terça-feira, 18 de junho de 2024

"Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido ...".

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Meu verso livre hoje vai para a vida que questiona a dor. Parece que a gente precisa viver mil vidas para entender que a dor é o que nos mantém vivos. Dia desses, perguntei: "- O que seria da vida sem a dor?". Note-se que foi uma pergunta e não uma afirmação. Cada um dá a resposta de acordo com o que carrega dentro de si e de acordo com a forma como a compreende e se relaciona com ela. Quanto a mim, lavo a alma em soslaio, como quem tem algo do que se envergonhar ou não, talvez. 

Sei lá! Sempre tive uma relação intrincada com a dor. Mamãe dizia que eu dei muito trabalho! Não suportava o colchão do meu berço e só dormia aconchegada em seus braços. Talvez porque a vida me era estranhada desde lá. Contou-me que quando ela me gestava, sofreu um acidente de carro que deixou marcas em seu rosto e na perna do meu irmão mais velho. Aos seis meses fui parar numa UTI com pneumonia dupla. As sequelas me acompanharam a vida toda, asma e depois bronquite. 

Acho eu, que a vida sempre foi sufocante e; cá entre nós eu nunca gostei muito dela. Quando eu tinha cinco anos, uma parede de madeira caiu sobre mim. Meu pai estava desmanchando uma edícula de madeira e nós; eu e minha irmã do meio, brincávamos correndo sobre o assoalho. Foi sorte minha irmã ficar com a cabeça de fora e ser escandalosa (risos). Lembro-me do peso sufocante sobre mim, não havia o pensamento da morte, apenas a sensação angustiante. Foi um alívio quando meu pai ergueu a parede e me tirou de lá (eu sempre fui azarada, fiquei no meio do assoalho). Anos antes, havia quebrado a clavícula caindo de mau jeito do sofá, na casa de minha avó. 

Querido leitor! A mágica mortal, é sempre a contradição entre a dor e o alívio. Porque contradição é o que não falta a vida. E é justamente esta contradição que nos condiciona a viver na gangorra da dor e do alívio. O ditado "morde e assopra" se torna real e você se vê em meio a culpa de recusar o bem de quem te machuca. Em meio a dor o edifício da vida é construído, criando um ciclo que nunca acaba. Rompê-lo provoca medo e culpa. Culpa por não ser o que se espera, por não corresponder ao que desejam de você, pela ingratidão em não aceitar o bem que foi feito no meio da tempestade por quem deveria te amar, mas te feriu mortalmente. E o ciclo é tão violento que a vítima se torna o algoz de si mesmo e do outro.

Mas se o ciclo não se encerra, como aceitar a presença da dor? Se a dor é parte da existência, como conviver com ela? Durante muito tempo eu achei que para fugir da dor só existia um caminho: a morte. Se magicamente existisse outras vidas, penso ser eu uma suicida que voltou pra ser resgatada desta resposta. Óbvio que esta metáfora é para dizer que sempre fui uma suicida em potencial. A ideia de morrer sempre me acompanhou e; embora eu tenha apego a vida, muitas vezes já imaginei a minha morte. O que me manteve viva é não saber o que encontrar no escuro, neste vasto mundo desconhecido para além da vida.

Se a resposta não é a morte, qual é? Talvez, pelo menos para mim, seja aceitar que a vida é dor e que a dor é o que nos mantém vivos. Ultimamente tenho refletido sobre a vida e o fim último da humanidade: a morte. Quando nascemos, naturalmente nascemos em dor. Eu garanto para vocês que de todas as dores que eu já senti, a dor de um parto foi inigualável, nem mesmo quando quebrei a cartilagem do nariz ou quando tive uma crise de cólica renal. Talvez, como presente, a vida desejasse que eu experimentasse essa dor para compreender a sua importância. No parto mãe e filho nascem no experimento da dor e da alegria. O alívio sentido, a junção dos corpos cansados da mãe e do filho pela luta uníssona que inaugurou a vida. 

Tenho refletido em como, ao longo da vida, nós sobrevivemos. Por que não nos jogamos de penhascos? Por que não engolimos comidas ferventes? Por que não ficamos expostos ao sol torrencial ou em chuvas gélidas? Por que não entramos no meio do fogo ou colocamos nossas mãos nas chamas de um fogareiro? Certamente, não foi porque alguém nos disse. Foi porque alguém experimentou a dor de cair de um sofá e quebrou a clavícula, porque alguém - num dia comum - queimou a língua com algum alimento quente, porque alguém em algum momento experimentou as queimaduras do sol que quase lhe causaram uma insolação e porque alguém resfriou-se ou pegou uma gripe forte que a colocou na cama por alguns dias ou acabou por pegar uma pneumonia. 

A canção da Kell Smith, Era uma vez, possui o seguinte verso: "Porque um joelho ralado dói bem menos que um coração partido ...". Pois é, a dor que nos acompanha desde o nascimento é o que nos mantém vivos. Obviamente, que quem caiu do penhasco, raramente estará vivo para nos contar de sua dor mediante os ossos partidos e os órgãos rompidos, mas certamente o sobrevivente terá muito o que falar e; mais que isso, muito o que transmitir como aprendizado. O sobrevivente é aquele que vence a morte pelo alívio da dor, que cura as feridas, que cuida de suas cicatrizes com carinho e que por vivê-las, finalmente compreende a dor como o processo necessário para desenvolver a empatia. Afinal, morrer é causar dor, é partir corações, é matar aos poucos de culpa quem nos amava. 

Morrer, penso eu, talvez seja um alívio final para o sofredor, mas certamente será uma espada atravessada em quem fica com o "coração partido". A morte como ato final, talvez seja um movimento egoísta que visa punir o algoz, causador de nossa dor. Ou pode ser uma forma de dizer que não suportamos doer, não suportamos o ardor do Mertiolate, não suportamos a carga da vida dos que vivem em dor e nos imputam mais dor. Talvez seja a forma dramática de dizermos que estamos sós e em abandono. Que o nosso coração está partido pela falta do afeto!

Talvez seja, justamente por isso, que o ciclo se fecha entre a dor e o alívio de quem morde e assopra. Caro leitor! Eu achava que poderia proteger os que amo da dor do sofrimento, descobri que embora eles não tenham vivido as minhas dores e eu os tenha protegido em partes, eles tem vivido a dor de suas próprias escolhas. Nós não podemos proteger da dor que vem sem aviso, porém é a dor que nos avisa que algo não está bem e que precisa ser tratado. Eu quereria poder extinguir a dor, mas é justamente pela ausência dela que muitos tem sucumbido ao seu primeiro sinal. A vida dói, viver é um ato de coragem, porque morrer todos nós iremos, um dia. A morte já é o nosso destino final!  

Permito-me um adendo de que a vida que dói também é a vida que nos proporciona muitas alegrias. 



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