segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Meritocracia cabulada no discurso conteudista


Por Dâmaris A C Melgaço

Há tempos reflito sobre questões como nota e meritocracia. Não somente eu, claro; já que muitos outros estudiosos também o fizeram antes de mim. Esta reflexão perpassa um campo histórico-social vasto que abarca a instituição de um sistema de ensino escolar meritocrático, instalado a partir dos interesses capitalistas e que reverberaram nas ciências estatísticas e matemáticas até a psicometria, de bom grado, aplicada aos interesses educacionais mercadológicos.

Diante disso, muitas confusões pedagógicas se instalaram nas matrizes pedagógicas e geraram contradições referentes a práxis escolar que envolve ensino-aprendizagem e avaliação. Questões primárias são evocadas para a sustentação de um ensino convencional conteudista com regras e metas matriciais curriculares, aplicados desde sempre na concepção tradicionalista - estruturas de ideólogos alemães - e tradicional de ensino - própria de uma adaptação tradicionalista aditiva do capital.

Correntes progressistas realizaram então tentativas de resoluções pedagógicas para compreensão de responder o fracasso escolar residente nos países capitalistas dependentes. Toda culpa foi depositada nos métodos, nas didáticas e conteúdos escolares e trouxeram inovações que pretendiam fugir da lógica meritocrática: avaliação e nota.

Observa-se que há os que defendem um realocamento dos conteúdos como a centralidade objetiva da aprendizagem e outros que defendem a experiência educativa como a centralidade da volição necessária para a propulsão da aprendizagem. Os primeiros acreditam que não pode haver adaptações, concessões ou qualquer tipo de caminho da experiência humana como variável interveniente da aprendizagem, para tanto exigem o cumprimento de uma educação rigorosa e meritocrática que culmina na nota. Os segundos compreendem o caminho da volição humana, entendendo que variáveis intervenientes cumprem papel primordial na aprendizagem humana. Desta forma buscam alternativas que fogem aos padrões tradicionalistas e tradicionais. 

Essa guerra expõe o caráter complexo dessas formas de se pensar educação. Qual seria, então o caminho da aprendizagem humana? A resposta reside em conceitos simples: ação e reação como resultado da vivência humana geradora de volição. A ação de escolher ou decidir estudar é sempre a chave da reação que é aprender. 

Por isso o aprendiz demarca o território de seu aprendizado. É inútil acreditar que somente por forças extrínsecas, regras, modelos, conteúdos, nota, punição, etc. haverá aprendizagem. Talvez por medo da reprovação punitiva, seres humanos se submetam as decorebas e cataloguem-se numa nota. No entanto, isso não garante aprendizagem. 

Tal fato é notável, já que a maioria dos adultos brasileiros, até se lembram da fórmula de Bhaskara, mas não sabem pra que a decoraram e muito menos pra que ela serve. Aprendizagem implica em processos intrínsecos fundamentais que perpassam o significado e o significante das coisas.

Aprender para que? Esta questão filosófica é uma insistente nos processos humanos. É um princípio que jamais deve ser abandonado. Portanto, a filosofia é uma insigne importante dos processos evolutivos humanos traduzidos em aprendizagem. O homem que aprende não esquece o que aprendeu e passa a sua descendência o seu aprendizado. 

Todo aprendizado humano perpassa a experiência humana em processos concretos e basais da aprendizagem. Sem as bases concretas do aprendizado não há ensino. Porque se não faz sentido, se é alheio ao homem, se não lhe toca, este não pode significar e nem aprender. O máximo que ele fará é decorar o que lhe ensinam, é repetir o que lhe contam, é reproduzir o que lhe dizem ser.

Para entender melhor, tomemos uma criança como exemplo: enquanto o adulto lhe diz - "Não sobe aí, você vai cair, vai se machucar" esta não cumpre a ordem. Geralmente ela insiste em subir. O adulto lhe agarra, lhe prende, lhe poda, repete e repete e no primeiro descuido a mesma criança sobe naquele lugar de aviso proibido. Num primeiro momento não cai e o adulto de posse de seu aprendizado insiste na ordem. No entanto, a criança só aprende quando cai e se machuca e dói. É ali que se dá o seu verdadeiro aprendizado. Então ela agora pela própria experiência sabe o risco de subir. Isto não garante que ela não subirá novamente, não é mesmo?  O diferencial é que ela agora sabe o que pode acontecer, então novos aprendizados surgem. Ela aprende a se cuidar, a não arriscar tanto. Faz sentido.

Apreende-se que a educação é preceptora do aprendizado, mas é o aprendiz que significa na sua experiência o que quer aprender. É um processo coletivo que não extingue a volição. Portanto, o ditame adulto não garante aprendizado, embora muitos possam corresponder as cabulações meritocráticas. O fazem porque lhes interessa o resultado, e o resultado não passa da reprodução do capital.

A educação que se pauta na meritocracia não tem nada de autêntica. Trata-se de reprodução, de educação de papagaios. A educação que soma é aquela que respeita o aprendiz, que intencionalmente o busca tocar, que lhe faz sentido, que lhe impressiona, que lhe desperta a volição catártica do conhecer. É o ressuscitar filosófico de velha tradição, que impulsiona o questionamento das coisas, dos fatos, da vida. 

Finalizo com Henri P. H. Wallon, que nunca especificou um estágio final para o desenvolvimento humano, porque nunca acreditou no mesmo. Para ele, o processo de aprendizagem sempre implica na passagem por um novo estágio. Se aprendemos, então significa que nos adaptamos e esse processo dialético jamais se encerra.

A meu ver, é preciso ressignificar os processos avaliativos, não ignorando as interveniências sociais, estruturais, que perpassam a evolução do humano e o desenvolvimento do pensamento humano. Não basta um bom programa de disciplinas, um bom currículo, uma boa didática, um plano de aula bem elaborado, se estas variáveis forem ignoradas. Não se trata de paternalismo, embora não devemos generalizar, mas de um olhar apurado para as especificidades psicológicas humanas a partir de suas realidades estruturais e de suas vivências sociais. Enfim, se a educação não for dialética ela se perde no pragmatismo. 



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