quinta-feira, 7 de junho de 2018

REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE OS TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS




Bárbara Lima da Costa Araújo
Dâmaris Alcídia da Costa Melgaço
Emanuel Manhães Almeida
Larissa Duran

Graduandos em Psicologia pela UFMS - Campus Paranaíba - MS
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1. HISTÓRIA DOS ESTADOS ALTERADOS DA CONSCIÊNCIA E A DISSOCIAÇÃO 


É no final do século XIX e início do século XX que o estudo de “fenômenos anômalos” ganha dimensão científica. Alguns fenômenos como atividades paranormais, transe e possessões estiveram ligados à histeria. Zangari e Maraldi (2009) apud Alminhana e Menezes Jr. (2016) informam que esses fenômenos eram práticas do ocultismo e do espiritismo e por isso durante muito tempo foi ignorada pela ciência. 
Segundo Alminhana e Menezes Jr. (2016) essas manifestações anômalas eram mal vistas pela ciência já que estavam no campo da metafísica, porém passaram a fazer parte do teor científico à medida que se foi percebendo semelhanças entre estados mentais de caráter dissociativo e os critérios diagnósticos dos manuais internacionais como o DSM-5 e o CID-10. 
Almeida e Lotufo Neto (2004) apud Alminhana e Menezes Jr. (2016) apontam que alguns médicos e psicólogos do século XIX e XX buscaram compreender essas experiências dividindo-os em três grupos: 1) Freud e Janet: viam essas experiências como fenômeno patológico, 2) James e Jung: entendiam que poderia ser uma manifestação paranormal e não patológica e 3) Myers: compreendia que poderia ser uma personalidade superior desenvolvida de origem mista. Todos acreditavam que o fenômeno era fruto do inconsciente, porém divergiam na explicação metafísica. 
Os autores salientam que não houve consenso e um modelo estabelecido sobre o assunto, podendo ter sido estabelecido como psicopatologia ou simplesmente caído no esquecimento por falta de estudos controlados. 
Janet (1889) apud Alminhana e Menezes Jr. (2016) apresenta o desmembramento da psique como dissociação que significaria um extravio da composição identitária da engrenagem da personalidade, ou seja, uma desconexão de conteúdos mentais que já não estariam mais sob o domínio da consciência. Para o autor há na dissociação um caráter patológico. Seus estudos foram com pacientes histéricos cuja mente para ele, era doente e não conseguia integrar diversos saberes de ordem psicológica. 
Para Janet (1889) apud Alminhana e Menezes Jr. (2016) quanto maior fosse o trauma, maior também seria a fragmentação da personalidade. Para o autor pessoas que tinham um funcionamento saudável não possuiriam esse “sub-consciente”. Acreditava no tratamento que buscasse a origem traumática fazendo uso de recursos como a hipnose, sonhos e escritos. O seu foco estava no restabelecimento da unidade da consciência.


1.1 Dissociações: saudável ou patológica? 


Steele et al. (2009) apud Alminhana e Menezes Jr. (2016) analisam dois conceitos: 1) dissociação e 2) alteração da consciência. Eles apontam que é difícil diferenciar ambos, porque as dissociações de despersonalização e desrealização se encontram nas alterações da consciência. Da mesma maneira as dissociações dão origem aos estados alterados de consciência, ou seja, elas podem estar simultaneamente operando no fenômeno dissociativo. 
Para os autores Dell e O’Neil (2010) apud Alminhana e Menezes Jr. (2016) quando esses fenômenos se tornam frequentes podem levar ao adoecimento por estarem fora de controle. Logo, dissociação e alteração da consciência podem ser entendidas como manifestação saudável ou patológica. 


2. O TRANSTORNO DISSOCIATIVO NA PSIQUIATRIA 


Segundo Faria (2016) os transtornos dissociativos foram historicamente confundidos com a esquizofrenia e não eram muito aceitos durante o século XIX. “Quando não tinha sua existência negada, ele era classificado como pertencente ao subgrupo de transtornos exóticos e extremamente raros.” (Faria, 2016, p.40). 
Este tipo de transtorno estava entre os primeiros estudos psiquiátricos, mas, no início do século XX, esses estudos foram esquecidos, pois Freud e Breuer diziam em seus estudos que essas dissociações eram um tipo de neurose. 
De acordo com Faria (2016, p. 40) apud Kluft, (2000, p. 271). “a divisão da consciência, marcante nos casos clássicos sob forma de ‘dupla consciência’, está presente em grau rudimentar em toda histeria, e que uma tendência para essa dissociação e o surgimento de estados anormais de consciência [...] é o fenômeno básico dessa neurose”. 
É somente nos anos de 1970 e 1980 que estudos nessa área da psiquiatria voltaram a ser produzidos, focando-se então em casos objetivos. Foi somente a partir de uma conscientização da relevância desses estudos que os transtornos dissociativos tornaram-se um pouco mais aceitos (Faria, 2016). 
Em harmonia com Bombana (2011), durante muitos anos os transtornos dissociativos foram confundidos com a histeria e então após a Primeira Guerra Mundial os transtornos foram categorizados como histeria de conversão. E somente com os novos modelos de classificação (DSM e CID) é que ocorreu a separação entre histeria e transtorno dissociativo. 


3. COMO A CIÊNCIA PSIQUIÁTRICA EXPLICA OS TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS 


O Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V) concebe os transtornos dissociativos como uma difusão da realidade na qual o indivíduo pode apresentar múltiplas identidades/personalidades, amnésia e outras nomenclaturas como: especificado e não especificado; ambos amparados por possíveis colapsos involuntários motores e/ou de ordem neurológica. Eles apresentam perturbação de toda a organização psíquica do indivíduo. (DSM V. 2014). 
Entretanto, alguns critérios diagnósticos nos ajudam a analisar de forma mais fidedigna suas implicações no funcionamento psíquico dos indivíduos acometidos pelos transtornos dissociativos. Entre eles, a ruptura da identidade “[...] envolve descontinuidade acentuada no senso de si mesmo e de domínio das próprias ações, acompanhada por alterações relacionadas no afeto, no comportamento, na consciência, na memória, na percepção, na cognição e/ou no funcionamento sensório-motor.” (DSM V. p. 292. 2014). 
Ocorrem de lapsos de memórias de informações pessoais, que não são comuns entre indivíduos não acometidos pelo transtorno dissociativo de identidade; esquecimento de eventos e fenômenos importantes (traumáticos ou estressantes) entre infância-adolescência. 
O sofrimento é um fenômeno recorrente nos transtornos dissociativos e afeta todas as esferas vivenciais do indivíduo, como: profissão, família, convívio social e relações interpessoais. Tais perturbações não podem ser veiculadas a crenças de ordem religiosas e/ou culturais, a crianças que fantasiam amigos imaginários, condições neurológicas (médicas) e nem a indivíduos sob efeito de alucinógenos. (DSM-V. 2014). 
Segundo o DSM V, algumas experiências tendem a persistir durante as ocorrências do transtorno de despersonalização/desrealização, que podem ser caracterizadas como: 


Despersonalização: Experiências de irrealidade, distanciamento ou de ser um observador externo dos próprios pensamentos, sentimentos, sensações, corpo ou ações (p. ex., alterações da percepção, senso distorcido do tempo, sensação de irrealidade ou senso de si mesmo irreal ou ausente, anestesia emocional e/ou física). Desrealização: Experiências de irrealidade ou distanciamento em relação ao ambiente ao redor (p. ex., indivíduos ou objetos são vivenciados como irreais, oníricos, nebulosos, inertes ou visualmente distorcidos). Durante as experiências de despersonalização ou desrealização, o teste de realidade permanece intacto. (DSM V. p. 302. 2014). 






4. REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE OS TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS 


Para Arfouilloux (1976) os doentes deveriam interessar aos médicos psiquiatras muito mais do que os “processos mórbidos”, ou seja, o foco deveria estar no indivíduo e não na doença, porém o que o autor observa é que a medicina psiquiátrica muitas vezes encontra-se aprisionada, pois acaba por ser uma ampliação abusiva condicionada aos termos de diagnóstico e tratamento. 
O DSM de certa forma serve para comprovar essa premissa já que corrobora com a afirmação de Arfouilloux (1976) que define a psicossomática como uma “linguiça interminável”, ou seja, são tantos termos de diagnóstico que acaba por ser um interminável compendio de anormalidades catalogadas. 
Pudemos verificar que há uma extensão abusiva da psiquiatria, onde há divisões e subdivisões das patologias trazidas nesse trabalho, ou seja, existe uma exacerbação de diagnósticos que a psiquiatria utiliza para rotular a sociedade. E mesmo com o diagnóstico, o DSM V não garante a veracidade desses como afirma Arfouilloux (1976) não há nitidez na terapêutica psiquiátrica, deixando assim, dúvidas quando ao tipo de diagnóstico que consequentemente não traz possibilidades de tratamento. 
A crítica do autor leva-nos a pensar se realmente a psiquiatria e a psicopatologia ajudam a melhorar a qualidade de vida dos sujeitos. Arfouilloux (1976, p.11) afirma que a “Psiquiatria não tem uma qualidade particular que lhe permita resolver os problemas da cidade”. Essa afirmação remete a outra questão exposta pelo autor que é a existência de uma intervenção terapêutica desinteressada em combater e erradicar os sintomas e interessada na mudança de uma situação ruim para uma melhor. 
Verificamos que o DSM V apresenta os sintomas como aqueles que “causam sofrimento clinicamente significativo e prejuízo no funcionamento social” (DSM V, 2014, p.292). Assim, toda forma de perturbação que esteja relacionada a uma prática religiosa ou cultura, não pode ser diagnosticada como transtorno. Entretanto o próprio manual traz um exemplo de transtorno dissociativo de identidade que em um “contexto religioso” seria absolutamente normal. “Por exemplo, o comportamento de uma pessoa pode fazer parecer que sua identidade foi substituída pelo “fantasma” de uma menina que cometeu suicídio na mesma comunidade anos atrás, falando e agindo como se ela ainda estivesse viva.” (DSM V, 2014, p.293). Sendo assim, sua definição acaba sendo contraditória e desconexa. 
Entendemos nesse estudo que há uma linha tênue entre o que o DSM V propõe e a prática social, porque ao entendermos as raízes do Transtorno Dissociativo na história percebemos que essa esteve muito próxima das religiosidades e culturas e que durante muito tempo foi mal vista. Essas manifestações que alteravam a consciência estavam relacionadas ao inconsciente segundo a maioria dos teóricos que estudaram o fenômeno. 
A distinção entre uma dissociação saudável e patológica veio somente depois e como observamos o DSM V atualmente separa as questões. No entanto, ao citarmos o exemplo acima verificamos que o mesmo é um fenômeno que se apresenta corriqueiramente em algumas religiosidades. A questão que levantamos é: Até que ponto um psicoterapeuta e psiquiatra distinguem esses fenômenos? Haveria risco de “patologizar” por desconhecer, já que alguns “sintomas” ou comportamentos são semelhantes aos patológicos? 
Arfouilloux (1976) vai falar que a terapêutica psiquiátrica não é transparente, clara e objetiva nas questões de diagnósticos e tratamento, e embora seja a favor do tratamento, não é qualquer tratamento, já que para ele existe uso indiscriminado de medicamentos. O autor afirma: “Há tratamento e tratamento” no âmbito dos tratamentos psicoquímicos. Ao praticar o coma insulínico estar-se-ia resgatando a ideia errada de que a doença é fruto do mal e que por isso dever-se-ia reduzi-lo (Arfouilloux, 1976, p. 11). 
Entendemos, assim como o autor, que quando ideias e representações são perpetuadas há grande prejuízo para o indivíduo. Há mais prejuízo nos “rótulos diagnosticados” do que na vivência de alguns “transtornos” que podem ser terapeuticamente administrados numa perspectiva de melhora na qualidade de vida. Nas linhas do Manual o foco se encontra apenas nos processos mórbidos, sem levar os profissionais que o utilizam a desenvolverem um senso crítico, visto que, o indivíduo que adoece está dentro de um contexto social, cultural, familiar e socioeconômico que pode acentuar ou amenizar a patologia.

REFERÊNCIAS

American Psychiatric Association (2014). DSM - V - TR: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (5ª Ed. Revista). Porto Alegre: ARTMED. 948p.

ALMINHANA, L. O., MENEZES JR., A. Dossiê: Religião e Saúde – Artigo: Experiências Religiosas/Espirituais: dissociação saudável ou patológica? Horizonte PUC-Minas, Belo Horizonte, v. 14, n. 41, p. 122-143, Jan./Mar. 2016.

ARFOUILLOUX, Jean-Claude (et al). Antipsiquiatria: senso ou contra-senso?. 2 ed., Rio de Janeiro: Zahar editores. 1976. 167 p.

BOMBANA, J. A. Psiquiatria: Transtornos Dissociativos e Conversivos. 2011. Disponível em: < http://saudeakira.blogspot.com/2011/02/psiquiatria-transtornos-dissociativos-e.html>. Acesso em jun 2018.

FARIA, M. A.. Transtorno dissociativo de identidade e esquizofrenia: uma investigação diagnóstica. 2016. 286 f. Tese (Doutorado em Ciências Aplicadas em Saúde) – UNB - Universidade de Brasília. Distrito Federal, Brasília.





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