sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Sobre guerras ...

Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/03/cultura/1570095492_593504.html


Por Dâmaris A C Melgaço

Uma possibilidade para refazer o caminho das relações humanas é a aproximação dos homens à sua própria indisciplina que é reificada na ação autoritária. Gosto de pensar sobre isso e o quanto isso é profundo. Pensar a humanidade a partir da categoria disciplina em dialética à indisciplina. Os homens estabelecem as regras e a priori determinam a ação, catalogando-a em certa ou errada. Como consequência social àqueles que desobedecem o esperado da ação são categorizados como indisciplinados ou a rigor como rebeldes.

Refletir os homens a partir de sua dualidade me coloca na dimensão da suspensão. Analisando a ação do rebelde, observa-se a necessidade de fazer valer a sua vontade analítica de determinada realidade incômoda. Da mesma forma, a ação autoritária carrega esta essência e; portanto, nada mais é que um ato de rebelião, pois também compreende uma inconformidade. Ambas ações estão imbricadas nesta necessidade birrenta de fazer valer uma vontade.

Em se tratando da humanidade, cada indivíduo é essa contradição inerente a ação. A humanidade revive a rebeldia infantil mal resolvida no ato da birra, cujo momento prescinde a frustração. Seja feita a minha vontade, assim na terra, como no céu e/ou seja feita a tua vontade assim na terra como no céu. O homem vivencia a negação da vontade e experimenta a frustração. Para tanto, se aprisiona na ação rebelde e autoritária e/ou autoritária e rebelde.

É paradoxal que a birra permaneça e reapareça nas ações humanas de tempos em tempos e; ela vêm forte, na forma das revoluções, guerras, violências e holocaustos. Cada qual, imbuídos pela ânsia da vitória se impõem sob a máxima justificativa da violência homicida. Nesta vontade mal resolvida, envolvem os deuses, os mitos, as crenças morais, como a própria justiça e toda sorte de seres alados e heroicos, etc.  

Cada qual apegado a um deus abstrato, seja ele uma força moral, ética ou religiosa, sente a necessidade de ter os seus gurus, pensadores, homens e mulheres da guerrilha, etc., formando assim um campo vasto de pretensos salvadores da pátria. Não importa por que fins, mas afinal, disse Maquiavel: eles justificam os meios! E neste baile de loucos egoicos, auto intitulados avessos aos misticismos e/ou não, constroem para si a falsa ilusão de serem deuses e; pasmem - os mais justos. 

Nesta dança das cadeiras dos justos juízes, os banhos de sangue se justificam. Ao longo da história vimos homens e mulheres soterrados em poços, em campos de concentração, mortos por discordarem de seus próprios camaradas, tudo em nome de uma pseudo justiça que nunca chegou. Seus deuses mataram a terra, dizimaram povos, destruíram a natureza. Em nome da vontade, disfarçada de bondade, construíram castelos de ossos e de vidas humanas.

Religiosamente, clamam as almas sequiosas por justiça, mas qual? Onde ela se esconde, que eu não a vejo? Às vezes; e somente as vezes, contemplo lampejos de justiça e cuido para que a justiça que habita em mim não seja morta, pois eu também sou rebeldia e autoritarismo. Enquanto a humanidade não compreender a dimensão da paz, que implica na compreensão de sua própria rebeldia e indisciplina, não poderá vivê-la e nem dela usufruir. A guerra é possivelmente o sintoma na ação e reação humana de uma birra civilizatória mal resolvida.

Portanto, entendo eu que ela é uma ação burra e ignorante, fruto dessa volição coletiva infinita propriamente humana e inaugura os ciclos infindáveis das disputas que, inevitavelmente -, possuem um destino final: a destruição do planeta Terra. O juízo final, coleguinhas, é a própria humanidade!

domingo, 2 de julho de 2023

Sinto muito ...

A roseira de Monet [1910]

Eu sinto muito se não posso acreditar na violência como um caminho para a paz.

Eu sinto muito se não posso acreditar nos jogos políticos como um caminho para a conciliação. 

Eu sinto muito se não posso olhar o mundo com as janelas do justificável. 

Eu sinto muito se minhas lentes são de aumento, se eu vejo por cima dos muros.

Eu sinto muito se não me amparo nas ideologias, se não confio nelas.

Eu sinto muito por duvidar da humanidade. Por não acreditar em suas vãs promessas.

Eu sinto muito por ser inquieta e revolta, por contestar, por emitir provocações que rompem a ordem das coisas.

Eu sinto muito por ser quem sou. Sinto muito, muito ... Por não acreditar nas mentiras do meu coração. 

Eu sinto muito por me esgotar diante das injustiças,  por morrer a cada segundo, quando em contato com os aplausos desta sociedade perdida.

Eu sinto muito por não poder ser liberdade, quando tudo é prisão. 

Sinto por mim, por nós, todas as vezes que canto, que choro, que guerreio com a inquietude diante dos fatos.

Sinto muito pela hipocrisia habitante dos seres, que preferem viver ausentes de si e presentes aqui e agora, à luz das propagandas enganosas.

Eu sinto muito por nós, que convivemos com as sombras que nos habitam e que em nós foram introjetadas à força. 

Eu sinto muito e me lastimo por esta sorte de habitar entre os homens. 

Olhando a carcaça social,  sem nada poder fazer. Eu sinto muito!


terça-feira, 2 de maio de 2023

A arte de ser conhecido, o epicentro

https://www.greenpeace.org/brasil/blog/todos-juntos-em-defesa-do-meio-ambiente/


Dizem que as forças determinam as condições, eu digo que as condições determinam as forças. Se somos intimamente, participantes dos processos sociais, então; somos os responsáveis pela constituição das forças que controlam os espaços sociais, porém as condições materiais pré-dadas são as alavancas para o desenvolvimento destas forças.

Condições de base material permitem que os processos evolutivos dos homens em relação ambiental ditem o caminho das forças que se instituem dentro da sociedade e que, posteriormente, controlarão a forma como os homens convivem.  Não podemos afirmar que as forças determinam as condições, pelo simples fato de que as forças sociais inexistem sem a presença de um ser social. 

No entanto, as relações naturais, em nível biológico, acontecem obedecendo um sistema caudal. É assim no mundo cíclico. Os seres naturais coexistem em um ambiente natural, obedecendo as condições ambientais, consideradas forças naturais. Isto parece paradoxal ao dito anteriormente e poderíamos facilmente perguntar: - O que veio primeiro - o ovo ou a galinha?

Chegamos no encontro das oposições, que pedem uma intersecção.  Primeiramente, é necessário distinguir o caminho das forças, pois existem duas - uma natural e outra construída. A primeira é condição para a sobrevivência e a segunda é oriunda da primeira e possui desdobramentos somente possíveis na presença do ser social, um humano capaz de pensar as condições primeiras e reorganizar a segunda. 

O homem como ser natural relaciona-se com a natureza e dela retira os meios para a sua sobrevivência, a esta ação, chamamos imediata. Essa sobrevivência depende de diversas condições, desde as climáticas, geográficas, físicas, etc. No entanto, estas condições ganham uma nova configuração quando os homens juntam-se para pensar formas coletivas de burlar as condições naturais, criando resoluções e registrando as mesmas. Forças sociais vão ganhando condições novas a medida em que os homens vão recriando maneiras de viver e conviver. 

É interessante pensarmos como a humanidade é capaz de dominar a natureza e transformá-la a seu bel prazer. Cada vez mais os homens apropriam-se das condições naturais e transformam-na. Gosto da analogia metafórica em que o homem através de seu poder transformador, recria o mundo. Ao transformar a natureza ele se expande na ação-reação. Criou a machadinha e estendeu suas mãos, criou a roda e extensionou seus pés, descobriu o fogo e extensionou a pele, inventou o computador e ampliou o cérebro. Característica própria do humano é trabalhar a seu favor, mas - estranguladamente -, em seu oposto. Notoriamente, essa busca para a acomodação dos sentidos, impele os homens - cada vez mais -, a subjugar o cosmos em torno de si mesmo. 

O instinto humano transmuta-se para além da natureza, implicando no desequilíbrio cíclico. Visivelmente, escancara-se a matriz básica dos desequilíbrios humanos: tudo que o homem cria é lixo, ou quase tudo. Ao transformar a natureza criando suas extensões o ser humano produz lixo. Eu sei, muitos dirão: - Você está sendo radical. Sinto dizer que a radicalidade é o princípio ativo da crítica, então eu sou radical.

Em "Discurso de Primavera e algumas sombras", Carlos Drummond de Andrade, em seu poema - Antibucólica 1972 -, questiona: " - Até a clorofila?..." (2014, p. 113). Este autor inicia seus versos interrogando a antítese da saúde e da doença, que prescinde às relações do homem com a natureza. Toda a secção recebe o título de ASSIM VAI (?) O MUNDO. O ponto de interrogação é essa brecha ausente entre a vida e a passagem da vida no mundo, mas que subentende a culpa humana, ou talvez a sua não isenção nesta passagem.

Com que prazer me uno aos seus versos:

[...] Diz-nos um doutor
de Illinois que, em matéria de monóxido
de carbono, a graminha é uma parada.

Aparemo-la então, que em disparada
a relva, no jardim ou em depósito
no quarto de dormir (sei lá) é o mesmo que automóvel queimando gasolina.

O poema é tão dialético e aponta para o epicentro da bucólica vida dos passantes, no entanto é antítese. Ressalta a incerteza dos homens na relação natural, na imediaticidade da relação, que bucolicamente retoma a natureza como seu habitat saudável. No entanto, de maneira catártica, às vistas de uma notícia, o poeta desvela a ruptura entre as forças naturais e as culturais, para em seguida afirmar:

— A sina, pois, do mundo, é sem remédio?
Se da fumaça escapo, e rodo a esmo
pelos parques cisneiros da cidade,
trato de preparar meu epicédio,
pois o verde de amigo fez-se inimigo
e me leva, com toda a falsidade,
para o último hotel, vulgo jazigo.

Aqui o autor encena a culpa da natureza e; de forma irônica, encaminha seus versos à natureza, impondo-lhe cinicamente a culpa de suas mazelas. Há a inversão proposital das culpas. No entanto, deixa claro o autor, que o veneno humano subjuga a todos, transformando as condições.

Não são usinas gigantescas,
bombas, resíduos mil, restos largados
à flor das águas em sinistras bolhas
que corrompem a vida que vivemos.
É a grama, o capim, leve, ondulante,
forma que o vento curva a seu talante,
e que, ao perecer, nos envenena
o ar, desprendendo o tóxico tremendo.
É grama, é folha, é rama, ó Tom, é planta,
são as flores de março… mas que pena.

O autor está em luto, ao reconhecer o cinismo sepulcral dos homens. Silêncio entorpecedor das vicissitudes humanas, camufladas na culpa dos vegetais. Retomar as relações do homem com a natureza, requer reconhecer a responsabilidade humana em sua transformação. Drummond (2014, p. 114) continua: 

A poluição, sabe-se agora, é velha
mais do que o homem. E não será o homem
freguês da poluição, em vez de autor?
Por pessimista, rogo, não me tomem,
nem quero ser tachado de farsista:
se tudo é poluição, até na flor,
no vergel, no quintal, seja o que for,
tratemos com a máxima presteza
de redigir político tratado:
teremos cativado a natureza,
convindo em que convivam lado a lado
o homem e a poluição fazendo amor.

Este final conspira para a máxima individualista, cuja letal sorte é a morte. Retomamos aqui a questão inicial, expondo as determinações sociais da vida humana reverberadas em sua primeira condição: a natural, o que retira da natureza a culpa e nos devolve a sentença. Ao recriar a natureza o homem é o alquimista voluntário, o manipulador das poções, o grande místico da natureza. Ao recriar a si mesmo, esse mago destrói o espaço natural do seu habitat. A quantidade de lixo que criamos e jogamos na natureza, contaminando-a com nossos resíduos é o grande dano, cuja máxima garantirá a morte de toda a condição primeira. 

Um relatório da Comissão Lancet sobre Poluição e Saúde publicado na revista científica The Lancet Planetary Health informa que a poluição do ar ambiente foi responsável por 4,5 milhões de mortes em 2019, ante 4,2 milhões em 2015 e 2,9 milhões em 2000. As mortes por poluentes químicos perigosos aumentaram de 0,9 milhão em 2000, para 1,7 milhão em 2015, para 1,8 milhão em 2019, com 900 mil mortes atribuíveis à poluição por chumbo em 2019. No geral, as mortes por poluição moderna aumentaram 66% nas últimas duas décadas, de uma estimativa de 3,8 milhões de vítimas em 2000 para 6,3 milhões em 2019 (¹). 

Lembremo-nos que nossa alquimia, subordinada às ordens econômicas, determinam o nosso fim. Essa postura individualista que cinde a condição natural, é a premissa da decadência. Quanto mais determinados em ampliar nossos corpos, menos humanos nós somos. Estão aí a robótica e as inteligências artificiais. Esse assunto daria pano para a manga, mas por agora, ficam estas reflexões. 

Termino, retomando Drummond em seus versos do poema "Mal do século": 

Como se não bastasse o mundo de tristezas
entre céu e terra,
principalmente em terra,
vem o agrônomo, descobre
o vírus da tristeza nas laranjeiras. (p. 112).


Referências:

(¹) Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/com-9-milhoes-de-mortes-em-2019-mundo-avanca-pouco-contra-poluicao-diz-estudo/#:~:text=A%20polui%C3%A7%C3%A3o%20do%20ar%20ambiente%20foi%20respons%C3%A1vel%20por%204%2C5,polui%C3%A7%C3%A3o%20por%20chumbo%20em%202019.

ANDRADE, C. D. de. Discurso de Primavera e algumas sombras. São Paulo. Cia das Letras, 2014.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

O que é construído pelo humano, no humano permanece

 
Santiago Bou Grasso, Animação El Empleo, Opusbou, 2008

Dâmaris Alcidia da Costa Melgaço 

Refletindo sobre o temporal na história humana, às vistas do momento e às suas produções no campo vasto das ciências, cuja reflexibilidade é a totalidade de um momento cultural, reificado humano; coloco-me a dimensionar a hermenêutica aplicada aqui e agora neste tempo, que é também outro, pois o que é do humano, no humano permanece. Como diria Benjamim: o velho que é sempre um novo, ou o novo que é sempre igual.

Ao olharmos para a história humana em um determinado tempo, pelos homens experienciada neste mesmo tempo e sabendo que a produção científica obedece a este tempo cultural e torna essa produção abstrata em materialidade humana, podemos interpretar um novo tempo, bem como a natureza humana e suas relações no ambiente e a forma como tendem a se repetir. É princípio exegético.

O capitalismo,  as ações humanas, todas as estruturas criadas pelos homens são produção de homens e; portanto,  pelos próprios homens mutáveis,  se assim o quiserem.  

Não são entidades pré-existentes. O próprio capitalismo é um fenômeno social. Marx investigou esse fenômeno em seu radical. 

O capitalismo é cultural e possui seus estratagemas e conceitos ideológicos que o definem. Nós somos essenciais para que a mudança aconteça, pois se nós fomos capazes de criar este sistema operante, nós também somos capazes de recriar - pela revolução - novas formas de viver em sociedade. Formas mais justas e igualitárias, que rompam o ciclo do novo sempre igual, ou seja; do novo que sempre aparece travestido do velho e vice e versa.

Mas - aqui entre nós - tenho refletido nas contrariedades existentes em nós mesmos. Nas coisas mais simples da vida. 

Hoje ouvi uma pergunta e uma afirmação. "Tem capitalista aqui? Creio que não". Obviamente que nao havia na plateia nenhum grande detentor do capital, mas a grosso modo eu diria, que têm, simbolicamente.  Nós somos capitalistas, vivemos no capitalismo, consumimos o capitalismo. Essa sociedade é a sociedade do capital. Talvez o que tenhamos é a consciência do que seja o capitalismo e de todos os seus efeitos nocivos, mas na práxis sempre há quem arrume os nossos lençóis.  Esses seres que andam pelos corredores sempre com a vassoura na mão, que entram em nossos quartos, limpam a nossa sujeira, servem as nossas mesas, limpam a nossa privada e nos observam de longe, a banhar-mo-nos nas piscinas, aproveitando o dia. E não me tomem por pretensiosa, porque eu me identifico como a um deles. 

Pois é,  caro leitor, alguma vez você já parou para olhar nos olhos deles? Eu já.  Eu vejo com que admiração nos olham. Nao sabem eles que eu os admiro ainda mais. 

Vivemos um verdadeiro avalanche de vaidades.

Pois é,  assim sou eu. Saio daqui pequena como cheguei e assim sempre serei. Vivo à sombra de um pequeno deleite: a minha nulidade e todas as outras. E a vida continua a dar passagem.







segunda-feira, 10 de abril de 2023

Tendas do caos

Fonte: Estado de Minas


Desde os últimos acontecimentos, ocorridos no dia 07 de abril de 2023, em Blumenau, ondas de terror tem-se espalhado nos campos escolares. As mídias e a cotidianidade dando eco às velhas vozes terroristas do caos iminente. Acreditem, embora haja uma corrente massiva para a não divulgação do caos, ela se materializa no meio das massas populares.

Escolas têm-se movimentado para trazer maior segurança aos seus alunos. Ontem mesmo, ouvi relatos de que as providências se intensificam na abertura e fechamento de portões, na recepção de encomendas e de tudo àquilo que fuja a rotina escolar. As salas e os burburinhos dão conta de historietas de massacre pré-datados para abril. Dia desses, foi noticiado que nos Estados Unidos da América, criaram sistemas de proteção, cujo esquema constrói uma sala a prova de balas dentro da sala de aula, vistas ao histórico considerável de invasões e assassinatos dentro das escolas norte americanas.

São vários os fatores que envolvem esta premissa oriunda da evolução de efeito destrutivo capitalista, entre eles a indústria das armas, financiamento às guerras e apologia ao armamentismo populacional. Outros fatores, referem-se às tecnologias e ao avanço destas ferramentas na colonização das mentes humanas. Cada vez mais os algoritmos dominam a vida humana e implantam seus chips consumistas e ideológicos na ação-reação dos humanos, cujo teor é humanoide.

O que pretendo dissertar não são exatamente estes fatores, embora conversem entre si, mas o fato ideológico, que aparelha duas instituições: a escolar e a prisional.  Temos um retrocesso ou um avanço sobre a estrutura escolar, que mais parece um sistema prisional? A escola brasileira - simbolicamente - vivenciou em sua constituição histórica vias disciplinadoras e de controle do corpo, pode-se dizer pareado às práticas já discutidas por Foucault (1975) em seu livro "Vigiar e Punir". 

A questão problema, na atualidade, é a seguinte: A contraposição entre a segurança e a insegurança gerada por esta forma - acima explicitada -, de viver em sociedade tornará a escola numa prisão literal, cuja entrada por seus muros se dará sob extrema vigilância, controle de força humana armada e revistas escolares, retificando processos autoritários e disciplinadores?  

No Brasil, o movimento de institucionalização escolar ocorreu ao longo do Império Brasileiro e primeira República do Brasil - séc. XIX, com observância às especificidades e modalidades educativas, período concomitante o qual desenvolvia-se, na Inglaterra, a teoria de Francis Galton (1869), a de que "a capacidade humana decorria da hereditariedade mais do que da própria educação." Nas primeiras décadas do século XX, influenciada pela ideologia eugenista/higienista,  nas cidades do Brasil - em especial na cidade de São Paulo -, além das áreas médicas e sociais, a educação brasileira também sofreu a imposição ideológica dessa teoria, que  compreendia a população brasileira como degenerada -  por conta da sua miscigenação - e que; portanto, necessitava de uma purificação. 

Resumidamente, a eugenia aplicada no Brasil teve como objetivo selecionar os homens através do aumento gradual da saúde mental e física e da subtração da fraqueza, da doença e da degeneração. Quer-se-ia homens fortes, belos e sadios. A educação, portanto, foi elencada como uma das formas de propagar estes ideais. Ela tinha a função específica de estimulação de habilidades dos eugenizados. No entanto, acreditava-se que os fatores hereditários - disgênicos - eram impossíveis de serem modificados e; portanto, a educação e seu ideal transformador da sociedade era inatingível.

O ideal: "quem é bom, já nasce pronto" carregava a insigne do fracasso e havia a defesa de que a educação era limitada em relação aos educandos, por esta razão cada indivíduo possuia atributos que deveriam ser considerados no processo educativo. Cabia a educação fazer florescer estas boas características pessoais, qualidades próprias do ser, habilidades e tendências vocacionais que ainda não haviam sido exploradas. 

Ressalta-se que, fatalista, a educação nesse momento histórico brasileiro, desejava a promoção da consciência do ideal eugênico nos jovens escolares, cuja mistura racial era condenada pelo risco de degeneração racial. Era propagada a ideia de união corpórea e filiação apenas entre iguais - raça e classe social -, pois isto contribuiria para que uma elite nacional sadia e consistente se estabelecesse. 

Quanto as reformas educacionais neste período a proposta continha moralidade, bons costumes e melhoria no condicionamento físico humano - raça forte e padrão estético eram uma prioridade.  As constituições brasileiras de 1934 e 1937 continham dentro de si o ideal eugênico como política nacional, que tinha como objetivo condicionar moralmente e disciplinar os corpos através da educação física. Esse movimento era imprescindível para a formação de um estado totalitário e populista. Em relação ao adestramento, Foucault explica:

“Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais — pequenas células separadas, autonomias orgânicas, identidades e continuidades genéticas, segmentos combinatórios. A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (FOUCAULT, 1987, p. 195).

Fazendo a intersecção destes pontos da história da educação nacional brasileira e a formação do sistema prisional de Foucault (1975), podemos inferir semelhanças ideológicas que se perpetuam ao longo da história e das forças produtivas presentes no campo histórico, comum às sociedades capitalistas e a ordem das classes. Em ambos os movimentos percebe-se a necessidade da disciplinarização dos corpos para a máxima cooptação humana do estado. Ao analisar o sistema prisional este autor explicita a interioridade destes aparelhos repressores e punitivos, que estão para além da punição da psiquê, elas se propõe na regulação do corpo individual, coagindo e estimulando uma educação total do indivíduo e regulamentando todos os movimentos do corpo. 

Neste sentido, ele continua, além de retirar dos indivíduos as suas liberdades, o sistema prisional os transforma tecnicamente e politicamente. No entanto, essa transformação passa despercebida por causa de suas cristalizações diversas. Não é violenta e nem explícita, é infiltrada sutilmente como uma microfísica do poder, que se interpõe entre a instituição e o próprio corpo. Afinal, existe um ideal de ortopedia social a ser alcançado, cuja vigilância atinge o esperado. Na prisão, a corporeidade dócil é produzida: para a economia - produtivo, para a sociedade - civilizado, para a política - disciplinado e devotado a prática e ordem estatal.

Walhausen, bem no início do século XVII, falava da “correta disciplina”, como uma arte do “bom adestramento”.1 O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes (FOUCAULT, 1987, p. 195).

 Resultantes da nossa história na história dos homens percebemos o adestramento como obra supernal do Estado.  

Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos (FOUCAULT, 1987, p. 195).

Retomando a questão primeira, levantada nesta discussão, vemos um retrocesso paradoxal aos sistemas educacionais, e supomos não haver como fragmentar o espaço escolar da totalidade histórica do controle, já que a educação, assim como todas as outras ciências retroagem a sua base estrutural, que é acima de tudo econômica e política.

Continua (...)








sábado, 25 de março de 2023

Ressignificar pra que?


Ilustração:  Uma orgia de manequins no cemitério. Manequim, ensaio fotográfico de Mars Lander, 2013


Por Dâmaris A C Melgaço

Faz tempo que eu não passo por aqui, ao passo que se passo é só para contemplar a obra de minhas mãos como uma boa mulher neurotípica. Um castelinho construído, que de vez em quando se desmonta e se reconstrói, já que não consegue ficar parado em um único pilar. Essa efervescente sede de saber, que incômoda me aflige e me coloca em cheque e; às vezes, em tensão. De toda forma, essa inquietação me obriga a ressignificar o pensamento, a extirpar as muletas, a rever as coisas em ângulos diversos. 

Há exatas horas em que eu me sinto totalmente desprovida de argumentações e outras em que eu me encho de coragem para enfrentar o dilema de dar uma resposta. No entanto, sempre me pergunto se as respostas são realmente necessárias. Afinal, elas se dão dentro da dinâmica social e suas engrenagens.

O último ano foi, sem dúvida - para mim - um momento de grande crescimento humano integral, no entanto; ao mesmo tempo, veio com algumas retaliações da vida cotidiana, das culpas sociais e das desculpas. As engrenagens me colocaram entre duas situações extremamente dolorosas e que envolvem a minha vida pessoal, que reverbera a social.

Como estudiosa da "inclusão" tenho me debatido com as exclusões vívidas e transparentes da cultura social capitalista, mas não como outrora - à distância, mas, aqui e agora; bem pertinho. E quando essas dinâmicas atingem nossos familiares a gente fica sem chão. Sim, a dor da experiência nos humaniza ainda mais. 

Se antes, eu percebia as exclusões e optava por não participar delas, agora eu vivo a exclusão. Óbvio, que a questão da exclusão existe sempre na vida social, principalmente na vida cotidiana de uma sociedade, cuja estrutura econômica é baseada no capital.  Não se trata de negar isso, mas de vivenciar mais de perto a dor do excluído e o martírio da vida marginal.

As respostas que a vida material nos dão são as melhores, porque elas nos ensinam a crescer. Estou experimentando de perto duas dores: a dor da exclusão da diferença e do ritmo inusual do aprendizado e a dor do racismo estrutural.

Eu sou bisneta de um homem negro, meu avô era um homem pardo, minhas tias avós mulheres de "cabelo ruim" - diziam os brancos. Minha mãe nasceu no interior do Rio Grande do Sul. Ela é branca, no entanto; para aquele lugar em 1957 (mil novecentos e cinquenta e sete), ela e sua família eram os pretos e sofreram todas as humilhações possíveis e cabíveis à sua época. 

Minha mãe gostava de estudar, mas parou os estudos na quinta série ginasial. Foi expulsa da escola acusada de roubo. Mais tarde, descobriram a verdade. Nunca pediram perdão. Essas histórias eu sempre escutei, mas não posso dizer que eu vivi a exclusão pela cor da pele, pois eu também sou branca e em outro contexto.

O que estou querendo dizer é que sempre ouvi histórias, mas nunca as vivi literalmente. A vida que vivi foi a vida do pobre, mas daquele que ainda tem o que comer ou vestir. Eu não posso dizer que eu sei o que é passar fome ou morar na rua. Minha mãe, sim.  

Recentemente, vivi uma experiência dolorosa com uma pessoa querida. E diante dos relatos que ouvi, me pus em lágrimas e acho que ainda estou em recuperação. A resposta que a vida nos dá, meu leitor, é a confirmação de que racismo estrutural, exploração do trabalhador, expropriação da dignidade e necessidade de sobrevivência sempre existiram e ainda existem no Brasil e são processos muito cruéis.

Quando você decide estar ao lado do oprimido, sendo consciente de sua própria condição - ora como oprimido, ora como opressor - compreende que este é um caminho sem volta. Que as estruturas sociais desta sociedade são cruéis e desumanas. Que elas nos destroem outorgando-nos toda a culpa pela  miserabilidade que nos é imputada.

É uma chave que vira a concepção de mundo da gente e nos impulsiona a rejeitar com toda a veemência os processos da in/exclusão, entendendo que a decadência de uma sociedade - dialeticamente - é ao mesmo tempo ruim e benéfica, já que a degradação de um sistema pode ser o recomeço de um novo modo de existir em sociedade e que o xeque-mate da consciência embora implacável, é muito libertador.

 Finalizo aqui com este poema reflexivo.

O    A B R I G O   N O T U R N O

Soube que em Nova Iorque
Na esquina da Rua 26 com a Broadway
Todas as noites do inverno há um homem
Que arranja abrigo noturno para os que ali não têm teto
Fazendo pedidos aos passantes.

O mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos
Mas alguns homens têm um abrigo noturno
Por uma noite o vento é mantido longe deles
A neve que cairia sobre eles cai na calçada
Não ponha de lado o livro, você que me lê.
(...)
A neve que cairia sobre eles cai na calçada
Mas o mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos.
(BRECHT, 1986, p. 90)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Meritocracia cabulada no discurso conteudista


Por Dâmaris A C Melgaço

Há tempos reflito sobre questões como nota e meritocracia. Não somente eu, claro; já que muitos outros estudiosos também o fizeram antes de mim. Esta reflexão perpassa um campo histórico-social vasto que abarca a instituição de um sistema de ensino escolar meritocrático, instalado a partir dos interesses capitalistas e que reverberaram nas ciências estatísticas e matemáticas até a psicometria, de bom grado, aplicada aos interesses educacionais mercadológicos.

Diante disso, muitas confusões pedagógicas se instalaram nas matrizes pedagógicas e geraram contradições referentes a práxis escolar que envolve ensino-aprendizagem e avaliação. Questões primárias são evocadas para a sustentação de um ensino convencional conteudista com regras e metas matriciais curriculares, aplicados desde sempre na concepção tradicionalista - estruturas de ideólogos alemães - e tradicional de ensino - própria de uma adaptação tradicionalista aditiva do capital.

Correntes progressistas realizaram então tentativas de resoluções pedagógicas para compreensão de responder o fracasso escolar residente nos países capitalistas dependentes. Toda culpa foi depositada nos métodos, nas didáticas e conteúdos escolares e trouxeram inovações que pretendiam fugir da lógica meritocrática: avaliação e nota.

Observa-se que há os que defendem um realocamento dos conteúdos como a centralidade objetiva da aprendizagem e outros que defendem a experiência educativa como a centralidade da volição necessária para a propulsão da aprendizagem. Os primeiros acreditam que não pode haver adaptações, concessões ou qualquer tipo de caminho da experiência humana como variável interveniente da aprendizagem, para tanto exigem o cumprimento de uma educação rigorosa e meritocrática que culmina na nota. Os segundos compreendem o caminho da volição humana, entendendo que variáveis intervenientes cumprem papel primordial na aprendizagem humana. Desta forma buscam alternativas que fogem aos padrões tradicionalistas e tradicionais. 

Essa guerra expõe o caráter complexo dessas formas de se pensar educação. Qual seria, então o caminho da aprendizagem humana? A resposta reside em conceitos simples: ação e reação como resultado da vivência humana geradora de volição. A ação de escolher ou decidir estudar é sempre a chave da reação que é aprender. 

Por isso o aprendiz demarca o território de seu aprendizado. É inútil acreditar que somente por forças extrínsecas, regras, modelos, conteúdos, nota, punição, etc. haverá aprendizagem. Talvez por medo da reprovação punitiva, seres humanos se submetam as decorebas e cataloguem-se numa nota. No entanto, isso não garante aprendizagem. 

Tal fato é notável, já que a maioria dos adultos brasileiros, até se lembram da fórmula de Bhaskara, mas não sabem pra que a decoraram e muito menos pra que ela serve. Aprendizagem implica em processos intrínsecos fundamentais que perpassam o significado e o significante das coisas.

Aprender para que? Esta questão filosófica é uma insistente nos processos humanos. É um princípio que jamais deve ser abandonado. Portanto, a filosofia é uma insigne importante dos processos evolutivos humanos traduzidos em aprendizagem. O homem que aprende não esquece o que aprendeu e passa a sua descendência o seu aprendizado. 

Todo aprendizado humano perpassa a experiência humana em processos concretos e basais da aprendizagem. Sem as bases concretas do aprendizado não há ensino. Porque se não faz sentido, se é alheio ao homem, se não lhe toca, este não pode significar e nem aprender. O máximo que ele fará é decorar o que lhe ensinam, é repetir o que lhe contam, é reproduzir o que lhe dizem ser.

Para entender melhor, tomemos uma criança como exemplo: enquanto o adulto lhe diz - "Não sobe aí, você vai cair, vai se machucar" esta não cumpre a ordem. Geralmente ela insiste em subir. O adulto lhe agarra, lhe prende, lhe poda, repete e repete e no primeiro descuido a mesma criança sobe naquele lugar de aviso proibido. Num primeiro momento não cai e o adulto de posse de seu aprendizado insiste na ordem. No entanto, a criança só aprende quando cai e se machuca e dói. É ali que se dá o seu verdadeiro aprendizado. Então ela agora pela própria experiência sabe o risco de subir. Isto não garante que ela não subirá novamente, não é mesmo?  O diferencial é que ela agora sabe o que pode acontecer, então novos aprendizados surgem. Ela aprende a se cuidar, a não arriscar tanto. Faz sentido.

Apreende-se que a educação é preceptora do aprendizado, mas é o aprendiz que significa na sua experiência o que quer aprender. É um processo coletivo que não extingue a volição. Portanto, o ditame adulto não garante aprendizado, embora muitos possam corresponder as cabulações meritocráticas. O fazem porque lhes interessa o resultado, e o resultado não passa da reprodução do capital.

A educação que se pauta na meritocracia não tem nada de autêntica. Trata-se de reprodução, de educação de papagaios. A educação que soma é aquela que respeita o aprendiz, que intencionalmente o busca tocar, que lhe faz sentido, que lhe impressiona, que lhe desperta a volição catártica do conhecer. É o ressuscitar filosófico de velha tradição, que impulsiona o questionamento das coisas, dos fatos, da vida. 

Finalizo com Henri P. H. Wallon, que nunca especificou um estágio final para o desenvolvimento humano, porque nunca acreditou no mesmo. Para ele, o processo de aprendizagem sempre implica na passagem por um novo estágio. Se aprendemos, então significa que nos adaptamos e esse processo dialético jamais se encerra.

A meu ver, é preciso ressignificar os processos avaliativos, não ignorando as interveniências sociais, estruturais, que perpassam a evolução do humano e o desenvolvimento do pensamento humano. Não basta um bom programa de disciplinas, um bom currículo, uma boa didática, um plano de aula bem elaborado, se estas variáveis forem ignoradas. Não se trata de paternalismo, embora não devemos generalizar, mas de um olhar apurado para as especificidades psicológicas humanas a partir de suas realidades estruturais e de suas vivências sociais. Enfim, se a educação não for dialética ela se perde no pragmatismo. 



Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...