sábado, 28 de abril de 2018

“História da Loucura": do asilo à primeira Medicina Social, aspectos históricos que possibilitaram a consolidação da hegemonia psiquiátrica.




Para entendermos como a hegemonia psiquiátrica se consolidou, precisamos entender primeiro quais foram os processos históricos que possibilitaram essa consolidação. Afinal, o tempo presente nunca está isento de seu contexto político, econômico e sociocultural.

A história remonta segundo Foucault (1972) o final do Séc. XV. O que antecedera a esse período fora a existência das pestes, principalmente a lepra que teve o seu apogeu no Séc. XIII e que ao final do Séc. XV estava em declínio.

Esse período deixou como legado ou consequência muitos leprosários abandonados e valores e imagens negativas relacionadas à personagem leproso. A lepra por ser contagiosa levou muitos aos asilos não importando classe social ou estirpe. Esse mal se aplica, segundo Foucault (1972), nesse período; como uma ação divina que gerou exclusão e perpetuou a ideia da culpa como castigo. Ao mesmo tempo marca a benignidade Divina, desde que o doente se resignasse, aceitando de bom grado o sofrimento. Surge já uma idealização que na atualidade se tornaria o vértice da exclusão, ou seja, pobreza e miséria perpassam a exclusão.

Uma nova estação se estabelece fruto da antiga, como em todo contexto histórico-social. As doenças venéreas substituem a lepra, mas agora a ira divina se alia as ideias renascentistas. Para entender isso, é preciso retomar o campo ideológico estatal. Marcado pela forte influencia eclesiástica a sociedade mantinha esses valores em suas relações sociais. Os Renascentistas embora estivessem no campo da racionalidade e do humanismo, não negavam a influencia dos ideais cristãos em sua Arte e principalmente nela.

Na Renascença, segundo Souza (2005) embora Foucault tenha afirmado, ao citar Erasmo, que esse tivera um papel social de cunho moral em suas obras remetendo seu pensamento a evocação de um livramento de práticas associadas à loucura fazendo uso do fingimento num pseudoelogio, ele Souza (2005), em especial não entenderia assim, visto que, quando Erasmo se refere à loucura, na verdade está fazendo alusão à natureza humana que apela às utopias para esquecer o que o mantém preso à realidade, ou seja, “a razão”. Souza (2005, p. 24) afirma: “Não se trata do limite da razão e, sim, de seu esquecimento. Não é, pois, o avesso da razão, ao contrário do que Foucault sustenta. Ela é filha da autenticidade, da natureza simples. Não é, como já posto, pura crítica.”.

Portanto segundo o autor a crítica de Erasmo está na sutileza e no abandono do natural, porque quando o humano abandona a razão segue as lógicas do natural e que aos olhos da razão são atos loucos. Para Souza (2005) o texto de Erasmo não expõe a loucura como uma doença, mas como o fruto de um esquecimento da razão.

Toda essa reflexão para entendermos que nas revoluções históricas sempre há presença de fragmentos e mesmo os renascentistas já não mais tendo nas suas ideias o teocentrismo ainda possuíam esse vértice fortemente enraizado em suas ideologias antropocêntricas. A alusão entendida como moralista, na verdade perpassava uma pureza singela naturalista do Cristo “homem”.

Essas ideias renascentistas, segundo Foucault (1972), de certa forma atribuíram ao que viria depois como vivencias sociais e históricas, ou seja, a criação dos asilos, o seu caráter moral. Souza (2005) também expõe a influencia desse movimento ao que ocorreria mais tarde na Alemanha e Suíça: A Reforma Protestante. “Os valores éticos e estéticos humanistas-renascentistas haviam possibilitado uma crítica rigorosa dos textos sagrados, sementes que iriam germinar poderosamente nos espíritos de homens como Lutero e Calvino.” (SOUZA, 2005, p. 22).

A Reforma Protestante, segundo Foucault (1972) teve grande influencia na história da loucura, visto que ao abrir mão de uma junção estatal religiosa responsável e ligada a caridade contribui para que a sociedade se organizasse de forma que resolvesse as questões sociais. O que antes era de responsabilidade da igreja agora pertencia ao Estado. Importante pensarmos que mesmo Lutero não tendo mais como premissa a “salvação pelas obras”, muito das concepções culturais religiosas pertenciam ao imaginário popular, ou seja, as ações de cunho moral estavam relacionadas às interpretações teológicas e também renascentistas.

A substituição dos leprosários por asilos ocorre desse distanciamento igreja estado, embora, segundo Foucault (1972), a caridade ainda movia o coração eclesiástico, ou seja, a fé é de graça e não depende de obras, mas as obras são a consequência de um coração devotado. Daí a filantropia, ainda como dever cristão.

Outro fato importante, segundo Huberman (2008, p. 97) é que “Um quarto da população de Paris na década de 1630 era constituído de mendigos [...] Qual a explicação dessa miséria generalizada entre as massas, num período de grande prosperidade para uns poucos? A guerra, como sempre, foi uma das causas”.

Essa miséria impulsionou, segundo Foucault (1972), a fundação dos asilos que acolheram todos os miseráveis, rebeldes, desordeiros, doentes, loucos, etc. Para limpar a cidade que se agigantava em população esses lugares acorrentaram a muitos indistintamente.

É no início do século XVIII que Pinel surge com suas ideias libertárias, porém o que, segundo Foucault (1972), se perpetua na verdade são os ideais dos “quacres” (grupos religiosos) e de ideias moralistas. Os que se adequavam eram bem tratados e considerados parte de uma grande família. 

Pinel surge para libertar os homens dos grilhões do aprisionamento e devolver os assim considerados sãos; ao seu lugar social. Tratando apenas da doença, no caso, aqui já entendida como tal. Essa é a tradução que Foucault (1972) faz desse período.

Castel (1978) afirma que é depois, em Esquirol, que a medicina psiquiátrica surge, ainda não com esse nome, mas que essa construiria assim no futuro a hegemonia médica. A princípio, de acordo com Castel (1978), a medicina mental nasce como uma filha marginal, visto que não abandona as ideias metafísicas que se chocavam com a medicina da época que se baseava no empirismo e na dissecação de corpos, ou seja, as causas deveriam ser investigadas no campo biológico.

Castel (1978) afirma que embora houvesse essas contradições essa medicina foi tolerada como uma necessidade social e aceita como forma de tratar a doença e não o doente. O próprio Pinel mesmo com as descobertas de Georget sobre uma possível localização da loucura no cérebro por ocasião de lesão cerebral não reconheceu essa hipótese visto que seu tratamento apresentava resultados de melhoras significativas. 

Pinel, de acordo com Castel (1978) não conseguia admitir que a loucura fosse considerada um mal incurável cuja razão fosse meramente biológica. Para ele as necropsias da época nada provavam. Pinel a revelia de Georget que entendia o delírio como um simples sintoma de natureza secundária preferiu apostar em sua teoria de caráter puramente nervoso.

Foucault (1972) informa que a princípio as ideias alienistas eram humanistas e os tratamentos eram realizados em retiros sob a ênfase da “Grande Família Adâmica”, portanto é só mais tarde que os seguidores de Pinel e Esquirol mudaram a forma alienista de tratamento e acabaram por aprisionar novamente e brutalmente as pessoas consideradas loucas, já sob a égide da biomedicina.

Segundo Passos (2017, p. 1):

O tratamento nos manicômios, defendido por Pinel, baseia-se principalmente na reeducação dos alienados, no respeito às normas e no desencorajamento das condutas inconvenientes. Para Pinel, a função disciplinadora do médico e do manicômio deve ser exercida com firmeza, porém com gentileza. Isso denota o caráter essencialmente moral com o qual a loucura passa a ser revestida. No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral de Pinel vai se modificando e esvazia-se das ideias originais do método. Permanecem as ideias corretivas do comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional. No século XIX, o tratamento ao doente mental incluía medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias. (Passos, 2017, p. 1)



Enfim, o que temos atualmente é o resultado de muitas ideologias estereotipadas em relação à doença mental. Ideias essas que vem de longa data como pudemos perceber. A razão de Descartes trouxe uma separação entre o ato de refletir a ação e a ação sem a razão. Isso decretou o nascimento da loucura enquanto termo e ao longo dos anos biologizou seus sintomas tratando a doença ao invés de tratar o doente. Essa posição estigmatizou e colocou o humano em condições desumanas. 

Seixas (1973) em sua canção “Metamorfose Ambulante” chama atenção a essa razão impensada, mas ao mesmo tempo repensada. Retoma as ideias renascentistas e as toma emprestadas. Três frases nos chamam a atenção: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes. Eu vou desdizer aquilo tudo que eu lhe disse antes.”

É uma chamada a razão absurdamente louca da não estagnação. Da reformulação e da ideia da verdade relativa que opera nos meios sociais e que foge da mesmice e que embora contraditória pode ter esse fluxo metamórfico de ir e vir, ou seja, de pensar e repensar a opinião.

Se bem que Seixas (1973) está mais para o termo filosófico relativista, onde a verdade única não existe, sendo ela perceptível ao campo individual, esses mais ligados as ideias de Weber, Nietzsche e Foucault. Quanto ao Individualismo, esse sim Renascentista, já que esse coloca o homem no centro do universo dotando-o das capacidades de transformar o mundo por ser dotado de "inteligencia". "O homem humanista é individual e está pronto para fazer suas escolhas no mundo (livre-arbítrio). Torna-se assim, um ser humano crítico" (TODA MATÉRIA, 2018).


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. PASSOS, Eduardo. Política Nacional de Humanização do SUS
HumanizaSUS. Secretaria Municipal de Saúde de Barbacena/MG. A reforma psiquiátrica brasileira e a política de saúde mental. Disponível em: 
http://www.ccs.saude.gov.br/VPC/reforma.html, Acesso em 07 nov. 2017.

CASTEL, Robert. A primeira Medicina Social (in) A ordem psiquiátrica: A idade de ouro do Alienismo. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978, Cap. 03, p. 70-92.

FOUCAULT, Michel. Nascimento do Asilo. (In) A História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. Cap. 13, p. 505-555.

HUBERMAN, Leo. A história da riqueza do homem. 21. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

SEIXAS, Raul. Metamorfose Ambulante. 1973. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7VE6PNwmr9g >. Acesso em 27 abr. 2018.


SOUZA, José Fernando Rodrigues de. A loucura na renascença: análise comparativa das obras de Erasmo e Bruegel, na perspectiva de Foucault. PERSPECTIVAS, Campos dos Goytacazes, v.4, n.7, p.19-29, janeiro/julho 2005. Disponível em: <https://www.seer.perspectivasonline.com.br/index. php/revista_antiga/article/viewFile/216/153.> Acesso em: 26 abr. 2018.

Humanismo Renascentista. Disponível em:<https://www.todamateria.com.br/humanismo-renascentista/>. Acesso em: 01 mai. 2018.

Relativismo. Disponível em:<https://pt.wikipedia.org/wiki/Relativismo>. Acesso em: 01 mai. 2018.


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