domingo, 29 de setembro de 2024

Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector



- O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.

- O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

- Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

- O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.

- Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.

- O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.

- O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

- Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.

- Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

- O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.

- Aviso: não confundir bobos com burros.

- Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

- Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

- Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.

- Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

- O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.

- Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.

- Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.

- Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

- Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

- Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.

- É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Fonte: 
LISPECTOR,  C. Todas as crônicas.  Rio de Janeiro: Rocco, 2018, pp. 324-326.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Abrevia-se a vida na palma da mão

Caro leitor,

(Por aqui ao ocaso ou a intento) 

Saiba que,

No tempo finito, espaço miúdo entre o nascimento e a morte, aprendemos que precisamos esconder os sentimentos, porque escondê-los garante a nossa subsistência. A vida vivida se torna uma grande teia de subordinações e insubordinações. É preciso esconder vulnerabilidades, dualidades e contradições. A dança do finito inicia o grande baile de máscaras vividas. E, não esquive-se amigo leitor, estás incluído, todos estamos. 

Corremos atrás de tanto e nos perdemos em nada e a todo tempo negamos a existência real. A maioria de nós chora escondido em posição fetal, mas não declara. Quantas vezes você já deu um grito abafado em seu travesseiro, almofada, na garantia de não ouvirem a sua dor? Pois é, a dor de ser irreal é a verdade que ninguém quer ouvir, porque aprendemos que quem faz sucesso não é o fraco, o vulnerável, àquele que não tem força pra enfrentar o mundo social na selva de pedra. Os "fracos" logo serão destruídos pelos companheiros irreais.
 
Acostumados a não serem reais, encontrarem-se com seres reais é quase um crime ontológico, pois gente real parece ser demasiado irreal.  Na aparente ilusão criada numa pseudomaterialidade real e concreta, entres dissimulada, o autêntico incomoda, porque o autêntico revela o humano real, que envolve a integralidade da vida vivida e que, por conseguinte, não ocorre sem sentidos e emoção.

Emocionados são descontrolados, passionais, irracionais. Desta feita, os racionais serão os que aprendem a racionalizar a vida vivida, sob a regência do domínio emocional. São os que aprendem a engolir o choro, guardar a raiva, recolher o sentimento e gerir suas emoções até fazerem uma receita de bolo perfeita, acrescida de uma boa dose de conhaque e, talvez permitida, viagens astrais.

Garantindo o ritmo sonoro sobrevivente, abrevia-se a vida na palma da mão. Deixamos o sentimento de lado para acolhermos com carinho o conveniente, assim se dá o desconforto confortável. 


A vida vai seguindo o ordinário das coisas na manutenção da vida aparente. 

Aos emocionados reservam-se as artes, pois nela a expressão é permitida como uma excentricidade. 

Então, surgem os irreverentes desviantes, os gênios estranhos e, comumente nos juntamos a eles e nas suas percepções poéticas que nos dizem de nós, nos leem, nos revelam, nos tocam na intimidade do sentimento guardado e cabulado.

Nota: 
Retomo o sublinhado para dizer que na palma da mão se encontra o poder de decisão. No entanto, a maioria de nós, sob controle, ignora. 





quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Tenho tanto sentimento - Fernando Pessoa

Tenho tanto sentimento


Que é frequente persuadir-me


De que sou sentimental,


Mas reconheço, ao medir-me,


Que tudo isso é pensamento,


Que não senti afinal.



Temos, todos que vivemos,


Uma vida que é vivida


E outra vida que é pensada,


E a única vida que temos


É essa que é dividida


Entre a verdadeira e a errada.



Qual porém é verdadeira


E qual errada, ninguém


Nos saberá explicar;


E vivemos de maneira


Que a vida que a gente tem


É a que tem que pensar.


18-9-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 179.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Quando a lua não trai

 Hoje, eu queria fazer um poema que falasse por mim, que extravasasse o sentido.

A frase talvez fosse "Entre nós dois tinha que haver mais sentimento".

 É irônico a vida a dois que acontece na solidão.

Todos os sinais estão ali ... O que dói não é percebê-los ...

O que dói é inteiro, dentro-fora, extrínseco ao tempo.

Todos os sinais já estavam ali ... desde a primeira vez percebido-ignorado.

Quando a gente se apaixona, a razão perde o sentido, quer ver-se noutro.

Um outro inexistente, inventado, criado pela ânsia do que lhe é negado.

São as buscas da falta, cuja ânsia - por um instante - parece completado. 

Uma completude destoante, quando a ânsia aceita o inaceitável.

Dia desses, assisti um reel de um conhecido em que ele, sem saber, retomou os versos de uma de minhas tentativas poéticas, cujo texto aludia ao sentido factual de uma lua traidora, bem no estilo Joelma. 

Acredito que ele descreveu o sentido oposto deste sentido lunar quando afirmou - "afinal, quem se traiu foi você e não a lua". 

Concordo com ele, nós nos traímos todas as vezes que aceitamos o inegociável em nome do amor.


Tenho descoberto que o amor não pode e nem deve ser dor, embora a dor seja um percurso inevitável.

No entanto, na maioria das vezes, vamos permitindo os açoites emocionais - estou sendo generalista - como se eles fossem necessários à manutenção do amor.

É que o amor não quer acreditar que ele está sozinho. E por medo da solidão fecha os olhos do coração.

Finge não notar o descaso e a ausência do sentimento.

Ignora a curva decrescente na história de dois, que na verdade sempre foi um.

E assim, como afirmou meu amigo do reel, a gente se perde de si mesmo.

O tempo passa entre meios e fins que nunca se encontram em harmonia.

E quando você se apercebe foram-se os anos ... 

"Canteiros".

Eu só queria ter do mato
Um gosto de framboesa
Pra correr entre os canteiros
E esconder minha tristeza
E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza
E deixemos de coisa, cuidemos da vida
Pois se não chega a morte
Ou coisa parecida
E nos arrasta moço
Sem ter visto a vida
(Cecilia Meirelles / Raimundo Lopes)


Pequena Nota: 

Em autoanálise, retomo o sublinhado. Quando tudo que recebemos foram açoites emocionais, crescemos acreditando que a manutenção do amor perpassa o castigo. Então amar se resume em suportar.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Análises da Consciência

O campo aparente das lutas não pode estar descolado da vida humana. A realidade é que ninguém pode ser a expressão da luta, se não for a própria revolução. Talvez uma das maiores vicissitudes da luta sejam esta falta de conexão entre a prática e a teoria. Vemos por aí tantas pessoas de bandeira em punho, mas totalmente desconexas da vida humana cotidiana. Obviamente que as bandeiras são essenciais na luta de classes e sem estes movimentos organizados há um maior decréscimo da luta em "si". A questão não são as bandeiras, mas sob que aspectos e motivações elas são erguidas. Fazer parte de um movimento de luta não significa estar integrado (termo freiriano) ou desperto do senso comum (Saviani). Muitas vezes também se constituem em campo de aparências, basta observarmos a política de esquerda hoje no país.

Quando sabemos que algo é real? Esta é uma boa pergunta. Arrisco-me a responder que é quando a prática social não se descola da teoria, mas é uma em "si". Isto não é nenhuma novidade, mas parece-me que temos que ficar lembrando isso a todo momento, porque o básico parece se esvaziar nas interveniências vitais. 

Se queremos revolução, devemos ser coerentes com ela. As ações revolucionárias precisam ser a todo tempo o concreto das relações sociais. Não há como ser coerente a partir de movimentos aleatórios aqui e acolá. A vida acontece na concretude diária e; é neste caminho real, que as revoluções devem acontecer, junto aos demais, com e pelos demais. Quando incorporado um conceito, uma nova prática nasce. 

Questiono - quem somos nós? Revolucionários ou apenas revolucionadores de uma ordem? Daquilo que está ali, qualificando o habitual, o comum e o corriqueiro. Não basta questionar o ordinário das coisas, é preciso mais. Se não queremos reproduzir o habitual, instituído na ordem natural das coisas, por que o fazemos? Que teoria é essa que movimenta a ação para longe dos processos coletivos, mas com aparência de coletividade? 

Sei lá, eu sempre me deparei com as contradições da vida e a falta de coerência entre a fala e a ação e isto sempre foi uma dor pra mim, porque muitas vezes a gente teoriza muito, mas não é coerente ao discurso. Neste caminho ganhei desafetos, desde a minha adolescência até a vida adulta. Recebi a alcunha de ser do contra (risos). Durante muito tempo essa rejeição me fez pensar que eu era mesmo destoante. Sempre me senti um peixe fora d'água, uma "atrevida" subindo a correnteza pra desovar em outros lugares que não o ordinário. 

Perceber que todos seguiam as leis ordinárias da vida me fez achar que eu estava realmente errada, mas mesmo assim eu nunca consegui dizer que a Dâmaris ia perder. No entanto, eu também procurei viver de forma ordinária, aquiescendo ao desejo para ser coerente. Eis a minha própria contradição. E nessa contradição, buscando o coerente me perdi na incoerência, pois se queremos coerência precisamos agir de forma coerente e impedir as incoerências. 

Então quando a gente descobre a incoerência em nós, há uma maior coerência, entende? É sobre buscar ser coerente, ser real, ser concreto, ser coletivo, ser revolucionário, mas não sem antes revolucionar-se. Porque revolucionar-se envolve movimento filosófico sobre si e as coisas em si. Diante dos fatos é necessário mudar a prática, pois a prática é o que sai da consciência individual para a coletiva e da coletiva para a individual. Neste processo dual - toma lá, dá cá - a gente redescobre a vida e assim há a real chance de revolução.

Que possamos ter a capacidade de revolucionar o essencial no ordinário e não apenas o ordinário pelo ordinário. 

Somente algumas confabulações dessa mente que às vezes mente para si, porém, imploro, quem nunca mentiu para si mesmo que atire a primeira pedra!





Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...