maioria da população brasileira, inclusive por pessoas atingidas pela sua linha de discurso.

Salienta-se que a educação e todas as suas implicações no seio comunitário, como a formação social familiar, do trabalho, da tradição, do intelecto - teórico, etc. são forças sociais imbuídas tanto na produção, quanto na reprodução da cultura e, portanto, precisam ser repensadas para a melhoria do quadro social dominante, pois a vida comunitária delas dependem (Williams, 2011). 

Melgaço, Santos e Toledo (2024, p. 19) reiteram o pensamento teórico de Raymond Williams no qual estão implicadas a ampliação da:

[...] conceituação para a compreensão de uma totalidade humana que não exclui as subjetividades mais profundas, compreendendo que os seres sociais são o produto de toda a cultura existente. E que a cultura não pode ser afastada do processo humano como princípio heterogêneo, pois isso corrobora para uma fragmentação da produção humana. Logo, as artes são uma produção capaz de transmitir e produzir cultura, bem como modificar cultura e transformá-la na medida em que acessa aos homens, levando-os ao despertar de sua consciência crítica. Isso retorna o homem a sua própria gênese.

Portanto, o caso Léo Lins serve para acender a luz sobre o papel da arte na propagação de formas de opressão ou de revolução conceitual, bem como do quanto a arte no tempo que produz e reproduz ação humana pode romper ou manter padrões sociais pré-existentes de forma direta ou indireta. A censura nesse caso, como mediação de conteúdo prejudicial a vida humana pode e deve ser pensada, não no sentido estrito da palavra, mas na forma do limite, afinal até onde a arte pode ir e quais são as leis que definem esses limites?

Acredita-se que há limites referentes a humanização que não devem ser ultrapassados e para reafirmá-los têm-se, historicamente, a Declaração dos Direitos da Mulher e Cidadã de 1791, a Lei nº 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha), a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, a Lei nº 7.716 de 1989 e a Lei nº 14.532 de 2023 (criminalização do racismo), o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 de 2015), o Projeto de Lei nº 7.292 de 2017 (dispõe sobre a criminalização da LGBTfobia) e etc. Como hipótese, têm-se que o limite da produção artística se encontre na justa forma da vida humana, em compromisso com a história humana, na qual a liberdade de uma pessoa começa na liberdade de outra e vice-versa. Isso, a meu ver, é primordial para a justiça dos processos coletivos.


REFERÊNCIAS:

CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.  

MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.

MELGAÇO, D. da C. A.; SANTOS, L. R. dos; TOLEDO, D. A. da C. Trabalho & cinema: correlações culturais na análise fílmica de “7 prisioneiros”. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, SP, v. 24, p. 1-23, 2024. DOI: 10.20396/rho.v24i00.8674334. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8674334. Acesso em: 19 abr. 2024.

WILLIAMS, R. [1921-1988]. Cultura: Sociologia. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

WILLIAMS, R. [1921-1988]. Cultura e Materialismo. Tradução: André Glaser. São Paulo: UNESP, 2011.


terça-feira, 27 de maio de 2025

REVISITANDO A INFÂNCIA: A ONDA REBORN.

A onda dos bebês reborn não é uma novidade, nem mesmo o uso dos objetos para coordenar em nível psíquico interno os significados. Sabemos que a vida começa por uma busca desenfreada pela sobrevivência e a afetividade é a arma com a qual lutamos para manter a humanidade intacta. Como integrantes da natureza (parte dela) somos movidos por instinto de sobrevivência que exige processos coletivos. Dentro dessa dinâmica, o ser humano cria uma rede de proteção, um aparato humano que se origina da necessidade de produção. Acredito que a linguagem é esta primeira necessidade, porque ela expressa aos outros o que precisamos para nos manter vivos. Inicialmente, esse processo não está definido pela palavra, mas por outras vias sensoriais, não verbais, por exemplo. Expressões corporais, comumente dizem com precisão o que estamos sentindo e experimentando na natureza. Obviamente que a comunicação é essencial para a manutenção do clã em segurança.

Note-se que para tanto a humanidade foi desenvolvendo maneiras de comunicar as necessidades coletivas adiante - a outros pares sociais. Podemos afirmar que os signos são essa ferramenta tão importante, como aparato de primeira grandeza, que garante a manutenção histórica da atividade de produção como evidência à sobrevivência das futuras gerações. Notemos que antes da escrita, a linguagem oral foi uma arma histórica poderosa.

O ser humano, portanto, precisa de interações sociais, isso é, pelo visto, um manual de sobrevivência psicofisiológica. No entanto, ao longo da história e com a ampliação tecnológica, o ser humano tem-se distanciado de relações reais para viverem as relações virtuais. Cada vez mais distantes dos processos naturais que envolvem a comunicação e a partilha das sensações, o ser humano a exemplo da máquina está se esquecendo de sua humanidade ao tentar tornar-se uma.

Estudiosos como Vigotski, Leontiev e Elkonin ao estudarem os processos de desenvolvimento cultural das crianças especificam o jogo ou as atividades de brincadeira na infância como um processo de interação que busca nas relações adultas a reprodução da atividade material e social. A brincadeira com bonecas, por exemplo, é uma forma de estabelecer e reproduzir as relações afetivas adultas com o objetivo de internalizar os sentidos e significados produzidos dentro da ação do cuidado. Afinal, quem de nós, pertencentes à sociedade ocidental, não brincou de papai, mamãe e filhinha?

Desde a pandemia, como exemplo do ápice do isolamento, estamos vivenciando um afastamento das atividades sociais mais comuns, que envolvem a interação humana em relação consigo e com a natureza. Cada vez mais dentro de pequenos espaços sociais, em frente aos tablets, ipods, notebooks, computadores, o ser humano se metaboliza num ser sem sentido, mas que sente. Antigamente, rodeados por uma família imensa, espaços amplos de interação, afastados da tecnologia e mais próximos da natureza éramos talhados na vida pela experiência da vivência comunitária. A gente aprendia a expressar os sentimentos, aprendia a abrandar as emoções e principalmente a ser humano com outro humano.

Atualmente, mais próximos das relações artificiais o ser humano adulto apresenta como sintoma, relações de interação inanimada, permeadas por um retorno à infância na justa forma da brincadeira, como exemplo temos a concretude da onda reborn. Claro, que há um marketing em cima dessa febre mercadológica, pois não há nenhuma evidência de que pessoas estejam por aí carregando reborn nos hospitais, farmácias e fóruns das cidades, mas essa hipótese levanta uma urgente necessidade em discutir as relações sociais e a necessidade humana de estar envolvida em relações afetivas de verdade. 

Antes da onda reborn, nós tínhamos o amor pelos pets, ou seja; relações afetivas com seres animados, que nos acolhem, esquentam e promovem carinho. É preocupante essa repentina necessidade de adultos jovens em regredir ao nível do pensamento por complexos. Isso denota uma grande ruptura com a realidade material e uma urgente necessidade de reorganizar o pensamento. Segundo Vigotski (1998) as crianças generalizam no pensamento aquilo que não experienciam na vida real, utilizando-se de recursos sensório-emocionais já experimentados em outra realidade e que estão acomodados em nível de psiquismo, ou seja; tendem às analogias.

Note-se que a criação de um pseudoconceito vem justamente da incapacidade momentânea de experimentar a vida concreta por meios materiais consistentes. A imaginação fica em alta, criando complexos associativos e imagens sincréticas.

A formação de complexos inicia-se quando uma mesma palavra tem diferentes significados em diferentes situações, desde que haja qualquer nexo associativo entre esses significados. Como as crianças com certa idade pensam por pseudoconceitos, haverá significados que não serão aceitos pela lógica dos adultos. Dependendo do que seja, ela pode ter diferentes atributos concretos, portanto pode ter vários nomes. A utilização de um ou de outro depende do complexo que seja ativado em um determinado momento (Vigotski, 1998 apud Dias et. al, 2014, p. 496).

Ao frigir os ovos, percebe-se que o mundo adulto está permeado por ausências e a palavra cada vez mais extinta. Isso expõe a urgente necessidade de revisitar a infância e as interações humanas presentes lá. Talvez, como insistente ânsia por reestabelecer conceitos antigos. Afinal, “(...) a palavra é o microcosmo da consciência” (Vigotski, 1998, p. 190). Dias et. al. (2014, p. 494) afirma que a palavra "... é um instrumento de análise da informação, visto que percorre um caminho até ser internalizada e adquirir a função de analisar e generalizar um objeto; o conceito é o mediador que permite adquirir o significado da palavra".

Parece-nos que o ser humano desaprendeu o significado dos conceitos, interação afetiva, reciprocidade e cuidado. Dessa maneira, quando diante da extrema solidão proporcionada por essa adoecida sociedade moderna, os sintomas psicológicos aparecem na retomada da brincadeira, talvez na tentativa de recuperar os conceitos antes apreendidos e em desuso. Estamos na adultice tentando ressignificar a vida através da imaginação, pois na falta do real tendemos a criar a imagem do real. Nada mais humano que isso.

REFERÊNCIAS:

DIAS, M. S. DE L. et al.. A formação dos conceitos em Vigotski: replicando um experimento. Psicologia Escolar e Educacional, v. 18, n. 3, p. 493–500, set. 2014.

Vygotsky, L., S.. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

domingo, 25 de maio de 2025

A velha monogamia

Foto: Dominique Filippi / Flickr. Extraído de https://www.worldanimalprotection.org.br/mais-recente/blogs/8-animais-que-sao-fieis-aos-seus-parceiros/. 

Minha reflexão hoje se acomoda entre a ação-reação humana que justifica a multiplicidade de parceiros sexuais a associando às necessidades biológicas da fisiologia humana. Para tanto, verifica-se um intenso esforço em recorrer a fisiologia dos macacos e outros animais não monogâmicos a fim de justificar a monogamia como uma atividade construída pelos homens para subjugá-los ao sistema capitalista. Não que este argumento perca a sua verdade histórica. A questão que abordo não está localizada na evidência social e histórica de que a humanidade por longos anos manteve diferentes maneiras de se relacionar socialmente e de estabelecer seus vínculos afetivos e sexuais, mas no porque o ser humano exclui os poucos, mas existentes exemplos de monogamia na natureza. 

Se dotados de capacidade reflexiva, nós seres humanos construímos nossos significantes mediados por objeto-interação dentro de uma conservação histórica, por que escolhemos manter padrões que comprovadamente acabam por trazer consequências psicofisiológicas nada agradáveis? 

A primeira resposta à minha pergunta, pode estar ecoando na mente de algum leitor mais libertário, não que eu mesma não seja libertária, agora mesmo, como conservadora, retrógrada e de fundo moral-religioso. No entanto, tenho a dizer que embora o pensamento monogâmico tenha referências sólidas no conservadorismo ocidental, ele é um aprendizado também representado pela natureza, porém ignorado. São exemplos de relações monogâmicas, a arara-vermelha, o castor europeu, o pinguim imperador, o cisne, o gibão, o lobo, a coruja e a águia careca. Seja quais forem as razões que estas espécies utilizem para manter afetos e relações únicas, elas o fazem de bom grado. Os cisnes, por exemplo, quando perdem seu parceiro de vida tendem a permanecer sós. Portanto, não é impossível à natureza humana cumprir estes padrões.

Penso eu, que nos processos coletivos o respeito e a busca por relações completas (não no sentido de completude) deveria ser uma prioridade, pois quanto mais próximas as relações estão do vernáculo confiança, melhor são as interações afetivas. No entanto, movidos pela pretensa paixão, o ser humano escolhe saciar a fome sexual sem compreender as funções afetivas existentes dentro dela. Observo nessas ações uma busca desenfreada por saciação (até não poder mais). O objeto de desejo passa a ser qualquer coisa, desprovida de afeto, desde que nos favoreça de forma amoral ou antiética. 

Movidos pelo impulso, justificado na nossa natureza fisiológica, agimos sob o domínio do nosso próprio instinto como se não tivéssemos o poder de dominá-lo ou detê-lo e mesmo sabendo que é possível dominá-lo não deveríamos fazê-lo já que isso iria contra a nossa necessidade do corpo biológico (seria burrice). Nesse caminho monogâmico ignorado, temos a defesa da vivência irrestrita dos instintos e desejos, significados em várias terminologias modernas para nomear as relações afetivas (patriarcado hipócrita que o diga). Obviamente, que não estou condenando quem assim deseja viver (sexo livre), mas apenas refletindo sobre a possibilidade de ousar ser monogâmico num estado moderno dialeticamente anti-monogâmico.

Recentemente, a atriz Samara Felipo declarou não acreditar na monogamia porque já experimentou em todas as suas relações afetivo-eróticas a dor da traição masculina e atualmente estar adepta à uma "monogamia afetiva", dando a entender que o corpo e os afetos ocupam lugares distintos. No velho clichê patriarcal: "... o que o corpo faz a alma perdoa". A partir dessa declaração, observa-se a grande confusão humana que distingue as sensações dos sentimentos. No entanto, sabe-se que toda sensação gera uma emoção expressa na forma de um sentimento (esse conceituado em nível de psiquismo). O sentimento, portanto, é o significado da experiência e pode ser compartilhado aos outros pela linguagem corporal ou verbal. 

É importante refletir sobre isso, porque a ação sempre reflete um conceito, ou seja, o conceito é aquilo que mantêm e impulsiona a forma como o ser humano interage com outros seres no mundo (práxis). Existe nessa reflexão a tentativa do desvelamento da tendência teórico-filosófica acerca da biologia humana que movimenta a prática sexual individual e coletiva. Por isso, amigo leitor, pode haver em nós mais do patriarcado do que nós julgamos ter. A ação da prática sexual "não monogâmica" tem uma história, cuja raiz ocidental é o patriarcado (poligamia israelita), na qual a mulher é o objeto do prazer pelo prazer para servir ao homem na procriação. Desde a antiga Grécia, as mulheres serviam apenas para a procriação (não para relações afetivas) e não foi diferente na posterior educação sexual cristã (o prazer e o afeto estava fora de questão). As mulheres historicamente foram conformadas para a monogamia. Talvez por isso elas saibam ser monogâmicas.

Um argumento contra a monogamia seria a existência de outros tipos de relação afetiva-sexual em culturas não ocidentais ou anterior a mesma. A questão é que estamos no ocidente, mergulhados nessa cultura e essa é a nossa realidade histórica. Não podemos afirmar as reações subjetivas existentes dentro de outras culturas, as quais são usadas para justificar a poligamia e outras formas de relações e práticas afetivas e sexuais. São processos históricos únicos, com a sua peculiaridade cultural e com desdobramentos próprios à sua realidade, que só pode ser observada na experiência dos povos e pelo indivíduo pertencente àquele tempo histórico. 

De qualquer maneira, saliento que não estamos falando de certo ou errado. Estamos falando daquilo que conforma às nossas ações a partir de um constructo teórico-filosófico acumulado historicamente. O resultado do que observamos como fenômeno sexual, nessa sociedade, é a solidão, a ausência de vínculos reais, a inautenticidade da vida e a venda da experiência traumática (já que eu não posso com eles, junto-me à eles) ao mercado sexual. E nessa onda de "amores líquidos" diz Zygmunt Bauman: "O amor está em sobreaviso, pautado no padrão dos bens de consumo: mantenha-o enquanto ele te trouxer satisfação, e o substitua por outros que prometem ainda mais satisfação".

Não descartemos toda a contradição existente na sociedade de classes, cuja base é a família judaico-cristã e que inaugura o tripé das relações extraconjugais masculinas livremente, mas também não descartemos a nossa própria incorporação desses mesmos conceitos "pseudo" libertários, mas que conservam em si os mesmos comportamentos machistas. Frida Kahlo que o diga, neh! Diego! 

Na era moderna, está aí, para a surpresa de Rita von Hunty, os exemplos de Samara Felipo e como exemplo de homem politizado escroto, o caso Luísa Sonza (Chico, ah! Chico) que não nos deixam mentir.

Sei bem o que é conviver com isso, é muito doloroso, principalmente para quem tem alma de pinguim. Para um pinguim, o que o corpo faz a alma sente sim e não perdoa.

 



Do palco pra vida, da vida ao palco: o limite da arte na promoção do pensamento.

Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/raymond-williams-visionario-do-ecossocialismo/ Dizem que a vida imita a arte, mas acr...