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DÂMARIS ALCÍDIA DA COSTA MELGAÇO[i]
1.
INTRODUÇÃO
Para
falar sobre transgênero é impossível não retomar a história da construção da
sexualidade no mundo, já que na cultura Ocidental há padrões normativos
cristalizados e já estabelecidos por diversas gerações. Estes padrões são a
mistura de vários conceitos até então defendidos pela religião e a medicina que
notadamente influenciaram a pedagogia e a psicologia. O binarismo dos gêneros
cria e recria o pensamento de que o gênero é o reflexo autêntico do sexo
biológico, vendendo a ideia de que toda a integralidade constitutiva dos
indivíduos está atrelada a essa premissa inicial, ou seja, de que as funções
biológicas naturais determinam a sexualidade e a posicionam, estática, no
sistema binário com as suas pretensas organizações naturais (BENTO, 2003,
FERNANDES, 2009, MASIERO, 2005).
Masiero
(2002) afirma em suas pesquisas que se pode observar na utilização de
instrumentos psiquiátricos do séc. XX, cujo objetivo era a purificação de raças
e o controle social, afinidades com algumas técnicas contemporâneas que mantém,
ainda que em contextos diferentes e disfarçadamente, os mesmos propósitos. Por
esta razão, entende-se que o que se apresenta na concretude social retratados
no comportamento e nas representações sociais tende a uma demora significativa
no movimento de transformação. E, portanto; até que haja o aniquilamento total
do ideário desigual o empreendimento para tal ocorrência exige grande esforço
(PATY, 1998).
Na
cultura ocidental, independentemente da existência de outras culturas onde a
vivência das diversas manifestações da sexualidade era livre, há uma imposição
do binarismo macho e fêmea ou masculino e feminino tão retomado pela medicina
tradicional. Até o séc. XVIII, a oratória que imperava construía as anatomias
fisiológicas, masculino e feminino, em graus sucessivos e posicionados
verticalmente, ou seja; sob a hierarquia de um único sexo. “Não é incomum que
as palavras sexo e gênero sejam utilizadas como sinônimos, embora pertencer a
determinado sexo signifique ser homem ou mulher, biologicamente, enquanto
gênero define o masculino e o feminino, do ponto de vista comportamental e
psicológico.” (ABDO, 2016, p. 21, LAQUEUR, 1991 apud FERNANDES, 2009).
Historicamente,
as pesquisas nesta área são recentes e surgem no séc. XX com grande influência
da ciência médica e com o advento das pesquisas de reprodução e suas
tecnologias tanto conceptivas quanto contraceptivas, porém não é somente a
medicina que inicia este processo. Outras áreas como as ciências sociológicas,
pedagógicas e psicológicas, sob o enfoque psicanalítico, também se preocuparam
em pesquisar o desejo e o comportamento sexual (ABDO, 2016).
Na
contemporaneidade, a visibilidade de temas advindos de outras áreas, incluindo
os estudos feministas, está em evidência nos espaços acadêmicos, bem como; na
formulação de políticas públicas. O acolhimento de linhas de pesquisas e grupos
de estudos que se debruçam sobre a temática de gênero em diversas áreas do
conhecimento e de matrizes teóricas tem sido mais valorizado. Há investimento
nacional e internacional de agências de fomento à pesquisa que estão apostando
nestes estudos a fim de assegurar a alteridade das minorias e incentivar a
formulação das políticas públicas (FELIPE, 2007). Portanto, as pesquisas nesta
área se justificam, já que:
As demonstrações atuais de
intolerância contra minorias étnicas, religiosas e sexuais, comuns no mundo
todo, Brasil incluído, nos indicam que não se trata de um assunto
definitivamente encerrado, circunscrito a um passado longínquo e esquecido,
como pode parecer à primeira vista; mas de um grave problema contemporâneo,
cabendo, portanto, contestar o papel da ciência, sobretudo da psicologia, na
construção histórica de preconceitos raciais e estigmas diversos (MASIERO,
2005, p. 204).
Estudos
realizados nos Estados Unidos da América (USA) por autores renomados, entre a
década de 30 e 60, romperam com o que já estava cristalizado pela sexologia
clínica dos desvios sexuais, trazendo novos fomentos à pesquisa. O advento da
AIDS nos anos 80, enquanto epidemia, e o alto índice de gravidez na
adolescência entre 10 e 14 anos desencadearam, ainda mais, os estudos sobre a
sexualidade contemporânea. “Nesse campo, a influência da epidemiologia e
notadamente da biologia experimental sobre a clínica médica, teve enorme
relevância no século XX. Por sua magnitude, afetou também a sexualidade no século
XXI.” (ABDO, 2016, p. 21; FELIPE, 2007, LOYOLA, 2003).
Foram
muitos os avanços científicos que aconteceram desde o início do século XX.
Garantiu-se a vida pelo transplante de órgãos, da barriga de aluguel e;
posteriormente, a fertilização in vitro. Estudos nos campos da genética humana
avançaram para a elucidação dos códigos genéticos, do genoma, da possibilidade
de clonagem humana, das células tronco e etc., foram essenciais para movimentar
e romper com simbologias e constructos de representação sociais referentes à
identidade parental de origem genética e a própria identidade social em
contraste ao sexo biológico de nascimento (ABDO, 2016).
A
liberação da sexualidade experienciada e vivida movimentou a busca por um
gênero específico, individual e ao mesmo tempo genérico, cujas respostas são
cada vez menos possíveis já que existem muitas formas de atingir prazer e
muitas maneiras de significar uma identidade sexual. Este movimento é o que se
apresenta nas estruturas sociais do séc. XXI e que está em voga nas pesquisas
da contemporaneidade, porém; ainda lida com as forças de movimentos
socioculturais influenciadores de oposição àquilo que se apresenta de novo no
campo das biotecnologias (ABDO, 2016, LOYOLA, 2003).
Como
verificamos, historicamente, houve muitas mudanças no campo social, biomédico,
antropológico, pedagógico e psicológico em relação às expressões de amor e a
sexualidade exercida, a priori, separada das concepções tradicionais biológicas,
que enquadram homem e mulher no exercício de uma única prática sexual, bem como;
a identidade rompida das lógicas binomiais. Os estudos de enfoque feminista, de
vários segmentos, tiveram relevância nesse movimento mutatório, sendo grande
influenciador, justamente por abordarem temas que outrora eram considerados
minoria, de menor valor. Questões como família, infância, maternidade versus
paternidade, bem como; a sexualidade, adquiriram um status primeiro ganhando
expressividade como objeto de pesquisas e estudos (ABDO, 2016, FELIPE, 2007).
Este
tema não é novo, embora as pesquisas mais revolucionárias sobre ele sejam
recentes. Sabe-se que esta frente instiga tanto os pesquisadores como a
população em geral na busca por respostas mais amplas do que as dadas pela
cultura majoritária ou também, pelo contrário a fim de manter antigos
paradigmas referentes aos estereótipos de masculinidade e feminilidade (ABDO,
2016).
A
preocupação com questões envolvendo os conflitos de classe é histórica e
permeou a práxis central dos movimentos que estavam preocupados com as
problemáticas sociais. É a partir dos anos 80, que se verifica uma emergência
na discussão circular de temas como identidade e diversidade cultural. Estas
discussões serviram de pano de fundo para a formação de um “novo movimento
social” (DURHAM, 1984, EVERS, 1984).
Atualmente,
o compromisso com a diferença faz frente à lógica binária que se estabeleceu
até o sec. XVIII como um único sexo completo, masculino e outro incompleto, o
feminino e que a partir do séc. XIX tomou a proporção de dois sexos, um
feminino com características estereotipadas, bela, recatada e do lar e outro;
masculino, poder, força e conquista. Portanto, o comportamento de gênero ganha
novos significados e estes têm uma multiplicidade de conceitos significantes
dentro de uma mesma cultura, porém ainda sofrem com o caráter adaptativo social
que impõe regras sociais. É inegável, portanto, que o comportamento sexual
carrega em si um caráter ideológico, já que está para atender as demandas de um
estilo de vida pré-determinado socialmente (ABDO, 2016, FERNANDES, 2009,
LAQUEUR, 1994, MONEY; TUCKER, 1981).
Judite
Butler, nos anos 90, em suas pesquisas e estudos de Teoria Queer, fez frente
justamente a essas proposições pré-estabelecidas defendendo um aniquilamento
destas estruturas para uma aceitação natural das diferenças de expressão da
sexualidade. Não há, então; a necessidade de uma separação binomial, nem mesmo
uma caracterização comportamental do que seja feminino ou masculino, mas uma
vivência despolitizada ideologicamente das estruturas familiares apoiadas nas
diferenças biológicas (PRADO; MACHADO, 2008; WELZER-LANG, 2001).
Na
contemporaneidade, as pesquisas de Teoria Queer estão para esmiuçar as
dicotomias, as rotulações, as normatizações e a heteronormatividade, logo; ela
não se fixa apenas ao suporte teórico, dos quais os estudos na área da pesquisa
fazem uso, dissertando temas ligados à orientação sexual ou identidade de
gênero. Mais que isto, ela se tornou um agente político e social a fim de
transformar a realidade social preditiva e excludente, que caminha na lógica da
exclusão, cujo posicionamento heteronormativo impõe-se por si só (SANTOS,
2005).
Além
das pesquisas no campo sociocultural, existem pesquisas atuais importantes no
campo das neurociências. Houve neste campo evoluções de técnicas de imagens
cerebrais (ressonância magnética e tomografias), podendo-se através delas perceberem-se
as diferenças entre os cérebros masculinos e femininos (NORO, CRESPI, NÓBILE,
2018; SPIZZIRRI, 2018). Estas possibilidades são muito importantes para as
pessoas transgênero, já que elas apontam para semelhanças entre o funcionamento
cerebral de um cérebro feminino e masculino com o cérebro de pessoas
transgênero. Logo, pode-se afirmar que existem possibilidades para embasamentos
teóricos que dão aos estudos de gênero e de diversidade sexual, o caráter de
científico (NORO, CRESPI, NÓBILE, 2018).
Muotri
(2017) afirma que as pesquisas realizadas por ressonância magnética dos
cérebros transgêneros dão pistas, poucas, de que existem alterações na
estrutura do córtex cerebral e de suas conexões nervosas. As neurociências
contribuem para o entendimento da diversidade sexual e de gênero ao desfazer a
rígida compreensão da homossexualidade como resultado de uma influência do
meio, favorecem a instrumentalização dos/as docentes em minimizar o preconceito
e proporcionam o acolhimento de cada pessoa na sua individualidade e inteireza
(NORO, CRESPI, NÓBILE, 2018, p. 112).
Entende-se
que os resultados advindos de pesquisas, que tomam por base a ressonância
magnética, cooperam com outros estudos que se pautam na morfologia através de
neuroimagens, sendo reforçadores da ideia de que a identidade de gênero de
pessoas transexuais está correlacionada com a variação fisiológica existente na
biologia humana (SPIZZIRRI, 2018).
Do
ponto de vista histórico, a Psicologia, reclama para si o forjar de
profissionais e pesquisadores compromissados, criticamente, com o desvelamento
dos paradigmas científicos que estão em constante transformação e não mais
detém a verdade absoluta. Este compromisso está para além de uma pretensa
neutralidade, a qualquer tempo, pois se sabe que “a ciência pode servir a
interesses de classes ou de justificativas para a segregação de minorias,
sobretudo no Brasil, onde as teorias racistas foram outrora cultivadas por uma
elite intelectual motivada mais ideológica que cientificamente” (MASIERO, 2005,
p. 205).
1.1.
Metodologia[ii]
O
método dialético utilizado baseou-se em estudo descritivo, que utilizou a
análise qualitativa dos dados colhidos durante as entrevistas realizadas. As
entrevistas foram realizadas de forma remota, através da plataforma online
Zoom, devido ao momento histórico vivido durante a pandemia da Covid-19. Foi
realizada pesquisa de campo remota, através de um roteiro semiestruturado, onde
os psicólogos atuantes em serviços sociais voltados exclusivamente à temática e
atendimento da população LGBTQIA’s, principalmente; de indivíduos transgênero,
localizados nas cidades de Campinas/SP, dissertaram sobre suas funções e
atividades exercidas em tal âmbito, assim como suas dificuldades e facilidades para
o desenvolvimento do mesmo.
1.1.1.
Participantes
A
amostra foi composta de 05 profissionais da equipe multidisciplinar, 03
psicólogos e 02 profissionais de outras áreas da saúde: médico psiquiatra e
assistente social, da cidade de Campinas – SP.
1.1.2.
Procedimentos
A
pesquisa obedeceu aos critérios éticos estabelecidos na Resolução do Conselho
Nacional de Saúde nº 510, de 07 de Abril de 2016. Inicialmente foi feito
contato com os profissionais para esclarecimento dos objetivos e procedimentos
da pesquisa. Posteriormente, foi solicitada a assinatura de Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE) destes profissionais. Foram definidas as estratégias
de pesquisa e de horários para permanência no serviço, conforme realidade
diagnosticada. O levantamento de dados foi iniciado após apreciação e aprovação
do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP) da Universidade Paulista,
submetendo-se a presente pesquisa ao sistema CEP/CONEP da Plataforma Brasil.
Os
procedimentos de pesquisa com os profissionais obedeceram a três etapas:
Primeira etapa – Autorização de pesquisa e entrevista com psicólogos
responsáveis pelo serviço. Segunda etapa – Entrevista com os participantes da
equipe multiprofissional, conforme disponibilidade dos mesmos entre espaços
próprios, pré-estabelecidos dentro de sua carga horária habitual. Terceira etapa
– Tabulação, análise e discussão dos resultados.
Tais
procedimentos possuíram o risco de causar algum desconforto no participante,
como por exemplo, ao falar de sua vida profissional e de vivências pessoais
nesta área de suas vidas, situação em que poderiam emergir emoções de pesar ou
tristeza. Os entrevistados foram acolhidos pelos pesquisadores, e puderam
interromper a participação, imediatamente, continuando ou não mais tarde.
2.
RESULTADOS
E DISCUSSÃO
Os
resultados apontaram para a existência de tendência à manutenção de uma matriz
ideológica, no caso a capitalista, que pôde ser observada quando dois
psicólogos entrevistados afirmaram que gerenciar as condições estruturais do
Centro de Referência LGBTQIA+ de Campinas (CR LGBTQIA+ Campinas) por questões
políticas e conseguir manter o usuário no serviço de atendimento após os
primeiros encaminhamentos é um grande desafio. Observa-se que as respostas que
se seguem apontam para o fato de que o viés ideológico estatal ainda se mantém
desprezando a pluralidade cultural fazendo manutenção de uma cultura
majoritária em meio a uma sociedade multicultural, investindo poucos recursos
financeiros no atendimento das minorias (HELLER, 2016).
Importante
notar que, dos três psicólogos entrevistados, dois apontaram como dificuldade a
permanência do usuário no programa ofertado pelo CR LGBTQIA+ Campinas, pois sua
adesão ao “tratamento psicoterápico” é dificultada por muitos fatores
biopsicossociais como falta de acesso aos serviços, inacesso aos meios de
transporte, ser profissional do sexo (prostituição), estar na dependência de cafetões,
etc. e um deles apontou para dificuldades de atendimento dessas realidades
biopsicossociais.
Estes
dados denotam o problema existente na sociedade democrática que é o
mascaramento das minorias e que está interligado ao impingimento da cultura
majoritária por intermédio do poder político que nega aos indivíduos a
igualdade de direitos, ferindo a identidade dos cidadãos. Agiganta-se a
política neoliberal, própria do sistema capitalista, que promete ampla
concorrência mercadológica, vendendo ilusões de uma falsa igualdade, entretanto;
sendo a mantenedora da desigualdade social. A pobreza necessita ser
compreendida pelos indivíduos envolvidos no processo de inclusão social como um
fenômeno histórico sempre existente, mas que no capitalismo toma formas mais
perversas, já que os recursos financeiros são existentes, porém chegam para a
população mal distribuída, retroalimentando a desigualdade social (FECHINE,
ROCHA, CUNHA, 2014). Conforme
as palavras da psicóloga entrevistada (informação verbal)[1]
e do psicólogo entrevistado (informação verbal)[2]:
Nós temos o desafio institucional
de estrutura, de curso mesmo, de ter uma impressora colorida para imprimir um
laudo, de ter mesmo papel sulfite, que são coisas assim que faltam por serem
serviços públicos. Muitas vezes essa população tem a dificuldade de aderir
[...] o tratamento psicológico, a psicoterapia, porque é uma população que tem
uma característica muita especifica [...] elas são muito emergenciais, elas tem
uma expectativa de vida muito curta, então; essa psicoterapia para elas, uma
coisa mais longa, é muito sem sentido [...] porque não sabem se vão estar vivas
daqui 30 minutos. Os desafios maiores são vencer essa questão de quanto à família
ainda é um problema, de quanto a religião é um problema, porque vai totalmente
na contramão do que a gente acredita (Psicóloga, 50 anos). O CR é bem sucateado
pela estrutura que o governo nos oferece [...] a aderência [...] as pessoas vem
até o centro de referência com o objetivo de conseguir um encaminhamento e
quando conseguem [...] vão embora (Psicólogo, 31 anos).
Faz-se
notório no discurso dos psicólogos entrevistados, que sua atuação não pode
ignorar os aspectos políticos, sociais e religiosos que envolvem a atenção
específica dada ao público LGBTQIA+ e que este deve trabalhar para incluir de
fato esta população na sociedade, propiciando conhecimento de luta de classes e
alcance aos seus direitos mais básicos, além de obter conhecimento das políticas
de inclusão social vigentes no país. Toda ação na sociedade que visa à
transformação é libertadora, pois tem uma natureza que trabalha as relações
horizontais e éticas. Portanto, estas relações são produtoras de diálogos entre
as partes envolvidas que podem levar a construção do conhecimento que conduz a
ação. “Os sujeitos envolvidos em uma ação transformadora são igualmente capazes
e responsáveis pela construção de relações inclusivas ou excludentes”. (MARTÍN-BARÓ, 1996; COSTA, 2015, p.
273).
Observa-se
que esta preocupação funcional do psicólogo aparece nas respostas dos
psicólogos, já que um deles apontou que o maior desafio é a conscientização
valoral do ser humano transexual e o seu empoderamento como cidadão de direito
e que outro profissional acredita, que vencer a questão da família e da
religião, como um problema, é um desafio, porque suas ideologias vão totalmente
à contramão daquilo que se acredita atualmente no campo psicológico, médico e
social. Sendo, portanto, esta uma preocupação de dois dos psicólogos
entrevistados.
Estas
observações coadunam com os estudos teóricos que apresentam as barreiras
religiosas, médicas e sociais existentes e construídas ao longo da história na
sociedade ocidental como influências negativas diretas na construção do
pensamento, na família da pessoa transgênero, em relação à prática sexual
homoafetiva. Sendo estas barreiras uma retroalimentação do estigma e do
preconceito, pois posicionam a prática sexual fora da norma naturalizante ou
biológica em condição de pecado, aberração ou abominação (BENTO, 2003;
FERNANDES, 2009; HELLER, 2016; LAQUEUR, 1994; MASIERO, 2002/2005).
No
tocante as dificuldades e facilidades encontradas no desenvolvimento do
trabalho do psicólogo no CR LGBTQIA+ Campinas dois dos entrevistados retomaram
a questão estrutural, parte física e financeira e a ingestão municipal.
Elencaram que precisam utilizar recursos próprios na realização de seu
trabalho, confirmando que a política social, na prática, privilegia os que
pertencem à maioria, desprezando a minoria pré-existente (ABDO, 2016; HELLER,
2016, FECHINE, ROCHA, CUNHA, 2014).
Questões
políticas abriram espaço para a volta do preconceito e de agressões verbais,
afirmou um dos entrevistados. O mito da ideologia de gênero dificultou o
trabalho nas escolas (palestras, etc.). As perseguições políticas e religiosas
ganharam ênfase sob a desculpa do politicamente correto. Esta afirmação do
profissional leva à reflexão e retoma a ideia marxista que aborda a questão dos
espaços e como o indivíduo se apropria dos mesmos. Em sua obra, Marx expõe como
o homem se desenvolve dentro de seu meio social, que é assinado por construções
de produção histórica, tendo como impulso o trabalho nos processos societários,
grupais. Logo, a herança cultural deixada de geração a geração vem acompanhada,
também; do viés negativo, sendo eles a manutenção de estigmas, preconceitos e
estereótipos. O universo religioso aliado ao sistema político perpetua
preconceitos e dificulta a aceitação do comportamento sexual diverso (ABDO,
2016; MARX, 2009; MASIERO, 2002/2005).
As
facilidades relatadas pelos profissionais psicólogos apontaram para a
necessidade que a população atendida possui, de ajuda e apoio, pois a mesma é
carente de base biopsicossocial e de religiosidade, já que enfrenta muitas
barreiras na constituição de sua identidade e aceitação de sua condição por
familiares e a sociedade em geral, amor pelo trabalho e fé na causa com
disponibilidade de luta e enfrentamento e engajamento no projeto de levar informação
e empoderamento à população atendida. Estes apontamentos facilitadores
corroboram para a importância de proporcionar ao paciente acolhimento de suas
demandas reais e escuta de suas problematizações.
Os
psicólogos, quando questionados sobre a relação multidisciplinar dos serviços
disponibilizados à população transgênero e sobre a importância desta relação na
execução do trabalho em equipe, em sua maioria; expuseram fragilidades na
relação de equipe multidisciplinar, apontando acúmulo de funções, poucos
funcionários e utilização de apoio extra de organismos governamentais e entidades
colaboradoras e parceiras e apontou como essencial o trabalho de equipes,
embora apenas um deles tenha respondido esta questão de forma objetiva,
entendendo a quase ausência de trabalho multidisciplinar na organização CR
LGBTQIA+ Campinas.
Importante
notar que dois deles apontaram para o trabalho multidisciplinar “extraoficial”
de natureza colaborativa e de parcerias com CAPS, profissional ginecologista da
prefeitura, movimentos sociais: Casa sem Preconceito e CEPOP e que um deles apontou
falhas de governo municipal que não enxerga o trabalho desta instituição como
importante no empoderamento das pessoas transgênero. Dando ao trabalho
realizado pela equipe apenas um sentido burocrático.
Denota-se
que a situação atual da organização é precária, pois quando atenta-se à fala da
psicóloga responsável pela supervisão psicológica do CR LGBTQIA+ Campinas, a
realidade, nua e crua, aparece nos relatos oficiais informados por ela e estes
apontam para a existência de apenas duas funcionárias oficiais na organização e
acúmulo de tarefas. De acordo com a psicóloga entrevistada (informação verbal)[3]:
A gente não consegue [...] fazer
uma coisa muito interdisciplinar porque só sobrou eu e a [...] assistente
social e ela está coordenadora, então a gente passa semanas sem se encontrar. Hoje
a gente tenta se virar como dá [...] tenta conversar como [...] consegue, por
exemplo, nós falamos pelo wattsapp, ela consegue me passar recados. Eu acabo
falhando um pouco nesta questão interdisciplinar porque a gente não consegue
muito encaixar nossas agendas, ela acabou ficando muito nessa parte da
coordenação, que tem um monte de pepino pra resolver e eu fico na parte da
psicologia (Psicóloga, 50 anos).
Observa-se
que a quase ausência de uma equipe multiprofissional que se complemente e
intercomunique adequadamente, em reuniões periódicas, a fim de discutir as
demandas sociais específicas do público atendido pelo CR LGBTQIA+ Campinas é um
agravante para o trabalho em equipe que tem prejudicado a proposição de novas
estratégias de intervenção em saúde, que se utiliza de diferentes campos do
conhecimento científico na objetivação da garantia do direito a assistência social
das pessoas que se encontram em processos injustos (PEDUZZI, 2001).
Os
psicólogos, ao serem questionados sobre as queixas levantadas pelos usuários
dos serviços disponibilizados à população transgênero na perspectiva do
profissional psicólogo; indicaram para queixas que foram implantadas no campo
psicossocial ou familiar dos indivíduos, ou seja; ideia e valores impostos pelo
convívio social, que estão intimamente ligados ao preconceito e a discriminação
social, um deles apontou para as dores psíquicas que estão relacionadas ao
sistema de crenças e valores das pessoas transexuais, um deles para questões de
despatologização da população LGBTQIA+ não só do homossexual, mas também das
transexuais, um deles apontou para as questões de identidade, questionamentos e
confusões relativas ao estado de ser homossexual e ser transexual, etc., bem
como aos modos de se relacionarem afetivamente, um deles expressou acreditar
que as questões de violência relativas ao gênero são um plus a mais, pois muitos deles sofrem violências por serem
transexuais, além de muitos sobreviverem da prostituição e outro expôs que há
necessidades básicas relativas à segurança e alimentação.
Observa-se,
que todas as queixas apresentadas acima pelos profissionais se entrelaçam e
derivam da primeira, já que se entende que a cultura do preconceito está
implantada na sociedade por meio da religião hegemônica e da política estatal e
que esta se encontra disseminada no imaginário popular, sendo transmitida como
verdade às gerações. Esta verdade imposta afeta as famílias e consequentemente
as pessoas transgênero, por isso elas sentem-se confusas em sua relação
identitária, ou seja; de quem elas são de verdade e de como devem se relacionar
e em qual modelo familiar. Em decorrência destes estigmas e estereótipos
estabelecidos na cultura social reconhece-se que a violência contra o público
LGBTQIA+ é alta (ABDO, 2016; BENTO, 2003; FERNANDES, 2009; MARX, 2009; MASIERO,
2002/2005).
No
Brasil, em 2020, foram registrados, nos primeiros oito meses, 129 assassinatos
de pessoas transexuais, com um aumento de 70% em relação ao ano anterior. O
período da pandemia Covid-19 agravou ainda mais as desigualdades já existentes,
pois a maioria não conseguiu acesso ao auxílio emergencial. A violência
doméstica teve aumento de 45% no período de quarentena, já que as transexuais
foram obrigadas a permanecerem junto de seus algozes e familiares intolerantes.
“Os cinco estados com mais mortes de pessoas transexuais entre 1 de janeiro e
31 de agosto de 2020 são: SP com 19 casos, BA e MG com 16, Ceará com 15 e RJ
com 7 assassinatos” (p. 03). Além disso, muitos travestis e transexuais acabam
por ser marginalizados pela sua condição caindo nas teias da prostituição,
aumentando o risco de morte. Logo, por não terem oportunidades justas de
emprego e subsistência, necessidades básicas, segurança e alimentação, terminam
na precariedade (ANTRA, 2020).
Segundo
dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) 90% das pessoas
transexuais utilizam-se da prostituição em algum período de sua ontogênese.
Isto ocorre porque muitas destas pessoas são expulsas de casa, não conseguem
escolarizar-se e acabam sendo excluídas do mercado de trabalho que discrimina
sua condição. A segregação e a humilhação acabam por retirar desta população o
direito ao trabalho. Importante notar que no Brasil não existe uma lei que
garanta a pessoas transexuais oportunidade de emprego (MAYUMI, CAMILA, 2020;
FERREIRA, 2020).
Os
apontamentos dos psicólogos relacionados aos dados de pesquisa apresentados por
órgãos competentes inferem que a necessidade de atuação do psicólogo no trato
das questões político sociais ultrapassa as funções nominais estabelecidas pela
sua profissão. O profissional psicólogo ao trabalhar com problemas relativos à
injustiça estrutural deve adequar sua atuação aos contextos reais das
populações. Embora não seja sua função específica, ele deve dar suporte a partir
de sua singularidade, em resgate de uma resposta, ou seja; sua atuação implica
na sua autoconscientização de que é seu dever amparar os indivíduos a fim de
suplantar a alienação de sua identidade, objetivando transformar o seu contexto
opressor (MARTÍN-BARÓ, 1996).
Os
outros profissionais, psiquiatra e assistente social, ao serem questionados
sobre as ferramentas e técnicas utilizadas no exercício profissional afirmaram
dar apoio emocional aos usuários dos serviços através do acolhimento das
demandas sociais e encaminhamento a outros serviços necessários. Relataram
priorizar a participação por meio do diálogo e de intercomunicações entre
serviços ofertados fora do âmbito profissional e um dos profissionais afirmou
encaminhar os usuários a serviços ofertados por outras organizações conforme a
demanda biopsicossocial e de religiosidades, como exercício da fé em igrejas
inclusivas ou católica, time esportivo inclusivo e o Centro de Referência LGBTQIA+
de Campinas-SP.
Individualmente,
de acordo com suas especificidades, os profissionais relataram suas
intervenções a partir de técnicas e ferramentas com o público atendido. O
psiquiatra apontou utilizar-se de medicação, publicidade, trabalho em rede, rodas
de conversa e acessibilidade. A assistente social afirmou utilizar a anamnese e
visitas domiciliares em casos de extrema urgência. De acordo com o médico
psiquiatra (informação verbal)[4]
e da assistente social (informação verbal)[5],
cada um realiza seu trabalho conforme suas especificidades:
Eu trabalho no serviço SUS [...]
referencio o centro de referência, passo essas informações [...] em Campinas
temos o primeiro time LGBTQIA+ do interior, o Camaleões, eu encaminho para a
pessoa entrar em contato. Coloco as informações que tenho para que a pessoa
possa ter uma rede de apoio e sustentação [...] quando a pessoa tem uma prática
espiritual se é católica, eu encaminho para a universidade católica, se é
evangélica sugestiono/encaminho para conhecer as igrejas inclusivas. Para que
serve a medicamento psiquiátrico, o atestado, o relatório [...] a gente tenta
acompanhar o paciente [...] continuar conversando, continuar tendo canais de
comunicação, acessibilidade, acho que isso é um grande critério, porque às
vezes as portas para essa população são fechadas, o que me deixa triste (Médico
Psiquiatra, 58 anos). Anamnese [...] é instrumental nosso, o qual foi
desenvolvido por nós e nos ajuda a extrair as informações que precisamos para
trabalhar [...] visitas domiciliares, quando possíveis, também podem ser
realizadas. Tudo se resume ao que disse sobre o mundo ideal e o real, no ideal
poderíamos fazer tudo, mas, no real, por exemplo, visitas domiciliares só são
realizadas em casos de extrema urgência e necessidade. Durante nossos
trabalhos, se necessário, também adaptamos os instrumentos ao nosso alcance
para que eles nos auxiliem da melhor forma possível durante o processo (Assistente
Social, 50 anos).
Observa-se,
que neste caso, o trabalho interdisciplinar não ocorre, já que o médico atende
fora do CR LGBTQIA+ Campinas. Ambas as falas corroboram para intervenções
limitantes da estrutura física oferecida, que não abarca o trabalho em equipe.
O atendimento médico se descola de sua equipe multiprofissional da UBS, já que
afirma enfrentar desafios de mentalidade no atendimento das pessoas transexuais,
principalmente em relação ao encaminhamento para operações intersexo. Ambos os
profissionais demonstram interesse no bem-estar social dos indivíduos, apesar
de todas as barreiras estruturais que se apresentam na cotidianidade. O
trabalho coletivo deve ser realizado para a diminuição de desigualdades e;
quando isso ocorre, a interação integral da equipe fica satisfatória, no
entanto; o que se observa nas relações hierárquicas entre profissionais é a
prevalência de determinadas profissões sobre as outras, em detrimento aos
discursos críticos acerca das divisões compartimentadas de tarefas (PEDUZZI,
2001, p. 107).
3.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Verificou-se
que há prevalência de mecanismos sociais próprios da sociedade capitalista, já
que, como cidadão, se está inserido numa nação com historicidade ocidental que
tem por base a instituição do capital e suas formas de exclusão. Isto se
verificou nas teias que envolvem o cotidiano da pessoa transexual que, na
lógica do capital, é excluída da empregabilidade e jogada a precariedade
social, tendo que recorrer muitas vezes à prostituição como forma de
sobrevivência. Isto se verificou nos relatos dos profissionais que apontaram para
dificuldades financeiras como barreiras para um acolhimento efetivo, já que
muitas transexuais chegam ao CR LBTQIA+ com fome, sujas, são moradoras de rua,
prostitutas profissionais, possuem dificuldades de acesso por não terem o
dinheiro da passagem para chegar ao local do tratamento psicológico.
Averiguou-se
que não bastam apenas, como psicólogos, cumprir os papéis delegados ao
exercício da função profissional, pois o psicólogo precisa ir além de suas aptidões
básicas, já que os desafios políticos e formação da sociedade exigem luta de
classes e consciência da práxis que é o movimento teórico, base de
direcionamento, e a prática atuando juntos como agentes de transformação.
Percebeu-se o quanto os profissionais envolvidos no atendimento das pessoas
diversas atuam para além de suas proposições específicas, engajando-se no
empoderamento e na luta contra ações preconceituosas e estigmatizadoras,
oriundas das políticas sociais.
Portanto,
a autoanálise das próprias concepções profissionais e pessoais, bem como a
busca pela superação dos vieses ditados a priori pela ideologia predominante,
das maiorias, a autoconsciência humana precisa estar em constante transformação
e suspensão, já que existe a tendência pela manutenção e comodismo
profissional. Acredita-se que o profissional psicólogo tem fundamental
importância neste movimento transformador, mas para tanto precisa modificar-se
a si mesmo, ou estará fadado à manutenção do status quo “curativo”, que
pretende manter as separações, as injustiças e a inoperância político-social,
mesmo que pela simples imitação reiterativa e espontânea.
Em
outras palavras, é preciso encarar os movimentos reacionários e estar preparado
para as represálias oriundas dos órgãos e instituições que dominam os
pensamentos em massa. A emancipação dos seres somente ocorre para os que de
alguma maneira opõe-se a toda forma de opressão e dominação política
neoliberal, portanto; o processo de transformação emancipatória somente ocorre
pela intencionalidade de natureza política que objetiva antes de tudo a
liberdade para ser cidadão de direitos no mundo.
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[1] Entrevista concedida por Psicóloga
responsável pela supervisão psicológica do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 21 de
maio de 2020.
[2] Entrevista concedida por Psicólogo
colaborador do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 27 de maio de 2020.
[3] Entrevista concedida por Psicóloga
responsável pela supervisão psicológica do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 21 de
maio de 2020.
[4] Entrevista concedida por Médico
Psiquiatra responsável pelo atendimento de pessoas transexuais, encaminhadas
pelo CR LGBTQIA+ Campinas ao Sistema Único de Saúde para orientação de cirurgia
intersexual numa Unidade Básica de Saúde de Campinas/SP, em 28 de maio de 2020.
[5] Entrevista concedida por Assistente
Social responsável pela coordenação do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 26 de maio
de 2020.
[i] DAMARIS ALCIDIA DA COSTA MELGACO. PEDAGOGA, PSICÓLOGA,
ESPECIALIZADA EM DOCÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR PELA FACULDADE EDUCAMAIS.
PÓS-GRADUANDA EM POLÍTICAS DE INCLUSÃO (EDUCAMAIS).
[ii] O presente artigo é um recorte
individual do Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) apresentado ao
Instituto de Ciências Humanas da Universidade Paulista, São José do Rio Pardo,
2020, intitulado, A Importância da
Atuação do Psicólogo como Agente de Transformação e Proteção da População
Transgênero e teve como autores: ALVES, C. F. J.; MELGACO, D. A. C.; LEÃO, M.
F. de S.; PASSONI, M. F. F. e EDUARDO, T. A., sob a orientação do professor Me.
Marcio Ângelo Menardi. 113 f. O mesmo obteve nota máxima e foi apresentado,
online, no V Encontro de Produção Científica
do Curso de Psicologia da UNIP em
12 de novembro de 2020, sob a coordenação de sala do professor Dr. Paulo
Benzoni.
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