quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Filme "A Onda" - Texto meu para aula de Processos Grupais




O Filme “A Onda” apresenta um enredo interessante baseado em fatos reais. Um professor chamado Ross ao ensinar sobre autocracia inicia uma experiência educacional instigante revivendo um modelo autoritário e ditatório. Tudo se inicia a partir de um “insight” gerado por uma pergunta referente à Ditadura de Hitler na Alemanha, período em que ocorreu o Holocausto de Judeus e Ciganos.
Souza (2017) afirma que “os homossexuais, opositores políticos de Hitler, doentes mentais, pacifistas, eslavos e grupos religiosos, tais como as Testemunhas de Jeová, também sofreram com os horrores do Holocausto”.
Segundo Souza (2017) “O Holocausto foi uma prática de perseguição política, étnica, religiosa e sexual estabelecida durante os anos de governo nazista de Adolf Hitler”. O filme trás luz a uma prática hegemônica que produziu prejuízos incalculáveis às nações e civilizações principalmente no quesito “humanitário”.
A pergunta que o filme apresenta a priori é: “Como considerá-los inocentes diante de tal genocídio? Como poderíamos afirmar que não tenham visto os horrores da proposta brutal daquele governo?
Apresentamos aqui alguns diálogos iniciais do filme que instigaram o Professor Ross a pesquisar e propor a experiência:


Amy pergunta: “E como ninguém tentou impedir isso?” Ross: “Disseram que não sabiam o que estava acontecendo”. Eric: “Como se pode matar 10 milhões de pessoas sem ninguém notar?” Ross: “Depois da guerra os alemães alegaram que nada sabiam sobre os campos de concentração ou as matanças”. Laurie: “Como os alemães puderam ficar inertes enquanto os nazistas chacinavam gente em volta deles e fingiram ignorância? Como puderam fazer isso, eu realmente não entendo.” (GRASSHOFF, 1981)


A partir dessa questão o professor resolve promover uma vivência de grupo a luz da lógica nazista. Sem que os alunos se apercebam da experiência o educador se propõe a induzir os alunos do Ensino Médio à ordem, disciplina e ideologia de comunidade única. Sob o lema: “Poder, Disciplina e Superioridade”.
Curiosamente professor Ross se surpreende pela adesão ao seu programa e pela fácil aceitação da turma as regras impostas e ideologia proposta. A ideia supera o teste e curioso pela expectativa do devir ele prossegue com sua experiência.
Fica claro ao telespectador a intencionalidade do diretor e produtor em conduzi-los a reflexão de como os seres humanos são suscetíveis as influencias das lideranças e como essas se sobrepõem ao grupo naturalmente, num ato extremamente passivo, dada a não reflexão.
Observamos no filme que muitas das imposições de Ross remontam nossas aulas de Educação Física do Ginásio, onde éramos treinados à disciplina e exercícios repetitivos de ginástica. Segundo Bernardo (2009, p. 01):


Se o taylorismo é a disciplina do corpo para a produção, o fascismo foi a disciplina do corpo para a política. Na experiência pedagógica daquele professor tudo começou com gestos simples, o levantar e o sentar, o estar sentado direito e de pés juntos. E o professor tinha razão, porque antes de ser uma ideologia ou uma forma de governar, o fascismo fora acima de tudo um ritual coletivo, a encenação diariamente repetida da hierarquia e da submissão, da ordem enquanto anulação do indivíduo na grande coletividade, na pátria ou na raça. (BERNARDO, 2009, p.01).


Tudo na postura de Ross trazia um revestimento de ação coletiva submissa às ordens, desde os comandos como também a maneira de responder, se posicionar, reagir, responder. Ross remonta as cenas do exército e a rigidez que enfatiza as hierarquias e o respeito à autoridade.
Além disso, o movimento evolui de forma que há a adoção de símbolos, rituais e uniformes. O uniforme escolhido relembra o traje nazista. A uniformização carrega consigo uma falsa ideia de igualdade, homogeneidade social. Durante muito tempo no Brasil a utilização de uniformes na escola mascarava as diferenças. A falsa ideia de que todos estão na mesma medida e lugar.
O totalitarismo se manifesta enquanto ação. Não há mais necessidade de gastar tempo com os amigos ou namorada, porém somente ao grupo e seus membros. Percebemos que as aulas deixaram de ter um cunho mediador de conhecimento e passaram a ser a afirmação de identidade daquele grupo. Não havia mais vida privada, não havia saída para pensar e se relacionar fora do grupo, ou seja, a existência fora reduzida a uma única maneira de ver as coisas.
Segundo Ferrari (2008, p. 01):

Freire criticava a idéia de que ensinar é transmitir saber, porque para ele a missão do professor era possibilitar a criação ou a produção de conhecimentos. Mas ele não comungava da concepção de que o aluno precisa apenas de que lhe sejam facilitadas as condições para o auto-aprendizado. Freire previa para o professor um papel diretivo e informativo - portanto, ele não pode renunciar a exercer autoridade. Segundo o pensador pernambucano, o profissional de educação deve levar os alunos a conhecer conteúdos, mas não como verdade absoluta. Freire dizia que ninguém ensina nada a ninguém, mas as pessoas também não aprendem sozinhas. "Os homens se educam entre si mediados pelo mundo", escreveu. Isso implica um princípio fundamental para Freire: o de que o aluno, alfabetizado ou não, chega à escola levando uma cultura que não é melhor nem pior do que a do professor. Em sala de aula, os dois lados aprenderão juntos, um com o outro - e para isso é necessário que as relações sejam afetivas e democráticas, garantindo a todos a possibilidade de se expressar.(FERRARI, 2008, p. 01) 


Muito interessante a colocação de Freire apud Ferrari (2008) de que “os homens se educam entre si mediados pelo mundo”, porém no processo grupal daquele grupo houve se assim podemos chamar uma “deseducação” ou um retrocesso das relações mediadoras do educador – educando, visto que “A Onda” deu aos alunos a sensação de que havia uma segurança e um sentido naquela comunhão coletiva, porém arrancou deles a autonomia que foi delegada a outrem na heteronomia.
Bernardo (2009, p. 01) expõe em seu artigo:

Através da hierarquia instaurada, tudo é dado inevitavelmente ao chefe do grupo, por isso ele pode aparecer como o generoso dispensador de benesses e de conselhos. O autoritarismo não é senão a exploração afetiva dos que se entregam à autoridade. O carisma não emana do chefe, é-lhe dado pelos que acreditam nele e que não têm consciência de que recebem de volta no plano simbólico aquilo que lhe concederam no plano real. (BERNARDO, 2009, p.01).

Mailhiot (1973) explica que Lewin (1965) no início se propôs a estudar o comportamento individual e sua ação que partia da estrutura estabelecida entre o indivíduo e o ambiente respeitando o tempo e o momento. Para ele essa “estrutura” é que era considerado um “campo dinâmico”, ou seja, o que proporcionava o equilíbrio. Seria um sistema de força em equilíbrio e quando por algum motivo esse campo se rompesse ocorreria, então, a tensão no sujeito e automaticamente em seu comportamento, pois seria através do comportamento que o mesmo indivíduo tentaria recuperar ou restabelecer o equilíbrio.
Segundo Lane (1984, p. 80):

[...] 1) o significado da existência e da ação grupal só pode ser encontrado dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade, com suas determinações econômicas, institucionais e ideológicas; 2) o próprio grupo só poderá ser conhecido enquanto um processo histórico, e nesse sentido talvez fosse mais correto falarmos em processo grupal do que em grupo. (Lane, 1984, p.80).

Para Lane (1984) existem diferentes conceitos de grupos. Há uma postura tradicional que teria por função a identificação de papéis e identidade social a fim de manter a harmonia das relações sociais objetivando a produtividade e, há também; outras posturas que são mais mediatizadoras, que se preocupam com os processos de produção, ou seja, enfatizam como os grupos se produzem e quais processos participam dessa produção. Para esses há determinantes sociais que são mais abrangentes e que estão presentes nas relações grupais.
Mailhiot (1973, p. 33) afirma que para Lewin o grupo ao qual o individuo pertence é comparado a um terreno para obtenção ou não de determinado status social e a medida que esse grupo fornece esse status entrega ao seu participante a sensação de estar seguro. Para ele essa segurança está relacionada a “fluidez ou a solidez” desse terreno aonde o indivíduo se posiciona já que este pode ou não identificar-se nesse grupo enquanto parte.
Observamos que no caso exposto no filme a relação de liderança que se apresenta é a tradicional que pressupõe a presença de um líder carismático e convincente/inspirador. A autocracia nesse caso apresenta-se como a forma aceitável de governo ou liderança.
Lara (2012) expõe que nesse tipo de liderança há uma centralização das decisões e imposição de ordens ao grupo. Há uma ausência de espontaneidade, iniciativa e formação de grupos de amizade. Por outro lado a tensão, frustração e agressividade estão presentes. Tudo está e acontece na presença do líder.
Por ser um individuo social o homem busca em suas relações inspiração na forma de ídolos e mestres. Essa postura é histórica, aliás, é da história humana. O filme retrata claramente como muitas vezes os jovens são suscetíveis às influencias sociais de “ídolos” ou “personagens em destaque”, justamente porque estão em busca de um lugar ao Sol ou poderíamos dizer que estão formando sua identidade social.
Para Vigotsky (1995) apud Pasqualini (2010, p. 167-168) “a gênese das funções psicológicas exclusivamente humanas não é biológica, mas fundamentalmente cultural”. Ainda de acordo com Pasqualini (2010, p. 170) “[...] ao longo de seu desenvolvimento, a criança assimila as formas sociais da conduta e as transfere para si mesma, ou seja, a criança começa a aplicar a si própria as mesmas formas de comportamento que a princípio outros aplicavam a ela.”
Mailhiot (1973, p.43-44) expõe que de acordo com Kurt Lewin (1973) as minorias que abrem mão de sua identidade optando pela cordialidade das relações geralmente acabam por repetir as atitudes coletivas da maioria. Interessante que ele expõe que essas atitudes coletivas de minorias são particularmente de adolescentes porque esses tentam passar despercebidos acreditando que serão aceitos. Temem tanto não pertencer ao seu grupo de origem, como também ao grupo majoritário.
No filme percebemos que a homogeneização das diferenças fez bem aqueles adolescentes e esses movidos pela necessidade da aceitação e equiparamento assumiram a identidade de seu mestre negando possibilidades de pensar diferente ou questionar os posicionamentos impostos. Tudo que fosse fora da Onda deveria ser eliminado. Houve a partir daí a discriminação e segregação da minoria e a instalação do medo e agressividade.
Observamos que a princípio a heroína (Laurie) era respeitada e seguida pela maioria e que Robert era rejeitado e humilhado pela maioria sofrendo bullying. Após o movimento “A Onda” a situação se inverte e Laurie passa a ser perseguida e humilhada por não se adequar ao movimento. Enquanto Robert passa a ser aceito e bem posicionado na relação grupal.
No filme “A Onda” observamos que os educandos a partir da proposição do movimento sentiram-se atraídos e convocados a viver aquela experiência. De certa forma aglutinaram-se em torno das tarefas propostas e objetivaram algo em comum, no caso: “Poder, Disciplina e Superioridade”, porém de forma alguma os estruturou na coletividade, enquanto grupo. Em algum momento ou tempo, para algumas pessoas do grupo, a ficha caiu e veio a tensão que afetou o comportamento coletivo. A fim de manter o equilíbrio alguns alunos passaram a utilizar-se da força e da pressão amedrontadora para restabelecer o equilíbrio da unidade proposta. O uso da agressividade e da violência tornou-se necessária e justificável.
Del Cueto & Fernandes (1985) ao estudarem a dinâmica dialética de como os grupos se desenvolvem indicaram que existe um papel aglutinador dos sujeitos ao redor de uma tarefa ou de um objetivo que seja comum e que esse é muito mais “convocante” do que “estruturante” do conjunto de pessoas e embora a tarefa reúna o grupo ela não consegue construir ou dotar o grupo de uma estrutura que seja coletiva. Para eles essas ideias têm consequências para a pesquisa-ação-participativa. Faz-se necessário como aspecto importante considerar a indispensabilidade de depositar valor no processo de pesquisa e no desenvolvimento do grupo.
Segundo Mailhiot (1973, p.46):

Não há diagnóstico de uma situação social concreta que possa ser formulada sem a exploração da dinâmica própria do grupo implicado por esta situação. Do mesmo modo, a dinâmica própria de um grupo não se revelará realmente, senão ao pesquisador que tenha conseguido assimilar todos os dados concretos da vida deste grupo. A pesquisa em psicologia social, conclui Lewin, deve originar-se a partir de uma situação social concreta a modificar. E deve inspirar-se constantemente nas transformações e nos componentes que surgem durante e sob a influência da pesquisa (Mailhiot, 1973, p.46).

Ainda segundo Mailhiot (1973, p. 50) “os fenômenos grupais são irredutíveis e não podem ser explicados à luz da psicologia individual. Toda dinâmica de grupo é a resultante do conjunto das interações de um espaço psicossocial”.
Portanto, as relações grupais não são de forma alguma exclusivamente individuais porque necessitam da coletividade da ação. Um ato individual por si só não implica numa ação coletiva, mas se houver de alguma forma identificação com o ato esse se coloca na dimensão da coletividade. Para que um sujeito se identifique com a ação deve-se levar em consideração a sua formação psicológica, social e cultural. Por quê? Porque todo ser antes de ser individual é produto do seu meio e de sua cultura, logo é um ser histórico.
Essa relação identitária reflete o conjunto de todos os valores, vivências e construções sociais que moldaram a “psique” do sujeito social. Valores e construções que tem uma história, ou seja, uma razão para ser da forma que é.
Tozoni-Reis & Tozoni-Reis (2017, p. 10) afirmam que:

O desenvolvimento da dinâmica de grupo manteve as premissas metodológicas da pesquisa-ação. A pesquisa social é indissociável da ação, portanto, seu sentido é favorecer ou provocar mudança. Que tipo de mudança? A que corresponde a uma necessidade do grupo sujeito. Também são indissociáveis mudança social e controle social: o experimento deve fazer sentido para o grupo envolvido que deve se apropriar intencionalmente do processo de mudança. (Tozoni-Reis & Tozoni-Reis, 2017, p. 10).

Ainda, de acordo com Mailhiot (1973, p. 47), Lewin acredita que os fenômenos de um grupo não deixam claro quais são suas leis internas e dinâmicas em marcha. Para ele cabe aos pesquisadores envolverem-se nessa dinâmica pessoalmente respeitando todos os processos de evolução e os sentidos impressos na história do grupo. Cabe a esse pesquisador corresponsabilizar-se dessa realidade social que ele tenta explicar, mas sem deixar de lado a sua própria história. Essa pesquisa deve ocorrer numa ação participante e observadora e em lócus, ou seja; “[...] decorre para ele a necessidade de, durante suas pesquisas, assumirem constantemente os dois papéis complementares de participante e de observador”. (Mailhiot, 1973, p.47).  
Zimerman (1993) expõe que o grupo é responsável pela construção da identidade, ou seja, ele é a “célula-base” onde os sujeitos apropriam-se dos valores, normas e comportamentos, ao mesmo tempo em que se apropriam de necessidades. Inicia-se nessa relação grupal uma dinâmica dialética que se mantêm e que acaba por desenvolver-se durante toda a existência dos indivíduos. São as intersubjetividades, ou seja, as relações de várias subjetividades que acabam por se tornar elementos socioculturais. A identidade individual e grupal existe concomitantemente porque ao mesmo tempo em que a identidade individual se constrói a do grupo também se realiza.
Del Prette (1990) em seu artigo explica que a filiação e a participação em grupos se aplicam universalmente na vida comunitária/social. Para ele o sujeito se torna parte de distintos grupos sociais e é essa filiação pertencente que induz a maior parte de suas relações sociais. “O pertencer psicológico a um grupo apresenta características empíricas tidas como consensuais na Psicologia Social”. (Del Prette, 1990, p. 37).
O autor segue elencando que a primeira característica do pertencimento psicológico é a perceptual, a segunda é a interdependência e a terceira a estrutura social. Na primeira os indivíduos se auto-definem, ao mesmo tempo em que são definidos pertencentes a um grupo, pois compartilham de uma visão/olhar que os tornam distintos dos demais. É “o "nós" em oposição ao "eles".”. (Del Prette, 1990, p. 37). Na segunda os indivíduos percebem que existem necessidades e que essas precisam ser supridas, então providenciam a satisfação das mesmas numa relação de troca. E enfim, a terceira, é o gerenciamento das interações individuais que acabam necessitando de um conjunto de regras, ou seja, é preciso regular as relações e para isso criam-se as normas, valores e status que se diferenciam e são compartilhados.
Del Prette (1990, p. 37) afirma:

Poder-se-ia argumentar, no entanto, que essas características são apropriadas quando se trata de grupos pequenos, podendo não satisfazer inteiramente quando se considera grupos amplos, como por exemplo uma nação. É de fato, a exceção da perceptual, as demais não se configuram como condição presente na maioria dos grupos amplos. (Del Prette, 1990, p. 37).

No filme “A Onda” verificamos como realmente esse pertencimento psicológico é uma priori na vida humana e como as relações grupais influenciam na formação do auto-reconhecimento, ou seja, da identificação do eu. Aqueles jovens a princípio se auto perceberam e definiram parte de um grupo chamado “A Onda” e também foram percebidos pelos outros como tal devido a objetização olhística que os tornaram distintos. Dessa forma a ideia de “nós” em oposição a “eles” ficou bem evidente quando outros indivíduos não se adequaram ao movimento por não identificarem-se com as ideologias propostas pelo grupo.
Consequentemente passaram a verificar algumas necessidades e começaram a tratar de supri-las. Aglutinaram-se em torno de seus objetivos buscando a satisfação total como realização idealística. A violência e agressividade tornaram-se armas para a conquista dos ideais.
Por último o grupo passou a criar um conjunto de regras internas, normatizações e status. Coisas como “isso deve”, “isso não deve”, simbolismos, trajes, maneira de se comportar, etc. Toda essa regulação os identificava e os colocava a vista, em foco.
Del Prette (1990, p. 38) ainda sobre filiação grupal afirma:

A filiação a diferentes grupos sociais constitui a base para o desenvolvimento da identidade social do indivíduo. Esta Identidade relaciona-se com o conceito que a pessoa tem sobre si mesma e é derivada das suas filiações. O indivíduo adquire a consciência de pertencer a um grupo e tende a diferenciá-lo dos demais, maximizando os seus aspectos positivos e classificando os outros segmentos sociais em termos valorativos. Quando a filiação a um grupo contribui negativamente para a sua identidade social pode ocorrer tentativas de abandonar o grupo e, na sua impossibilidade, o indivíduo procura melhorar o próprio status grupal em relação a outras categorias sociais. (Del Prette, 1990, p. 38)

Verificamos que foi exatamente isso que ocorreu com o movimento “A Onda” exposto no filme de Gansel e Grasshoff. Os indivíduos adquiriram a consciência de que pertenciam aquele movimento e tentaram diferenciarem-se dos demais exaltando os aspectos positivos de pertencerem aquele grupo impingindo aos outros um menor valor. Também foi o que ocorreu com Laurie. Ao se aperceber de que aquela identidade grupal lhe era prejudicial, não somente a ela, mas também aos demais, ela abandona a coletividade para uma luta individual que resultou num ponto de luz o que abriu a cortina para o desvencilhamento da Onda.

Referências Bibliográficas:

BERNARDO, João. Passa a Palavra: A Onda: cultura. Nov. 2009. Disponível em: <http://passapalavra.info/2009/11/15523>, Acesso em 08 set. 2017.

CAPITÃO, Claudio Garcia; Heloani, José Roberto. A identidade como grupo, o grupo como identidade. Aletheia, n.26, p.50-61, jul./dez. 2007. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/pdf/aletheia/n26/n26a05.pdf>, Acesso em: 09 set. 2017.

DEL CUETO, A M. & FERNANDES, A M. In: BAREMBLIT, G. (org).  Lo grupal 2.  Bueños Aires: Ed. Búsqueda, 1985.

DEL PRETTE, Almir. Movimentos sociais como tema de diferentes áreas de estudo. Psicologia: Ciência e Profissão, vol.10 no.1 Brasília  1990. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pcp/v10n1/11.pdf>, Acesso em 09 set. 2017.

FERRARI, Marcio. Paulo Freire, o mentor da educação para a consciência. REVISTA NOVA ESCOLA. Outubro/2008. Disponível em: <https://novaescola. org.br/conteudo/460/mentor-educacao-consciencia>, Acesso em 08 set. 2017.

LANE, S.T.M. O processo Grupal. In: LANE, S.T.M. & CODO, W. (orgs). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.

LEWIN, K. Teoria de campo em Ciência Social. São Paulo: Pioneira, 1965.

MAILHIOT, G.B. Dinâmica e gênese dos grupos: atualidades das descobertas de Kurt Lewin. 2 ed, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973.

PASQUALINI, Juliana Campregher. O papel do professor e do ensino na Educação Infantil: a perspectiva de Vigotski, Leontiev e Elkonin. p.161. (In) MARTINS, LM., and DUARTE, N., orgs. Formação de professores: limites contemporâneos e alternativas necessárias [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 191p.

SOUSA, Rainer Gonçalves. "Holocausto"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiag/holocausto.htm>. Acesso em: 06 set. 2017.

The Wave (A Onda), Direção: Dennis Gansel, Produção: Alexander Grasshoff, USA: 1981. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=159&v= QBjeX5jPRi4>, Acesso em: 06 set. 2017.

TOZONI-REIS, Marília Freitas de Campos; TOZONI-REIS, José Roberto. Conhecer, Transformar e Educar: Fundamentos Psicossociais para a Pesquisa-ação-participativa em Educação Ambiental. Botucatu: UNESP. Grupo de Estudos em Educação Ambiental, n. 22. Disponível em: <http://27reuniao.anped. org.br/gt22/t228.pdf>, Acesso em: 09 set. 2017.

ZIMERMAN, D.E. (1993). Fundamentos básicos das grupoterapias. Porto Alegre: Artes Médicas.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Conceitos de simbolismo de 1ª ordem e de 2ª ordem:desenvolvimento da linguagem escrita.

1. Descreva o processo de desenvolvimento da linguagem escrita no contexto social histórico cultural humano, e individual na microgênese infantil. Explique os conceitos de simbolismo de 1ª ordem e de 2ª ordem nesse processo.

2. Qual o papel da atividade do brincar e do brinquedo no processo de desenvolvimento intrínseco/extrínseco e das funções psicológicas superiores?

Questão 1.

            A palavra é uma matriz complexa que abarca diversas pistas, sons, estruturas, vocabulários e sentidos e que a depender da situação contextual é muito variável. A palavra é indispensável à fala, atividade pelo qual o indivíduo comunica-se oralmente e vocalicamente na transmissão de informação. Atividade, essa, chamada de “linguagem”. “A fala é baseada na palavra, mas também na frase, que é a unidade básica da expressão narrativa em que ocorre uma combinação de palavras em conformidade com as normas da língua” (LURIA, 1981, p. 269 apud MARTINS, 2013, p. 167).
A língua por sua vez representa um modo específico de comunicação linguística que opera por signos estruturados em vocabulário, gramática e sistema fonético que oferece interação e trocas comunicativas entre os indivíduos, sendo assim uma atividade intelectual (MARTINS, 2013, p. 167).
A partir do momento em que o homem passou a fazer representações objetais e de acontecimentos utilizando-se da palavra ele libertou-se “do campo sensorial imediato” para uma atividade evolutiva: o pensamento. A palavra, portanto, exige mediação de outros indivíduos, porque ela é uma condição social e desenvolvida nas relações sociais (MARTINS, 2013, p. 168).
Na criança a “voz” está posta a princípio como uma forma de linguagem, mas que está relacionada a um estado orgânico, emocional como um reflexo condicionado. A voz torna-se um substituto da linguagem mais elementar. Em seu primeiro ano de existência a linguagem infantil tem por base as reações incondicionadas (instintivas e emocionais) (VYGOTSKY, 1989).
Essas reações acabam por sua vez evoluindo e diferenciando-se ao longo do processo e a criança apropria-se da linguagem mais estruturada passando a cumprir uma função de contato social, no entanto, ainda não corresponde à linguagem propriamente dita, já que a relação está posta entre objeto e palavra sendo uma etapa “pré-linguística” (VYGOTSKY, 1989).
Existe, portanto, uma relação primária entre a palavra, percepção, representação ou imagem aonde umas palavras vão dando origem a outras palavras. Os signos não aparecem na criança espontaneamente, logo elas se apropriam daquilo que lhes é passado por outras pessoas e somente com o tempo tornam-se conscientes das funções que cada signo possui (MARTINS, 2013).
Gradualmente a palavra vai deixando de ser uma simples extensão objetal ou de propriedade para ser propriamente signo, para tanto o indivíduo passa a realizar conexões mais complexas entre objeto e funções, os equivalentes funcionais (etapa “linguística-fonética”). A criança aprende a função social dos signos iniciando o processo da comunicação em si e a necessidade de conhecer o mundo (MARTINS, 2013).
A aprendizagem da linguagem escrita exige esforço e atenção tanto de quem ensina como daquele que aprende. O primeiro gesto da criança são os desenhos e rabiscos e esses estão ligados à origem dos signos escritos (2ª ordem). O segundo são os jogos aonde a criança comunica aos outros o significado dos objetos. Ao se tornar hábito a linguagem falada, os desenhos iniciam-se como simbologias representativas (1ª ordem). Sendo a linguagem verbal a base para a escrita (VYGOTSKY, 1998).
Devagarzinho a criança vai transformando seus rabiscos simbólicos em figuras e desenhos que vão sendo substituídos por signos. A esse processo atribui-se a virada ou a movimentação que retira a criança da escrita pictográfica, levando-a para a ideográfica. Através do gesto, signo visual, a criança vai desenhando sua escrita no ar. A escrita, signo escrito, é a fixação dos gestos. A união dos gestos e da linguagem escrita faz parte dos jogos das crianças e alguns objetos podem indicar através de sinais ou indícios outros, substituindo-os e tornando seus signos. A brincadeira do faz-de-conta, portanto, é um dos grandes contribuidores para o desenvolvimento da linguagem escrita assim chamado simbolismo de segunda ordem, enquanto que no brinquedo bem como no desenho o significado surge, inicialmente, como simbolismo de primeira ordem (VYGOTSKY, 1998).

Questão 2.

O brinquedo é o principal mecanismo de desenvolvimento cultural da criança, ou seja, a criança vai se apropriando por intermédio do brinquedo das experiências sociais e culturais. Para tanto ela faz uso da imaginação e pode modificar tanto os objetos como os diversos comportamentos que o ambiente produz e disponibiliza (PAVEZI & LIMA, 2012).
A criança possui um poder imaginativo que é próprio da atividade de brincar e é o ponto chave do brinquedo, porém em bebês recém-nascidos essa capacidade não está presente. É apenas a partir dos três anos de idade que a criança começa experimentar a possibilidade de planejar uma ação que vai acontecer no futuro, ou seja, ela sai da imediaticidade para o desenvolvimento do pensar de forma abstrata e assumir e ensaiar papéis e valores dos adultos em seu meio social (VYGOTSKY, 1998).
O brinquedo assume a função de propiciar a criação da zona de desenvolvimento proximal aonde a criança começa a antecipar a aquisição da motivação, habilidades, valores e atitudes dos adultos para sua própria inserção na participação social. Além disso, a imaginação e o brinquedo contribuem para que as habilidades de formação conceitual da criança se ampliem e ela faça espontaneamente separação do significado e do objeto (VYGOTSKY, 1998).
“No ato de brincar, os sinais, os gestos, os objetos e os espaços valem e significam outra coisa além daquilo que aparentam ser. Ao brincar as crianças recriam e repensam os acontecimentos que lhes deram origem, sabendo que estão brincando” (PAVEZI & LIMA, 2012, p. 2856).
A fala recebe destaque porque contribui com a interação social da criança, bem como organiza o pensamento e a ação da mesma. A princípio a fala surge como função social unicamente externa e interpessoal. A posteriori a fala surge egocêntrica, pois a criança recriou os modelos de comportamento social intrinsecamente. Essa fala intrapessoal passa agora a servir ao pensamento racional e coerente e ao pensamento concentrado excessivamente em si próprio opondo-se ao mundo exterior (VYGOTSKY, 1989).

No desenvolvimento social da criança as funções psicológicas superiores surgem como um processo de reconstrução interna de uma operação externa. Isto acontece numa série de transformações em que uma operação que inicialmente se dá a nível externo, é reconstruída e começa a ocorrer internamente, um processo interpessoal se transforma em intrapessoal. Esta transformação de um processo interpessoal em intrapessoal é resultado de uma longa série de eventos ocorridos no decurso do desenvolvimento, e é denominada por Vygotsky (1991, p.63) “internalização” (PAVEZI & LIMA, 2012, p. 2858-2859).
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REFERÊNCIAS:

MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados Ltda, 2013 - 317 p.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, 194 p.

___________, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

PAVEZI, Marilza; LIMA, Laíse Soares. O papel da brincadeira e do brinquedo no desenvolvimento e aprendizagem da criança. IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”. Universidade Federal da Paraíba - João Pessoa. 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos, pp. 2853-2861. Disponível em: http: //www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario9/PDFs/3.58.pdf. Acesso em set. 2018.



Apropriação/Internalização de Smolka e de Vigotsky


1.    O que é o conceito de “apropriação” segundo Smolka e qual a diferença possível que pode ser feita em relação ao conceito de “internalização”? 
2. Descreva o processo de apropriação e significação na perspectiva histórica cultural e qual é o papel da linguagem nesse processo?

QUESTÃO 1

Para Smolka o termo apropriação teria um caráter de interiorização, pois ela considera que apropriação e internalização poderiam ser termos utilizados como sinônimos equivalentes porque ambos supõem “[...] algo que o indivíduo toma 'de fora' (de algum lugar) e de alguém (um outro) [...]”, implicando “[...] a ação de um indivíduo sobre algo ao qual ele atribui propriedade particular.” (Smolka, 2000, p. 28). “Em incorporação e interiorização, a ênfase está no ambiente de chegada do objeto deslocado: espaço interno de alguma coisa” (Batista, 2018).
“Em latim, interior significa íntimo, recôndito. Dessa forma, podemos entender interiorização como um processo de internalização, situação em que algo exterior é tornado íntimo e interno.” (Costa & Santa-Clara, 2015).
A apropriação pode também ser entendida como algo que vem de fora. Essa expressão “[...] pode ser compreendido e/ou referido de várias maneiras: como uma informação; a ajuda de um parceiro; a escuta de um ouvinte, ou um coprodutor da mensagem; uma ferramenta instrucional etc.” (Costa & Santa-Clara, 2015).
Apropriação para Vigotski é entendida “como a pedra angular do processo de elaboração das funções psíquicas superiores, [...], como resultado do processo que permite a inserção da criança como copartícipe da cultura.” (Costa & Santa-Clara, 2015). Segundo ele “a criança, primeiramente, internaliza o legado cultural, passando a ser um agente de modificação dessa cultura, podendo intervir nela por meio de sua ação” (Costa & Santa-Clara, 2015).
“O conceito de internalização aparece em meio às discussões da criação das funções psíquicas na criança, posto pelo autor nas seguintes palavras: “chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação externa.” (Vigotski, 1984, p.74 apud Costa & Santa-Clara, 2015).
A questão entre a apropriação e a internalização é investigada em Rogoff (1990, 1987, 1995, 1998) que, em seus escritos, aponta como diferença entre os termos o fato de que a internalização remonta a Vigotski (1984, 1987, 2001) que deixa em seus escritos uma falta de explicação satisfatória em relação ao que, de fato, esse conceito significa.
Como, na verdade, ele ocorre? O que está em jogo na seleção dos fatores que são absorvidos e/ou relegados no processo? Ele seria um processo continuado, ou o seu resultado? Ele implica numa certa estabilidade do fator externo que passa a ser um fator interno? E quando passa? Ou o fator internalizado continua em movimento contínuo, mesmo diante do fato de estar internalizado? Rogoff (1990, 1987, 1995, 1998), baseada nos trabalhos vigotskianos, argumenta que a internalização, como é pensada pelo autor, implica num certo movimento de transformação onde, primeiro, ocorre um momento social e coletivo, e posteriormente, um momento individual como ponto de chegada (COSTA & SANTA-CLARA, 2015).


É pensada como o resultado de uma atividade, envolvendo uma passagem do coletivo para o individual. [...] Significa um processo no qual não existe uma passagem de algo externo para dentro, mas um movimento de forma contínua, mesmo porque não se pode delimitar exatamente o que está fora e dentro da mente [...] o individual e/ou coletivo. Resumindo, a apropriação ocorre na atividade (Costa & Santa-Clara, 2015).

QUESTÃO 2

A translinguística requer a consideração de uma linguagem que se utiliza de um aparato reiterável, estrutural e, ao mesmo tempo, requer a consideração da intenção do sujeito que povoa o discurso e, dessa forma, torna-se o autor, emergindo em singularidade e também em diferenciações progressivas
Salienta o sentido dado ao termo pelo citado autor, significando o processo de tornar minhas as palavras do outro, que permite o diálogo e o processo de apropriação como contínuo e complexo.
Processo dialógico-argumentativo, ou seja, como algo que não possui existência a priori, mas se desenvolve no decurso das negociações significativas entre o sujeito e os diferentes outros/vozes sociais. A apropriação trata-se, portanto, de um processo cuja existência só é possível a partir de um discurso interior imbricado em relações sociais.
A translinguística faz uso da significação, caráter estrutural reiterável toda vez que é enunciada, e do sentido, caráter circunstancial que se apresenta compreensível diante de uma situação que possui um sentido de acabamento, permitindo a compreensão da intenção individual do falante. O limite entre o interno e o externo, entre o meu ponto de vista e o ponto de vista de outrem, tem de ser analisado com base no diálogo dentro de uma atividade prática, local e específica.
Diferente da atividade informal de ensino, em que a criança aprende de forma espontânea, a atividade de sala de aula se caracteriza como uma atividade formal, onde o ensino passa a ter um papel instrucional fundamental que faz parte do arcabouço secular da humanidade. Enquanto atividade eminentemente pedagógica, o ensino formal se passa em um lugar particular onde existem normas que devem ser seguidas pelos estudantes, uma linguagem própria a ser apropriada, não somente relativa ao conteúdo, mas também à comunicação,
Tanto na concepção de Leontiev (1978) quanto na de Vygotsky (2008), na relação com os objetos do mundo, o sujeito fica diante de um problema a resolver; esse problema não é apenas seu, mas de todos. Entretanto a forma de lidar com os objetos do mundo, embora diga respeito a todos, é particular e intransferível, pois a produção de significado que ocorre nessa relação se estabelece a partir do repertório cultural de cada sujeito. Nesse contexto, o “tornar seu” não significa “tomar posse” de alguma coisa, mas adquirir “seu modo próprio” de perceber e de lidar com as coisas do mundo.
No processo de apropriação do espaço, o sujeito ou o grupo estabelece uma relação de identidade e de pertencimento que transforma o ambiente como uma expressão de si. Nessa relação, tanto o sujeito pode pertencer ao espaço quanto o espaço pode, simbolicamente, pertencer ao sujeito. É uma relação de domínio afetivo do espaço, no qual são exercidos controle e posse simbólicos.

REFERÊNCIAS:

COSTA, Eveline Vieira; SANTA-CLARA, Angela. Apropriação como Produção Coletiva na Atividade e Internalização como Resultado desta Atividade: um exemplo de álgebra elementar na sala de aula. Bolema, Rio Claro (SP), v. 29, n. 51, p. 349-368, abr. 2015.

VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984.

BATISTA, Carmem Lucia. Os conceitos de apropriação: contribuições à Ciência da Informação. Em Questão, Porto Alegre, v. 24, n. 2, p. 210-234, maio/ago. 2018 Disponível em: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245242.210-234.

SMOLKA, A. L. B. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos Cedes, Campinas, v. 20, n. 50, p. 26-40, abr. 2000.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

SILVA, Jackson Ronie Sá da. “Homossexuais são...”: revisitando livros de medicina, psicologia e educação a partir da perspectiva queer.





SILVA, Jackson Ronie Sá da. “Homossexuais são...”: revisitando livros de medicina, psicologia e educação a partir da perspectiva queer. 2012. 400 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Universidade de São Leopoldo, Rio Grande do Sul.


RESENHA

Jackson Silva foi professor durante dez anos na Educação Básica do município de São Luís – MA, e se deparou com inúmeras representações de um preconceito aos homossexuais no ambiente escolar. O termo qualira ou qualihra se refere a homossexuais masculinos e que tenham comportamentos ditos “afeminados. (SILVA, 2012). 

Segundo Silva (2012):
A denominação qualira foi inventada durante as atividades de carnaval de rua de São Luís onde se apresentavam vários blocos. Dizem que em um desses blocos havia um rapaz afeminado que se destacava por tocar a lira (instrumento de cordas dedilháveis ou tocadas com plectro, de larga difusão na Antiguidade). Sempre que o rapaz aparecia, as pessoas gritavam: ‘lá vem ele com a lira’ e a repetição constante desse termo resultou na aglutinação das palavras, diminuindo a frase para “com a lira” até chegar em ‘qualira’.
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A representação do termo no ambiente escolar é pejorativa e multiforme, ou seja, são vastas as formas de preconceito existentes e algumas se manifestam em diferentes aspectos e esferas escolares. Agressões físicas, verbais, insultos, olhares, gestos, etc. são intencionais práticas de intolerância, algumas vezes até silenciosas. (SILVA, 2012). 

A gestão se escolar, por vezes, se mostrava indiferente quanto à construção e reprodução do preconceito dentro das escolas e nos ambientes educacionais. Preconceito velado e institucional, pessoas em sofrimento ignoradas, reforçando a ideia de que o “culpado” num conflito é o indivíduo homossexual. 

A visão médico-biologizante, historicamente, concebeu o termo homossexual com construções pejorativas e estigmatizantes, reforçando a ideia de que havia um “desvio” natural no curso do desenvolvimento e representação da sexualidade na infância-adolescência. 

Silva (2012), acrescenta um exemplo ocorrido numa escola de ensino médio em que um professor fala sobre um aluno qualira do 3º ano:


            Vocês já perceberam a qualiragem invadindo a escola? Os alunos do 3º ano estão tirando a sobrancelha. Isso é coisa de qualira, de veado, de maricas, de bicha, de gente pervertida, doente e safada. Parece que é uma febre. Todos querem tirar a sobrancelha, se arrumar bem, cuidar do corpo. Isso é coisa de qualira e de mulher. Quando saio de casa já tomo meu remédio contra essa febre. Estou vacinado. Não gosto de qualira e não nego. Que coisa é essa? Não dá para aceitar! Esses qualira têm que aprender a ser homem. Filho meu não faz isso. Se começar com essas qualiragens, eu dou é porrada mesmo. Já pensou: homem tirando sobrancelhas! É o fim dos tempos!                                                            

           

A construção da homofobia, historicamente, não é frágil e se trata praticamente de um “obelisco homofóbico”, dando a ideia de uma sólida e forte forma de consolidar um pensamento heteronormativo preconceituoso. 

A “Ética Vitoriana”, também influenciadora do preconceito contra os tidos como “anormais”, pode ser definida como: 


            [...] atitudes estereotipadas predominantes nas nações ocidentais, durante a época da rainha Vitória. [...] Por esse tempo, apregoava-se a noção de que a prática sexual em si é feia e animalesca, cabendo apenas às mulheres devassas admirá-la, enquanto que as mulheres ‘decentes’ deveriam até mesmo evitar sentirem-se sexualmente excitadas. Também era costume na época pensar que as mulheres apenas toleram as relações sexuais como um mal necessário e uma obrigação para com os maridos e, ainda, que sexo é algo de que não se deve falar, nem mesmo a portas fechadas. Como resultado [...] foram censurados livros [...], crianças eram mantidas em completa ignorância acerca de questões sexuais, os namorados eram vigiados, e as mulheres vestiam trajes de banho que cobriam as pernas até abaixo dos tornozelos (SILVA, 2012 apud GOLDENSON; ANDERSON, 1989, p.102).




Em “o olhar e as lentes” o autor inicia apresentando sua visão das representações sociais cuja finalidade, era descobrir a essência ou âmago do fenômeno homossexualidade, pois compreendendo sua totalidade acreditava chegar à solução para a homofobia na escola. 

Ele informa o leitor de como a fenomenologia se propõe a resolver as questões enquanto intuição imanente pura que procura “descobrir as estruturas essenciais dos atos de consciência e as entidades objetivas que correspondem a eles”. Apresenta da mesma forma as representações sociais que seriam instâncias privilegiadas de investigação fenomenológica, já que elas podem se localizar perto da essência contendo um teor de verdade, porém em menor escala. Para o autor estudar as representações é produtivo e importante, no entanto por serem invenções e produção da sociedade deve-se considerar sua transitoriedade já que podem ser abandonadas conforme os interesses e necessidades. 

Várias são as definições para representações. Furlani (2005) expõe que é pela verbalização que categorias são significadas e diferenciadas num processo social, político e histórico. Louro (2007) afirma que elas são formas culturais de apresentação, palavras de e sobre alguém relacionado à vida comum. Estão em transformação e se diferenciam histórica e socialmente. Elas refletem a realidade. Já para Pollock (1990) a realidade não pode ser pura porque todo discurso social gera representações e essas são constituintes da dinâmica social que muitas vezes assumem uma verdade empoderada, óbvia e auto-evidente. Silva (2009) entende as representações como uma maneira de representar o outro dando a ele uma inscrição, já que naturalizamos o mundo e os sujeitos reais. 

O autor busca em Silva (2009) base teórica crítica para as representações, já que o mesmo vai abordar o assunto de uma forma mais similar ao seu pensamento. Para Silva (2009) a teoria e a realidade são vistas como algo que não se distinguem. Visão hegemônica naturalizante que exclui os processos de construção social e que dá a realidade um aspecto científico de caráter exterior que pode ser descoberto. Como se a teoria pudesse descobrir o real e ambas fossem equivalentes. 

Para Silva (2009) a realidade é impregnada de poder e interesse de quem as produz, ou seja, é intencional. Portanto, a “verdade teórica” nada mais é do que o resultado do movimento intencional enquanto ação e pensamento que busca impor verdades a serem reproduzidas. Para o autor a análise cultural está para desmistificar e desconstruir a naturalização das verdades. 

O autor procura trazer luz às formas de representações que impõem ideias naturalizantes sobre homossexualidade e heterossexualidade, levando o leitor a um olhar crítico sobre os discursos patologizantes de base empírica e biomédica, denominado por ele de “pedagogia dos manuais médicos”. Essa pedagogia seria o carro-chefe que direciona a maneira como a sexualidade é abordada na educação. 

A análise das literaturas de 1920/70 e as do séc. XX são intencionais e sob a metodologia da “desconfiança queer”, pois verifica que as concepções médicas antigas ainda permeiam o constructo atual em muitas literaturas. A desconstrução de tais ideias são importantes para entender os mecanismos de reprodução vigentes sobre o tema. Para tanto, ele se apropria de reflexões de Foucault e Derrida sobre discursos que inferiorizam e patologizam os que não se enquadram no status social. 

Muitos pesquisadores brasileiros tem se apropriado da teoria queer que atualmente “tem sido utilizada como perspectiva teórica para muitos pesquisadores/as brasileiros/as”. Ela tem tido forte influência no estudo do binarismo homo/hetero. Judith Butler, americana, colocou-se contra tudo aquilo que se evocava como essencial, questionando verdades biológicas e padrões normativos para gênero. A teoria queer adentra profundamente em conceitos pré-estabelecidos questionando aspectos comuns da vida social, rótulos, normas e heteronormatividade. Sua intenção é transpor a sexualidade do campo natural elevando-a ao campo social, não esquecendo que a mesma transpõe o campo político que é transpassado por relações de poder. Para esses teóricos a construção discursiva de uma sexualidade definida por um eu proveniente de uma essência natural deve ser desconstruída e reconstruída para uma realidade fluída que não é simples e é múltipla. 

Para o autor é a norma a responsável por incluir e excluir os sujeitos na esfera social e essa norma trabalha na ótica do binarismo heterossexualidade e homossexualidade enfatizando o princípio regulador que a ordem social impõe. Por isso, ao analisar as obras literárias da medicina, psicologia e educação o autor não deixa de lado os estudos da norma hetero para entender o discurso reorientador à condição padrão. 

Em “Do corpus investigativo” o autor se propõe em sua tese a interpretar e problematizar a homossexualidade a partir de uma análise histórico social, que nos permite compreender as “verdades” ideológicas, descriminalizantes e os pré-conceitos que se criaram em seu torno. Através dessa análise histórica é possível entender como o fenômeno existe hoje em dia. 

É impossível estudar a homossexualidade sem falar na concepção que cada época deu a sexualidade. Esta última é uma interação de seres e, portanto, uma relação social e histórica, esta é estudada pela história, antropologia, moral e evolução social. É através dessas filosofias que se deu o estudo descrito na tese. 

Para o desenvolvimento da pesquisa descrita na tese, foi realizada uma investigação bibliográfica de documentos. A análise de documentos é rica de informações, e permite que o pesquisador tenha acesso ao que era discutido na época, a visão dos autores e o que era privilegiado e ocultado nas discussões. As fontes podem ser de primeira ou segunda pessoa, na tese foi pesquisado apenas em primeira pessoa. 

O material coletado foi dividido em dois grupos. Corpus1: Livros de medicina, psicologia e educação publicados no século XX (1920 a 1970); Corpus 2: Livros de sexualidade e educação sexual catalogados em escolas públicas do ensino médio da cidade de São Luís – MA no ano que a pesquisa foi realizada. O autor relacionou e problematizou as ideias do sec. XX (1920 a 1970), com os livros disponíveis atualmente nas bibliotecas públicas de São Luís – MA 

O Corpus 1 é composto por 32 livros, publicados entre 1920 e 1980. Neste material inúmeras teorias foram criadas para corrigir, patologias e discriminar os homossexuais. Dentro desse corpus foi analisado compêndio médico, livro médico, manual médico, ou ter sido escrito, literalmente por um médico. As Informações contidas eram estruturadas a partir de noções como saúde-doença, diagnóstico, prevenção, tratamento e cura. Ideias higienistas e eugenistas que perpassa a psiquiatria e adentra a psicologia e a prática psicológica. 

Já o Corpus 2: discursos sobre o/a homossexual veiculados em livros de sexualidade e educação sexual disponibilizados para consulta em bibliotecas de escolas públicas do ensino médio da cidade de São Luís-MA. 

Para catalogar as informações o autor construiu Quadros-Resumo. São tabelas com as sínteses dos conteúdos, porém, não são trechos retirados dos livros, mas sim uma compreensão que o autor teve sobre o assunto. 

O corpus 1 foi subdividido em 2 grupos: Corpus Medicina/ Psicologia: medicina, psicologia psiquiatria, criminologia, teologia; Corpus Educação: educação, orientação educacional, educação sexual e educação misturada a psicológica. 

Dos documentos quatro eram para público geral, sendo três de educação e um de medicina. Vinte e oito livros eram para público específico, sendo um para professor, dois para religiosos e dois para professores de direito. 

A Linguagem utilizada no Corpus medicina/ Psicologia, era fechada e específica. E no Corpus Educação apresentava uma linguagem simples e acessível embora ideias e proposições contidas sobre a homossexualidade fossem apresentadas em linguagem científica e médica. Havia quatro línguas estrangeiras utilizadas alemão, francês e inglês. No Corpus 1: 14 obras estrangeiras foram traduzidas para a língua nacional, sendo nove livros do Corpus Medicina/psicologia e cinco livros do Corpus Educação. 

No material de Sexualidade e Educação Sexual, vinte e três livros de sexualidade e educação sexual traziam em seu conteúdo uma discussão sobre a homossexualidade. Deste número, onze livros foram catalogados nos acervos das quatro bibliotecas de escolas públicas do ensino médio da cidade de São Luís – MA. 

Por fim o autor traz a explicação da estrutura da tese. Sendo elas: Aproximações; Escavação de ideias sobre a homossexualidade em livros de medicina, psicologia e educação dos anos 1920 aos anos 1950; Escavação de ideias sobre a homossexualidade em livros de medicina, psicologia e educação dos anos 1960; Escavação de ideias sobre a homossexualidade em livros de medicina, psicologia e educação dos anos 1970; Pedagogia dos manuais médicos. 

No tópico dois de sua dissertação o autor realiza uma escavação de ideias sobre a homossexualidade em livros de Medicina, Psicologia e Educação dos anos 1920 aos 1950. “Dos livros de medicina e psicologia - 1920 a 1950” o autor informa que esses foram escritos por médicos e direcionados a médicos psiquiatras além de psicólogos, criminologistas, psiquiatras forenses, teólogos, e públicos gerais, publicados entre 1928 a 1955, que aborda discursos sobre a homossexualidade. 

Os sete resumos dos livros apresentados entre 1920 a 1950 trazem uma explicação biologicista, baseado nas causas genéticas, entretanto, nem todos os autores se limitavam as epistemologias à hereditariedade. A homossexualidade era então tratada como uma patologia, e se uniam a medicina e a ciência jurídica para explicar fenômenos como a homossexualidade e o infrator criminoso, mesmo com os movimentos médicos e psicologizantes que tentavam retirar esse homossexual da análise jurídica. Segundo Silva (2012, p. 49): "a homossexualidade era uma patologia. Enfermidade do corpo e da alma onde hormônios, hereditariedade, anatomia e psique se encontravam em desordem." 

Quadro - Resumo 1: Livro A Questão Sexual, escrito por um médico e publicado em 1928, dirigida à médicos e psiquiatras. Baseia-se na explicação biológica, a influência do eugenismo e explica a homossexualidade pela teoria hormonal. Temas centrais do livro: doenças venéreas, psicopatologia sexual, masturbação, perversões sexuais (sadismo, masoquismo, homossexualismo masculino e feminino, voyeurismo, zoofilia, etc.), álcool e drogas, prostituição, religião e vida sexual, divórcio, aborto, eugenismo e sexo, educação sexual, vida sexual e arte. Enquadra a homossexualidade como patologia de cunho hereditário e que poderia ser medicada por administração de hormônios. O autor acredita que fatores ambientais são reforçadores das práticas homossexuais como contatos em internatos e prisões. E por fim, como proposição pedagógica que os pais falassem com as crianças desde cedo sobre o sexo, de forma, a aprenderem a educar seus desejos. 

Quadro – Resumo 2: Livro Crime e Psico-Análise, escrito por médicos na área de criminologia e psicanálise, publicado em 1933, público alvo: médicos, psiquiatras, advogados e psicólogos forense, Baseia- se nas proposições da psicanálise freudiana clássica. O livro apresenta o papel da psicanálise na compreensão de crimes variados: homicídios, suicídios e crimes sexuais; A discussão empreendida pelos autores tem o objetivo de caracterizar os aspectos educacionais a serem aplicados nos referidos crimes por entenderem que hereditariedade e ambiente andam juntas quando alguém se envolve em delitos; as ideias de Freud são utilizadas para explicar o crime e o criminoso. Não há capítulo que trata do tema da homossexualidade e os autores não abordam o tema. No entanto, discutem, em detalhes, a importância da psicanálise no processo pedagógico de recuperação do criminoso. 

Quadro – Resumo 3: Livro Atentados ao Pudor, escrito por médicos, publicado em 1943, público alvo: médicos, psiquiatras forenses, psicólogos forenses e criminologistas. Baseia-se no pressuposto de homossexualidade como um vício e crime, com viés biologizante. O livro discute o tema da sexualidade utilizando as teorizações da patologia orgânica, da criminologia e da psicopatologia; discorre sobre uma série de aberrações do instinto sexual: exibicionismo, hermafroditismo, tribadismo, prostituição, pederastia, sadismo, masoquismo, voyeurismo, etc. A homossexualidade é nomeada como inversão sexual, pederastia ou uranismo. A homossexualidade é percebida como uma condição congênita (uranismo). No entanto, o autor não descarta a possibilidade de haver indivíduos que praticam o homossexualismo por mero vício. Chama esses indivíduos de debochados. Tais pessoas não devem ser categorizadas como doentes. Assim, os ditos debochados e viciados devem ser presos e condenados. Os comprovadamente doentes precisam ser tratados. Não há explicitamente proposições pedagógicas defendidas pelo autor. Todavia, a obra discute os aspectos da penalidade e punição para quem comete o ato pederástico. 

Quadro – Resumo 4: Livro Psiquiatria Pastoral, escrito por um padre médico em 1944, público alvo: médicos e teólogos. Explicita que a perversão pode estar ligada a contextos familiares e outros ambientes de interação. Não existe abordagem específica sobre a homossexualidade, mas em determinados trechos discute o tema; Aponta que ambientes de confinamento como internatos facilitam o aparecimento de práticas homossexuais entre os internos; descreve como reconhecer o homossexual. Aponta que o afeminado é fácil de ser reconhecido e descreve algumas características para reconhecê-lo como a delicadeza e a falta de força física. Suas proposições pedagógicas são que: Acredita na mudança de comportamento da criança que adquiriu o hábito perverso, sendo a educação um mecanismo eficiente para a mudança do mau hábito; e enfatiza o discurso do cuidado que a sociedade e os pais devem ter com as crianças para não se tornarem delinquentes e pervertidos sexuais. 

Quadro – Resumo 5: Livro Homossexualismo Estudos Psico-Sexuais, escrito por um médico em 1953, tendo seu público alvo geral. Fixada em bases biológicas e endócrinas, homossexualismo como problema do cérebro e glândulas. A homossexualidade é tida como um fenômeno complexo. Mas, para o autor envolve determinantes hereditários e hormonais; expressa que a condição homossexual leva indubitavelmente ao ostracismo e solidão; os sujeitos devem procurar o médico para obter tratamento e cura. Condena o homossexualismo e enquadra-o como patologia; A homossexualidade é um distúrbio neuro-endocrinológico; produz em seu discurso a tipologia do homossexual: efeminado, de voz fina, delicado, frágil, solitário, sofredor e mentiroso. Proposições pedagógicas são: se a homossexualidade for diagnosticada como congênita ou constitucional deve o pai e a mãe, e o próprio sujeito, se conformar porque ninguém pode transformar um homossexual constitucional em heterossexual. No entanto, sugere que um método eficiente para corrigir o homossexualismo neuro-endocrinológico é a educação dos desejos: o anormal deve evitar e rejeitar sua condição, exercer o autocontrole e praticar a castidade; os filhos devem ser constantemente vigiados, sobretudo na puberdade. 

Quadro – Resumo 6: Livro Psicoses do Amor, escrito por um médico em 1954 e tem como público alvo médicos e psiquiatras. Sua base é biologicista, higienista e patologizante. O livro apresenta de forma minuciosa uma série de comportamentos classificados pelo autor como psicopatológicos: onanismo (masturbação), clitorismo, pederose (pedofilia), zoofilia, homossexualidade (inversão sexual), voyeurismo, necrofilia, etc. Além de apresentar a teoria sobre a anomalia homossexual, o autor discorre sobre casos característicos e a possível forma de tratamento. Discute sobre fatores mesológicos (ambientais) que podem influenciar no desenvolvimento e prática da homossexualidade entre eles: quartéis, internatos, nas prisões e em todos os lugares onde indivíduos do mesmo sexo estão em contato íntimo (invertidos acidentais); Divide os homossexuais em ativos e passivos; Classifica os homossexuais passivos como os difíceis de corrigir; O afeminamento é discutido pelo autor. Tal característica é usada para classificar e marcar os homossexuais tidos como verdadeiros: são iguais a mulheres, preferem vestimentas e profissões femininas. Enfim, descreve uma tipologia detalhada do invertido. 

Quadro – Resumo 7: Livro Erotologia Feminina, escrito por um médico em 1955 tendo como público alvo médicos, psiquiatras e psicólogos. O livro apresenta informações sobre a sexualidade feminina numa linguagem estritamente médica. Diferentes temas são abordados na obra: anatomia e fisiologia feminina, doenças ginecológicas, prostituição feminina, a sexualidade normal e anormal da mulher. A obra apresenta um capítulo sobre o homossexualismo feminino. A homossexualidade feminina é descrita como patologia. Safismo e lesbianismo são as denominações dadas pelo autor ao tratar da homossexualidade feminina. O tema é minuciosamente apresentado: história e definição de safismo; homossexualismo feminino – a mulher-macho ou invertida; O confinamento de mulheres deve ser evitado porque o homossexualismo se desenvolve nesses ambientes; Proposições pedagógicas: A mãe tem papel fundamental na orientação da filha para que ela não se desvirtue; Crianças ocupadas dispersam pensamentos libidinosos. Por isso, os pais e professores devem ocupá-las sempre e conduzi-las em inúmeras atividades. 

Na tópica “Eugenismo e higienismo, ferramentas médicas para a pedagogização dos/as homossexuais?” o autor informa que a saúde, nas primeiras décadas do século XX, é colocada como uma “metáfora de saúde” e, ela é tanto física como moral estabelecendo hierarquia e status, onde o corpo burguês (homem branco) é sadio, e o melhor. A medicina e o médico passaram a ter um papel importante nesta etapa, sendo eles os responsáveis pelo “ajuste” da saúde, impondo tratamentos, exercícios, dietas e etc. Eles seriam os responsáveis em afastar as doenças e consequentemente trazer o bem-estar à população. O termo cura também foi introduzido nesta época através das medidas preventivas. 

Ainda nesta época, a hanseníase, tuberculose e sífilis atingiu toda a população e, então, depositavam toda a confiança nos médicos para promover a cura. Assim, a educação foi a ferramenta chave para esse processo da “ascensão médica” e fizerem uma aliança entre ambas (educação e medicina). Com a proclamação da República a medicina trouxe teorias higiênicas contribuindo com a formação do caráter racial, que explicava sobre a brasilidade. 

Os livros de psicologia e medicina dos períodos de 1920 a 1950 traziam o tema homossexualidade, discorriam que era necessário examinar os corpos e descobrir em seus relevos traços de uma possível desordem interna; perceber indícios morfológicos que denunciassem um desacordo no comando hereditário; examinar minuciosamente as ações e hábitos dos indivíduos. Este era o período em que a eugenia e higienismo andavam juntos e se afirmavam com acessórios do saber médico. Só que eles ultrapassavam os temas médicos, adicionando conteúdos de ordem moral. 

As táticas higienistas foram bem mais a fundo que combater doenças infecciosas e sanear o meio ambiente, ela controlava e delimitava as famílias. As ideias eugênicas partiram de uma visão macro para uma visão micro. Isto ocorreu para que, o Estado brasileiro colocasse em prática alguns projetos, e seria necessário a colaboração das famílias, pois elas eram as responsáveis pela educação e socialização dos sujeitos. 

O papel dos médicos no contexto familiar passou a ter importância, pois contribuía no processo de disciplinamento da família, fazendo assim, com que esta, se aliasse ao projeto de modernização criado pelo Estado brasileiro, sendo que este projeto visava uma ordem civilizada nos trópicos que visava ao capitalismo. Era a ordem de ter um Brasil sem atraso, sem pobreza, uma ordem de limpar o passado. 

Através das teorias higienistas, o médico, além de ser o agente em todo o processo de diagnóstico, e etc., também passou a ser um orientador, articulador, um estrategista, ou seja, uma pessoa que influenciava. Ele então, passou a impor sua autoridade em vários níveis, inclusive na sexualidade dos cidadãos. Foi então quando criaram rigorosos modelos de boa conduta moral. 

Alguns autores estudaram a patologia sexual e foram os primeiros a inventarem uma suposta sexualidade perversa, considerada anormal. O criminologista Cesar Lombroso foi referência para médicos e juristas nacionais e internacionais. Para ele o homossexual não era um pecaminoso, e sim que deveria ser punido pela lei, afastando então, a religião desse tema homossexual dentro do campo do direito e da medicina. 

Assim, a medicina e o direito começaram a disputar este tema, e surgiu um subconjunto significativo em termos de atualização de um modo de falar que, fundava a discussão moderna sobre a sexualidade no Brasil. 

Ao tratar a homossexualidade como patologia e trazerem uma possível cura à esta patologia, a medicina, passa então, a ser vista como uma prática pedagógica, havendo um método, intenções, e que este método conduz a mudanças. E com este discurso o médico passa então, a ser o médico dos médicos. 

Conhecer a homossexualidade deveria ser um tema conhecido pelos médicos em seus detalhes, contudo, este tema era complexo para os profissionais da época. 

Em “A homossexualidade pode ser uma patologia psicológica?” Silva aponta que as teses e análises biológicas, não são abandonadas , porém operadas e avaliadas de outras formas. Fatores como o ambiente; as relações intrafamiliares e as necessidades individuais são conteúdos adicionados para se pensar a causação do fenômeno homossexual. Os fatores externos constituem-se em novas substâncias investigadas e grande importância será dada para as análises dos hábitos sujeitos. 

As teorias psicológicas e educacionais foram de grande importância nesse processo de reconhecimento, diagnóstico, tratamento e (re) condução. No entanto, livros de psicologia que tratavam de homossexualidade eram descritos principalmente a partir da década de 1940, tendo como guia as interpretações de autores estrangeiros ou nacionais que descreviam o pensamento psicanalítico de Freud ou mesmo das conclusões que se tratavam da leitura das obras de Freud. 

Os pressupostos da psicologia foram utilizados para construir o discurso de que além das determinações orgânicas e constitucionais do individuo existiam fatores externos ao sujeito que reforçavam o aparecimento da homossexualidade. O ambiente como um fator, envolvendo interações familiares, convivências em espaços, começavam a ser interpretados como potencias operadores do ‘’problema’’. 

Ambientes como prisões, internatos, quartéis, conventos e colégios internos eram apontados como locais que facilitavam a expressão do ‘’ pervertido sexual homossexual’’. Os homossexuais congênitos pela circunstancias do confinamento e das restrições em não ter acesso o sexo oposto acabavam se entregando á sexualidade anormal. O cuidado maior deveria ser dirigido para os homossexuais verdadeiros. Eles eram a ameaça que poderiam ‘’contaminar’’ os outros com sua mobilidade sexual. 

Em “O afeminado e sua produtividade pedagógica” o autor inicia informando que autores de livros médicos criavam “tipos” para definir e operar com o possível desviado sexual. Segundo eles os homossexuais gostavam de ambientes confinados e de profissões que lhes permitiam interagir com pessoas do mesmo sexo. Era muito presente nessa época em livros médicos a ideia do invertido afeminado. A marca do “afeminado” era construída a partir de diversas qualificações que eram entendidas como pertencentes ao universo feminino. 

Os conteúdos das produções escritas entre 1928 e 1954 demonstravam que essas operações de tipificação do homossexual eram utilizadas como um artifício pedagógico para ensinar a família e a escola a conduzirem quem se apresentava ou se apresentaria com essas características. 

Esses livros deveriam ser lidos por médicos, por psicólogos e também por profissionais da educação que por sua vez aplicariam tais ensinamentos juntos aos sujeitos da higienização e daqueles que poderiam também agir no processo educativo como os pais. Os discursos médicos descreviam os homossexuais detalhadamente, pois tinham como intenção: categorizá-lo, formatá-lo, moldá-lo. Era necessário dizer quem eles eram, conhecê-los. 

O autor do texto afirma que as ideias inscritas nos livros que por ele foram analisados mostram um “esforço da biomedicina e da psicologia em querer conhecer, caracterizar, analisar, corrigir, tratar, curar e gerir esse objeto considerado incômodo, perturbador, esquisito”. 

As teorias e ideias sobre os homossexuais expostas em inúmeras produções médicas foram sendo incorporadas por outras produções, como os livros que compõem o “corpus educação” que incorporaram essas teses médicas e as transformaram em discursos didaticamente assimiláveis. A população em geral era convidada para praticar os ensinamentos dessa “pedagogia dos manuais médicos”. 

O dispositivo da sexualidade que foi construído através de discursos da psiquiatria, da sexologia, do direito e da religião foi responsável pela classificação, divisão de indivíduos, criando “tipos” e, ao mesmo tempo, formas de controlar a sexualidade. Dessa forma a pratica relações sexuais e amorosas entre pessoas do mesmo sexo que eram vista como sodomia, passava a caracterizar um tipo diferente de sujeito, que era nomeado como desvio da norma. (Louro, 2009 apud Silva, 2012). 

O discurso médico que categorizou, manipulou, esquadrinhou, reprimiu, higienizou e patologizou os/as homossexuais a partir do século XIX, foi interpretado por diversos autores como Silva, Louro, Bento, Furlani, como ações que estruturam uma pedagogia da sexualidade, pode se constituir também em um “discurso político e teórico que produz a representação ‘positiva’ da homossexualidade”. O autor não acredita que o discurso homofóbico tenha sido estruturado exclusivamente pelo texto médico, mas defende que a medicina utilizou de um discurso que pelo decorrer de anos veio sendo formado pela cultura, para fortalecer seu poder nas instituições sociais que sociais em que ele se encontrava. 

Na tópica “Dos conselhos médicos: educar para prevenir” o autor apresenta um levantamento informativo de que os conteúdos dos livros médicos dos anos de 1920 a 1950 traziam a educação como um mecanismo preventivo do comportamento homossexual e de outras questões consideradas problemáticas como doenças venéreas e a masturbação. As principais ideias médicas são consideradas pelo autor como proposições pedagógicas, que orientavam pais e professores como deveriam agir preventivamente frente a uma suposta homossexualidade de filhos ou alunos. 

“Instruir”, “descrever longamente”, “conhecer a fundo”, “regularizar o desejo sexual anômalo e canalizá-lo para outra atividade ou para a orientação considerada normal”, “a educação como tática para evitar os excessos” palavras e frases que pertencente a pedagogia influenciou autores da área educacional a produziram argumentos sobre o papel da educação na prevenção da homossexualidade.  

Em a “Educação, faca de dois gumes? Freud explica?” o autor segue informando que os olhares médico/patologizante inundavam a conceituação do que seria o ser homossexual e autores se desdobravam para explicar a ocorrência de comportamentos tidos como desviantes. Na área da educação, a criança, muitas vezes, era tida como um problema à ordem “natural” da sexualidade. 

Segundo Arthur Ramos (1949), o mais plausível seria conceber a homossexualidade como um fenômeno multifatorial, em que a Biologia e Psicologia se uniam para explicar tal fenômeno, escorados pelos pressupostos da teoria hormonal e hereditária. 

A visão biologizante se valeu do termo caractere para exemplificar estruturas fisiológicas/genéticas que determinavam o comportamento e manifestação da sexualidade na criança, e que sob este fundamento orgânico, a homossexualidade era representada pela hipertrofia de caracteres. (RAMOS, 1949). 

Ainda segundo Ramos (1949), neste período da história – séc. XIX a XX – seria necessária uma Pedagogização da sexualidade, amparada pela teoria e fases da sexualidade de Sigmund Freud, para impedir o desvio para a homossexualidade; para tal, a educação, alinhada à visão médico-patologizante, deveria exercer um papel fundamental de adequação do indivíduo, não reprimindo totalmente, mas parcialmente os desejos e instintos primitivos/sexuais da criança em seu período de desenvolvimento psicossexual; o binarismo sexual era louvado. 

O Movimento da Escola Nova exerceu função importante no cenário da educação brasileira, acreditando numa renovação educacional que previa uma tríade funcional saúde-moral-trabalho, e tinha por missão:
“ensinar crianças e jovens com o propósito de colocar o educando em condição de responder aos requisitos da nova sociedade e a via para a obtenção desse fim seria a compreensão metódica e objetiva das características psicológicas, biológicas e sociais do indivíduo submetido à situação escolar.” (SILVA, 2012 apud CUNHA, 2010).

Segundo Silva (2012):
               “...por se tratar de um distúrbio que muito tinha a ver com o ambiente social desses sujeitos, o ideal era chamar os responsáveis pela sua educação para promoverem a correção: pais e educadores/as. A família e a escola agora se constituíam como instituições fundamentais a serem incluídas no processo de pedagogização para a prevenção das práticas homossexuais.”





Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...