quinta-feira, 6 de junho de 2019

A PERDA DA REALIDADE NA NEUROSE E NA PSICOSE

INTRODUÇÃO 
#Dâmaris Alcídia da Costa Melgaço

Uma fórmula simples, que trata da diferença genética mais importante, talvez, que há entre neurose e psicose: “A neurose é o resultado de um conflito entre o eu e seu id, enquanto que a psicose é o desenlace análogo de uma similar perturbação nos vínculos entre o eu e o mundo exterior” (FREUD, 1924/1988a, p. 125). 

1. NEUROSES DE TRANSFERÊNCIA 

Surgem pelo fato de o Eu não querer aceitar e promover a efetivação motora de um impulso instintual poderoso no Id, ou de contestar o objeto a que ele visa. O Eu, então, defende-se dele através do mecanismo da repressão; o que é reprimido se revolta contra esse destino, criando, por vias sobre as quais o Eu não tem poder, um substituto que o representa, que se impõe ao Eu pela via do compromisso, o sintoma; o Eu vê ameaçada e prejudicada por esse intruso a sua unidade, dá prosseguimento à luta contra o sintoma, tal como se defendia originalmente do impulso instintual, e tudo isso resulta no quadro da neurose (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

O Eu, ao efetuar a repressão, segue as ordens do seu Super-Eu (que se originam das influencias do mundo real). Este conjunto tem mais força do que as reivindicações instintuais do Id. Assim o Eu “ [...] coloca em andamento a repressão a essa parte do Id e fortalece a repressão mediante o contra-investimento da resistência. A serviço do Super-eu e da realidade, o Eu entrou em conflito com o Id, e assim ocorre em todas as neuroses de transferência” (FREUD, 2011). 

1.1. Mecanismos das psicoses 

Distúrbio na relação entre o Eu e o mundo exterior. “amência” — uma confusão alucinatória aguda, talvez a mais extrema e impressionante forma de psicose —, o mundo exterior não é percebido de modo algum ou sua percepção não tem nenhum efeito (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

Normalmente o mundo exterior domina o Eu por duas vias: primeiro, pelas percepções atuais que sempre podem se renovar; depois, pelo acervo mnemônico de percepções anteriores, que, como “mundo interior”, constituem patrimônio e elemento do Eu. Na amência, não só é excluído o acolhimento de novas percepções, mas também é retirado o significado do mundo interior, que até então representava o mundo exterior, como sua cópia; autonomamente o Eu cria um novo mundo exterior e interior, que é edificado conforme os impulsos de desejo do Id (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

Destaque para o íntimo parentesco entre essa psicose e o sonho normal. Na esquizofrenia sabe-se que tendem a resultar no embotamento afetivo, isto é, na perda de todo interesse no mundo exterior. Sobre a gênese das formações delirantes, algumas análises nos ensinaram que o delírio é como um remendo colocado onde originalmente surgira uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

A etiologia comum à irrupção de uma psiconeurose ou psicose é sempre a frustração, a não realização de um daqueles desejos infantis nunca sujeitados, tão profundamente enraizados em nossa organização filogeneticamente determinada. O Eu, nessa tensão conflituosa, continua fiel à sua dependência do mundo externo e procura amordaçar o Id, ou se deixe sobrepujar pelo Id e separar da realidade. O Super-eu reúne influências que vêm tanto do Id como do mundo externo. Sendo um modelo ideal do o esforço do Eu, a conciliação de suas múltiplas dependências (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

A neurose de transferência corresponde ao conflito entre Eu e Id, a neurose narcísica ao conflito entre Eu e Super-eu, a psicose àquele entre Eu e mundo exterior. 

2. A PERDA DA REALIDADE NA NEUROSE E NA PSICOSE 

Um dos traços que distinguem a neurose da psicose: Na primeira o Eu, em sua dependência da realidade, reprime uma parte do Id (da vida instintual), enquanto na psicose o mesmo Eu, a serviço do Id, retira-se de uma parte da realidade (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

Para a neurose, o fator decisivo seria a influência preponderante da realidade, para a psicose, a influência do Id. A perda da realidade já estaria na psicose desde o início; na neurose ela seria evitada (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

A contradição existe apenas enquanto temos em vista a situação do início da neurose, na qual o Eu, a serviço da realidade, efetua a repressão de um impulso instintual. Mas isto não é ainda a neurose mesma. Ela consiste antes nos processos que trazem compensação para a parte prejudicada do Id, ou seja, na reação à repressão e no malogro desta. O afrouxamento da relação com a realidade é consequência deste segundo estágio na formação da neurose, e não nos surpreenderia se um exame detalhado mostrasse que a perda da realidade afeta justamente a porção da realidade por cujas exigências produziu-se a repressão instintual (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

Caso de estudos sobre a histeria: “(...) uma garota apaixonada pelo cunhado, estando junto ao leito de morte da irmã, é abalada pela seguinte ideia: “Agora ele está livre, pode se casar comigo”. Esta cena é imediatamente esquecida e tem início o processo de regressão que conduz às dores histéricas. É justamente instrutivo, nessa história, ver por qual caminho a neurose busca resolver o conflito. Ela tira valor à mudança real, ao reprimir a exigência instintual em questão, ou seja, o amor ao cunhado. A reação psicótica seria recusar o fato da morte da irmã” (FREUD, 2010; 2011; 1976; NASIO, 2001, p. 63-64). 

No surgimento da psicose ocorre alguma coisa análoga ao processo que se verifica na neurose, naturalmente entre outras instâncias. Também são visíveis dois estágios, o primeiro arrancaria o Eu da realidade, o segundo tenderia a corrigir o dano e restabeleceria a relação com a realidade à custa do Eu (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

O segundo estágio da psicose visa também compensar a perda da realidade, mas não à custa de uma restrição do Id — como, na neurose, à custa da relação com o real —, e sim por uma via mais autônoma, pela criação de uma nova realidade, que não desperte a mesma objeção que aquela abandonada (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

Tanto na neurose como na psicose o segundo estágio é conduzido pelas mesmas tendências. Nos dois casos ele serve às aspirações de poder do Id, que não se deixa coagir pela realidade (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

Tanto a neurose como a psicose são expressão da rebeldia do Id contra o mundo externo, de seu desprazer ou, se quiserem, de sua incapacidade de adequar-se à necessidade real. Neurose e psicose diferenciam-se muito mais na primeira reação, que as introduz, do que na tentativa de reparação que lhe segue (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

A diferença inicial se exprime então no resultado final: na neurose uma porção da realidade é evitada mediante a fuga, enquanto na psicose é remodelada. Ou podemos dizer que na psicose a fuga inicial é seguida de uma ativa fase de remodelação, e na neurose a obediência inicial é seguida de uma posterior tentativa de fuga (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

A neurose se contenta em evitar a porção da realidade em questão e proteger-se do encontro com ela. A diferença aguda entre neurose e psicose, no entanto, é diminuída pelo fato de também na neurose haver tentativas de substituir a realidade indesejada por outra mais conforme aos desejos (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

O novo mundo exterior fantástico da psicose pretende se pôr no lugar da realidade externa, enquanto o da neurose, tal como o jogo das crianças, apoia-se de bom grado numa porção da realidade (FREUD, 2010; 2011; 1976). 

REFERÊNCIAS 

FREUD, S. Ensaios de metapsicologia e outros textos. Obras Completas. v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 

FREUD, S. O Eu e o Id, Autobiografia e outros textos. Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 

FREUD, S. Sobre o início do tratamento [1913]. In: ______. O caso de Schreber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976 (Obras completas: Edição Standard Brasileira). 

NASIO, J. D. (Cols). Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, pp. 33-64.

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