sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Vivi a experiência, senti, apreendi o sentido e dei a ele significado.

A vivência é uma escola lúcida, porque ensina pelos sentidos o sentido do sentir, lhe dotando de significado subjetivo e intersubjetivo. A vivência é social dada pelo meio, mas o constructo do sentir é de início singular. 

É social, pois na medida em que ocorrem interações, na externalidade, com os objetos pertencentes ao meio ambiente, constitui-se relacional, ou seja; é em si mesmo relação.

Uma relação que proporciona experiências que sempre passam pelos sentidos. Elas se apresentam na imediaticidade, como sensações positivas ou negativas e; entre estes dois polos estanques. 

É singular porque a partir destas apreensões sensoriais os indivíduos sociais formarão o arcabouço do sentido que cada um apreende no momento exato da vivência.

É significante apropriado de determinada realidade. Pode-se dizer que as infinitas subjetividades constituem uma gama de intersubjetividades irrestritas.

É claro que as condições materiais em que estas experiências ocorrem são variáveis determinantes do sentir vivido, significado, conceituado e compartilhado.

Por esta razão é impossível garantir uma hegemonia do sentir, já que para que algo seja hegemônico é preciso que todos os seres sociais sintam da mesma forma e sejam dominados por um único sentido ideológico.






sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Do filme Arábia


 “Cachorro pequenininho não pode enfrentar dogão não, mas agora que se você junta mil cachorrinho; o dogão é que fica pequeno (sic.)”¹. 

É interessante observar como a classe-que-vive-do-trabalho se percebe neste discurso. 

A metáfora do cachorrinho e a simbologia do adestramento, da servidão e da pureza na expectativa frente à lógica do receber ou merecer algo. É pequenininho, diminuto na luta pela sobrevivência frente o semelhante maior, imponente. 

O princípio da coletividade é evocado na junção das forças pequenas, a totalidade da classe, o fortalecimento da conjuntura que reverte às forças, tornando o pequeno grande e maior que a ameaça percebida. 

A escolha dessa metáfora é intencional, já que demarca a cisão entre uma consciência percebida desvinculada do vivido. Ela retoma o vivido, a experiência em si, percebida como a causa do sofrimento e que empurra o indivíduo para uma consciência social que está constantemente em atrito com a consciência imposta, ideológica. 

É o retrato de uma minúcia de abertura e oportunidade de opor-se e resistir, como mediação de práxis formativa de identidades de classes.1 Essa frase é, portanto; significativa na medida em que traduz a lógica da luta de classes que é processo de produção coletiva, obviamente imprescindível na história dos indivíduos sociais.

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¹ “Arábia”. Diretores Affonso Uchôa e João Dumans. Brasil: 2017. 1 bobina cinematográfica (97 min). son., colorido. 

A individualização da vida do ser é solidão


Há momentos que na vida pensamos em olhar atrás e é preciso pedir ajuda para poder continuar...

Essa canção religiosa aponta uma expressão vívida da alma de muitos homens e mulheres, a angústia e o desespero presentes na existência humana. Porque existir é doloroso na medida em que os homens caminham só. 

Talvez essa seja uma expressão maior do quanto o individualismo pregado na sociedade nos coloca numa tremenda solidão. Estruturas que nos abortam enquanto seres sociais. 

Acho lindo como essa canção singela expõe as nossas fragilidades e a necessidade de ser coletivo. E há muitas críticas subjetivas que faço aqui, mas que guardo pra mim. 

Na expressão de sua fé esse ser social apela para a sua entidade mítica, que nesse caso é expressão de coletividade, irmandade e comunhão. 

Então, deve-se compreender que a maior demonstração de amor é partilhar da comunhão universal.

É hipocrisia afirmar que ama, ao permanecer em movimentos individualistas.

Os homens precisam compreender que ser social significa extensionar braços e mãos. 

Somos seres sociais coletivos e isto é tudo o que temos.

Precisamos ajudar a carregar as cargas uns dos outros.

Mais que isso¹ Precisamos diminuí-las com ações justas que busquem uma maior unidade de valor social e coletivo.

As cargas podem ser leves, na medida em que os homens busquem políticas sociais e econômicas que garantam alteridade.


terça-feira, 7 de dezembro de 2021

O sonho é o caminho da concretude


 Você já ousou sonhar?

O sonho embora pareça utopia é possibilidade.

Há os que se cansam de lutar.

Há os que desistem na tempestade.

Há os que submergem as ondas.

Há os que antes de chegar a marina abandonam o leme.

Há os que desesperados rasgam os corações.

Há os covardes, tímidos e intimidados.

Todos estes há, no entanto os que clamam no deserto persistem.

São aqueles que não desistem.

Que irrompem o caos.

Que se tornam raio e trovão.

Que não envergam e nem abandonam a embarcação.

São os corajosos que fazem das dificuldades a ponte para a concretude.

E da concretude a realização do que sonharam.

Estes não sonham só, sonham junto, irmanados.

Pois entendem que a liberdade é universal.

E que ninguém é livre só.

Estes resgatam os que há morreram.

Porque a morte do sonho é a desgraça da raça.

É a mortalha dos mortais.

É a estação dos perdidos.

Mas a vida do sonho é o recomeço da retomada do ser.

Das asas, da imaginação e da permanência do sentido.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Quando o coração aperta, a vida desperta




Dizem que quando o coração aperta, a vida desperta. 
O coração aperta na injustiça, a vida desperta na busca do justo. 
O coração aperta na dor, a vida desperta o alívio. 
O coração aperta na fila do pão, a vida desperta a solidariedade. 
O coração aperta indo, a vida desperta voltando. 
O coração aperta na estrutura, a vida desperta a ruptura. 
Quando o coração aperta, é hora de despertar. 
Às vezes a vida desperta, mas faltam canções, sorrisos, amigos, flores, e jardins. 
Faltam a base que poderia transformar o real. 
Ultimamente, de tanto ver nulo o despertar, 
chego a duvidar do contrário, 
chego a pensar em amoldar. 
De coração apertado seguimos. 
Na esperança da Consciência desperta de homens e mulheres. 
Mas até os despertos são espertos e se enredam nas estruturas. 
Chego a pensar que o discurso é belo, mas inócuo. 
E que viver desperto é o aperto que não cessa. 

Dâmaris Alcidia da Costa Melgaço**

domingo, 31 de outubro de 2021

Consciência em expansão



O fato de que homens e mulheres erram significa que podem acertar. Julgar pessoas por aquilo que, em algum momento, reproduziram no passado é duvidar da possibilidade evolutiva existente no ato de pensar o viver em sociedade. É acreditar na imutabilidade humana, é desmerecer os processos psíquicos superiores, reduzindo-os aos determinismos ambientais, ou seja; menosprezando a capacidade de construção humana que produz saltos qualitativos na evolução cultural.

Heráclito afirma em sua célebre frase que "nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio...pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem".

O pensador trás a verdade em reflexão de que existe nas interações objetais uma mutabilidade, preconizando a possibilidade da variação dos constructos do pensamento. 

O contato entre os objetos e sua interação passam por transformações, ou seja; nada é como era, porque muitas coisas ocorrem entre uma ação e outra. Embora os cenários pareçam os mesmos a historicidade do tempo antagoniza as passagens. 

E esta é a magia da dialética humana a de que os homens e mulheres podem se tornar contraditórios, pois entram em contato com as contrariedades da existência.

Ora é na interação objetal que o homem constrói seus conceitos e valores e também é nesta mesma interação que o mesmo homem se reformula. 

A medida em que acessa novos conteúdos, novas proposições, torna-se possível a retomada de seus espaços mentais para refletir o arcabouço teórico de outrora e se transformar no embate das contradições encontradas dentro dele.

Eu mesma, já fui contrariedade e por certo no futuro poderei ser novamente até que formulações se redefinam e se refinem. 

O que já pensei e fui não me diminui, apenas me estaciona no lugar humano que ocupo e se por hoje estaciono, amanhã floresço e me deparo às antigas contradições.

O mais importante é a evolução do pensamento que jamais deve estacionar na estação da mediocridade.






sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Setembro Amarelo: reflexões acerca do suicídio


O homem quando expropriado de sua produção criativa torna-se prisão. O suicídio, então; é possibilidade de um último ato produtivo que rompe com o distanciamento existente entre ser aí e ser dasein.

Pensar o suicídio de forma objetiva exige elaboração de campos históricos e de contextos culturais. Marx ao abordar o assunto faz relação com as questões propriamente relativas às condições do trabalho no sistema capitalista. O autor alega que são as formas de coexistir na sociedade do capital são determinantes para a  morte ou a decisão pela morte.

Para Marx, o homem quando desapropriado de sua produção e compulsoriamente jogado as condições de miserabilidade econômica pelo sistema monetário a que se submete, toma para si a possibilidade da desistência da vida. O fenômeno do suicídio sempre esteve presente ao longo da história nas mais variadas formas de  organização política, inclusive nas sociedades socialistas. Isto é algo que motiva reflexão.

É claro que esta razão econômica sempre perpassou e ainda perpassa o ideário social. No Brasil, o índice de suicídios tem crescido assustadoramente. A maior parte ocorre por motivações nem sempre específicas ou objetivadas. O que mais se ouve são proposições de possibilidades de ordem orgânica em adoecimento, dentre eles; a depressão, estados ansiógenos e psicóticos.

A questão levantada é por que há tantos estados adoecidos na sociedade ocidental? Como estes processos se dão? Há uma lista gigantesca a ser debatida. A fugacidade da vida, a chamada  superficialidade, as relações abstratas, a sociedade do consumo, os distanciamentos das relações interacionais, etc. A questão primordial refere-se a expropriação do ser de si e dos outros, mas como este processo de expropriação ocorre? Nesta questão, retomado em Marx as questões mais básicas, pode-se buscar explicações plausíveis a este fenômeno social.

O homem advém de suas produções e é nelas que o sentimento de utilidade se completa. Sejam nas produções de trabalho intelectual ou material, cuja força é exigida, os homens encontram o prazer produtivo. O prazer produtivo é dotado de energia vital que dá ao homem a realização, o prazer e o poder criativo. 

Nas bases mais primitivas, na luta pela sobrevivência, as necessidades são de preservação e manutenção de si e de outros. A luta e a fuga são ativos do medo e reinventados na produção de materiais protetivos. A produção humana, fruto do trabalho, é em si um bem maior dotado de poder e de domínio sobre outras espécies. A dominação, por si só, é; sem dúvida, liberdade. E é pela liberdade que o homem luta e labuta.

As invenções sociais, a medida que foram sendo necessárias, iniciaram os processos de castração da liberdade, pois a convivência coletiva exigiu que a liberdade de alguma forma fosse cerceada. A criação das regras foram a construção coletiva para estabelecer a comunicação e a interação necessárias para a boa convivência.

Todo este processo, em si, não é retrocesso, já que ele, pela própria distribuição da coletividade, se fez por um bem maior; a melhor convivência nos espaços sociais. A questão do suicídio não ocorre pelas formas rudimentais de comunicação ou apropriação espacial, mas pelas invasões territoriais dos espaços intrínsecos e individuais do existir humano. A transferência da volição primitiva pela conquista dos espaços enquanto domínio, quando transposta para o campo da individualidade intrínseca, talvez; seja a grande chave da inexistência e apatia existencial. Nestas condições o ser humano é tornado propriedade de outro e não de si. Eis aí a questão mais pungente na relação morte e vida.

Acostumado a existir para a produção criativa, o homem agora é expropriado de sua função primeira para acolher uma única produção universal, agora assumida como a mais importante verdade conhecida. A diminuição da autonomia criativa, seja na produção de suas ferramentas, sistemas, mitos e conhecimentos, causa apatia social. 

Geralmente, àqueles; acostumados e condicionados a expropriação, se reproduzem na imitação e permanência inconsciente de sua condição. Ao retomar o mito da caverna de Platão, pode-se repensar como a inércia presentifica a transmutalidade do mito em fascínio reduzido ao medo do desconhecido. Nestas condições alienantes da real face do mito, o homem não retoma a consciência e não sente e se não sente; se ressente.

Quando despertos de sua consciência, há nestes homens o desejo de reapropriação dos espaços antes invadidos e expropriados. Diante de toda a força existente na pressão comunitária, em forma organizada de políticas sociais, que subordinam os seres às autarquias, renascem as ideias maniqueístas que entendem a igualdade das origens que não necessitam de subordinações no campo individual do existir.

Estes homens, dotados da consciência crítica das relações em sociedade, são os inconformados. E assim, o sendo; despertam-se para a luta contra toda forma de opressão. Em Marx, pode-se perceber a anuência do consciente. É permitido pensar a sociedade em suas bases materiais. É permitido questionar estas bases. É inerente ao homem pensar sobre si e os outros e nos processos da coletividade.

Ser consciente é doloroso porque perceber as injustiças existentes, naquilo que constitui humanidades, é responsabilidade. E se é responsabilidade é culpa. E se é culpa é morte. E se é morte é luto. E se é luto é viver na obscuridade existencial. É morrer na existência.

A ideia do suicídio é um antagonismo da existência, pois se já não vivo na vida, confirmo na literalidade quando enfrento a morte. A finitude no existencialismo é o ponto crucial do existir. A morte é a maior proximidade do dasein, pois é ali que o eu real se manifesta, sem as brumas da inexistência. Portanto, suicidar-se é possibilidade de autonomia e resgate de si, mesmo que a obscuridade do pós-morte amedronte. No entanto, o suicida já experimentado da morte do ser nada teme. 

O medo é o princípio da vida e da luta pela sobrevivência. Moreno nos conta que suas experiências infantis lhe deram o estarte para a questão do ser. Em suas brincadeiras dramáticas, aonde rei e senhor ele era, certa feita ousou pular de sua cama e o resultado foi um machucado fenomenal. A partir deste memorial, entendeu um princípio básico, o de que o medo é o freio que nos estagna e nos coloca em vigília pela vida.

O ato de libertar-se implica em aceitar os limites da existência. O homem livre sabe que o seu poder criativo restringe-se a sua finitude. Eis aí o empasse final. O suicida transpassa o limite que o sufoca, incluso o de seu finito, na esperança de retomar o controle de seu poder criativo ou produtivo num ato final. O da tragédia humana.

Como numa peça de teatro, ele atua o último ato. Nada mais propício lembrar de Shakespeare e o ato final de Romeu e Julieta. A trágica estória mesmo que por acaso retoma o ato suicida como o apogeu e a vitória dos amantes. É na finitude da existência que há a libertação de toda opressão.

Entendendo que todos os seres são atores de sua existência e que são dotados de liberdade para escolher entre a vida e a morte, compreende-se o ato livre suicida como a expressão de todo o peso existencial que carrega. Não se pode condená-lo, pois muitos homens já pensaram em fazê-lo. 

A questão que se desvela não é a culpabilização de suicidas, mas a retomada da consciência suicida. 




sábado, 28 de agosto de 2021

Ópio ou Cocaína?


"Sua suposta religião age simplesmente como um ópio: excitante, estonteante, acalmando os sofrimentos dos fracos." (NOVALIS, 1798)

A religião é o ópio do povo, disse Marx. Em se tratando dos contextos existentes e da perspectiva histórica vivenciada deste pensador, há de se compreender esta afirmação. Particularmente, eu traduziria na contemporaneidade, dentro de alguns contextos religiosos, que a religião não é o ópio, é a cocaína do povo.

À época do pensador, a religião que outrora fora aliada ao estado totalitário, e que na sua realidade histórica representava a égide da soberana governança, oriundas da junção entre a fé e a prosperidade mundana, representava a classe dominante burguesa. 

Ora, se antes a religião proibia a riqueza material dos fiéis, agora nas mãos do protestantismo reafirmava as bençãos materiais e o domínio econômico das nações, herança judaica da promessa abraâmica.

Sendo a religião uma aliada dos processos mundanos, era também um entorpecente do pensar. Ópio das massas. Em contrapartida, um alívio às tensões do existir em sofrimento. Alguns destes propiciados pelo sistema político e monetário e outros oriundos do próprio ato de existir no mundo, cujo fim é a fatídica morte. 

Criticamente pensando, a religião quando associada as relações intramundanas perde o seu valor essencial. Crítica esta já prevista nos escritos originais da fé cristã. Afinal, para um bom leitor das escrituras, os erros teológicos compreendem todo espaço existente entre uma teologia terrena e uma espiritual.

Em se tratando da fé cristã, o apego as coisas mundanas, entre elas o dinheiro é a raiz de todos os males. Contrariedades da fé teológica. Dentro desta realidade material, que toma a fé como processo material de produção humana, Marx tem sua razão. A fé, naquele momento histórico era sim, uma droga lícita, capaz de amortecer os sentidos, alienando os homens da ação, tendo como geratriz material o medo. Um temor utilizado na égide da inquestionabilidade dos dogmas, que depois se transmutaram em obediência cega as autoridades, dotadas de um caráter divino.

Na contemporaneidade, o ópio tornou-se a cocaína, o êxtase hiperprodutivo seguido da depressão acompanhada de mais doses letais. Dentro dessa saga religiosa moderna, podemos falar de uma religião do capital, cada vez mais impregnada das ideias faraônicas de um deus que exige a subserviência dos fiéis, sob a égide da inquestionabilidade de seus líderes. Os que se atrevem a fazê-lo estão sob a anátema infernal.

Há um culto aos faraós babilônicos dentro das religiosidades. Estes por sua vez, propagam a olhos nus a teologia da prosperidade, a teologia da determinação, subordinando seu deus aos seus objetivos canastrões, cujo único fim é a obtenção de favores financeiros. 

Há um desprezo a ideia de pobreza e uma verdadeira exaltação a ideia de riqueza. Ser agradável a deus é ser rico ou próspero. Essa massificação da ideia nababesca é contagiosa porque toma a faceta da ambição, própria dos seres sociais, construída no imaginário popular, como essencial. Loucos por uma dose de adrenalina as massas iludem-se na corrida por um lugarzinho aqui e agora. Consumir é o preceito decadente desta religiosidade morta.

A luz de sua teos, liderados e liderandos coadunam-se na busca pelo poder, que é encontrado, nesta sociedade de classes, no ter posses (propriedade privada). Contraditoriamente, liderados encontram seu lugar ao sol dentro de suas religiosidades, pois já que dentro da sociedade burguesa são considerados escória ou ralé, no exercício da fé, são reconhecidos, ouvidos, aplaudidos pelas suas histórias, alcançando dentro da hierarquia religiosa cargos e lugares de destaque. Finalmente, ali são gente. A carência social é preenchida. Cenário próprio para sanguessugas da fé beberam o sangue da "ralé". 

Dentro de algumas religiosidades contemporâneas encontram-se as miniaturas das estruturas capitalistas sob uma nova linguagem espiritual. A única objetividade é a exploração da fé. Uma teologia terrena nas mãos de vendilhões do templo e de mercadores da fé. Nesse sentido, é ópio do povo para um estado de alienação de sua própria produção mítica que, a priori conclama um cisma entre materialidade e espiritualidade.

Ser espírito é; portanto, um vivência material cuja essência rompe com a ideologia humana. No campo da espiritualidade deve prevalecer a partilha, a humildade, a igualdade, a paz com todos, a auto resignação e o total desprezo as produções negativas humanas. É a dialética entre viver para o ventre ou viver para o outro. Essa ideia não cabe na sociedade capitalista, que tem como base a exploração do outro.

No entanto, o que se observa na atualidade é uma adaptação desta fé genuína aos intentos do capital. Encalhando a religiosidade cristã na tumba da existência intramundana. A religiosidade é produção material tanto quanto o trabalho é, pois é fruto da construção humana. Haja vista, estar presente ao longo da história em quase todas as civilizações. 

É um processo histórico. Da história do homem e de sua construção social. Negar o direito a fé é infração, tanto quanto é a negação do usufruto laboral. Infelizmente, no projeto do capital a fé cristã foi expropriada de seu contexto real, para servir aos objetivos abjetos dos mecanismos de produção capitalistas.

A fé, inegavelmente, é um fenômeno que se mostra ao longo do tempo importante para os homens, tendo um valor em si. A obrigatoriedade do ateísmo é um afronte as liberdades humanas. Ações que pretendem eliminar a fé, ou obrigar humanos a negarem seus preceitos espirituais é crime humanitário. A questão principal não deveria ser o exercício das religiosidades, mas a forma com que estas são utilizadas pelo estado para fins políticos.

Seres que buscam exercer suas religiosidades genuinamente possuem avanços significativos no sentido humanitário, assim como àqueles que pautam a vida na ética também o fazem. Para alguns, somente a ética, enquanto produção social, lhes basta. Para outros; não, pois ela precisa vir acompanhada do ser mítico. São necessidades semelhantes, porque preocupam-se com as injustiças sociais, porém de forma distintas. Como dizia Descartes, a ideia de um Deus já é em si uma prova de que ele existe. Isso é campo subjetivo, mas também coletivo.

Portanto, sabe-se que não é, na atualidade; preocupação das ciências provar a existência de Deus, embora tentem. Trata-se de buscar na realidade material as determinações de um objeto. Deus é um conceito que não necessita ser provado. Ele existe na ideia, no pensamento e nas experiências místicas (subjetivismos) que não podem, por agora; serem comprovadas cientificamente.

Enfim, com relação aos mercadores da fé, resta uma total repulsa. Náuseas que não são contidas. Aos comparsas da atividade exploradora, da reafirmação das lógicas excludentes, da hegemonia do estado eclesiástico, meus pêsames. Estão mortos junto com o sistema. O seu mais valor jaz aqui, junto com os abutres sociais, que esperam os resquícios da carnificina humana.


 





sexta-feira, 30 de julho de 2021

Passado o dia D, reflexões fenomenológicas


A humanidade está em ser movimento. A frustração é o momento do vivido e não é vergonhosa, por isso não apago o dia D. Há de se digerir os processos, ruminá-los, chorar feito criança, entrar no casulo, é processo autofágico. 

Passado a crise, refletir nossos processos egoístas. Quantos de nós entramos na competitividade da vida sem pensar o quanto isso já é excludente. São os fenômenos desta sociedade dita inclusiva. E por mais que tentemos ser inclusivos, ainda assim estamos dentro de um sistema exclusivo.

É contraditório não aos moldes hegelianos, mas marxiano. E é pensar esse fenômeno enquanto movimento aparente que podemos nos debruçar no objeto a ser investigado. 

Entendo que para iniciar uma pesquisa partimos dos pressupostos hipotéticos. Então, uma pesquisa sempre parte de três possibilidades: Ausência de um constructo crítico, Presença de um constructo crítico insuficiente, Presença de constructo crítico mistificador.

Um marxista parte desse referencial insuficiente e mistificador para apropriar-se das categorias objetais, desmistificando aquilo que se apresenta de imediato, sem as intervenções de um pensamento crítico. 

É importante observar que toda concepção teórica e científica é relativa, mas não relativista. É relativa porque não aceita uma verdade absoluta, mas busca a reprodução ideal do conhecimento real do objeto investigado. Em outras palavras não é a idealização do objeto que se apresenta de imediato no ambiente, mas de sua concretude e gênese. 

A inclusão, por exemplo, como fenômeno apresenta-se na imediaticidade como uma solução das questões sociais que envolvem a problemática das desigualdades. No entanto, o que aparentemente se apresenta possui em si movimentos ideais não reais. 

A tendência é o mascaramento das realidades existentes e a total insuficiência das pesquisas existentes nesta área, pois muitas delas apoiam-se no relativismo das Ciências Sociais. 

O materialismo histórico dialético possui dois elementos básicos historicidade e valoração. A historicidade implica em dois aspectos fundamentais: 1) Apenas quando a sociedade burguesa (material primordial maxiano) estiver consolidada é que o objeto revelará o seu florescimento quanto as suas tendências estruturais; 2) As tendências estruturais estão a vista no território político e são elas o explorado e o explorador.

A valoração, por sua vez, não é necessariamente um saber científico, é na verdade um conluio de ideologias. Ou seja, não se trata apenas de uma análise objetal, mas de uma relação sujeito-objeto como fruto da ação dos homens.

Portanto, categorias, para Marx não são um conceito ou uma definição.

A inclusão não pode partir de uma investigação conceitual ou de uma definição, mas de uma relação que busca os traços pertinentes ao campo de estudo. Quando não pensamos a dialética, valemo-nos do imediatismo ou do mundo aparente que não faz uso da mediação. Para Marx as determinações do objeto de estudo já está dado e é através da abstração das determinações deste objeto que o pesquisador revelará a sua constituição real, ou seja; não há nada a ser colocado ou acrescentado ao objeto pelo pesquisador.

São estas determinações que precisam tornar-se evidentes quando estuda-se a inclusão na sociedade capitalista. É entender que o critério da verdade é processo factual e implica na prática social. 

Categoria em Marx, portanto; são formas de ser, modos de existir socialmente e realiza análise do objeto em sua riqueza categorial que são processos constitutivos da sociedade capitalista. Nos estudos da inclusão parte-se da categoria simples chamada trabalho e de todas as implicações do trabalho, sendo importante pensar categoricamente nos modos de produção, na mais valia, no ser produtivo e improdutivo.

É preciso compreender que o concreto é concreto como síntese de múltiplas determinações. Incluir está para além de técnicas e métodos de inclusão. É praxis que visa superar as estruturas dessa sociedade burguesa, que é em sua gênese excludente. 




quarta-feira, 2 de junho de 2021

SER TRANSGÊNERO, IMPLICAÇÕES POLÍTICAS E SOCIOCULTURAIS NO ATENDIMENTO HUMANIZADO EM UMA INSTITUIÇÃO DE REFERÊNCIA EM CAMPINAS/SP

 

Para acessar o artigo na revista clique no link disponibilizado
https://drive.google.com/file/d/1d0rGc2UxTnv-78oPGRPW3SlIKy1wwPKH/view


DÂMARIS ALCÍDIA DA COSTA MELGAÇO[i]

 

1. INTRODUÇÃO

Para falar sobre transgênero é impossível não retomar a história da construção da sexualidade no mundo, já que na cultura Ocidental há padrões normativos cristalizados e já estabelecidos por diversas gerações. Estes padrões são a mistura de vários conceitos até então defendidos pela religião e a medicina que notadamente influenciaram a pedagogia e a psicologia. O binarismo dos gêneros cria e recria o pensamento de que o gênero é o reflexo autêntico do sexo biológico, vendendo a ideia de que toda a integralidade constitutiva dos indivíduos está atrelada a essa premissa inicial, ou seja, de que as funções biológicas naturais determinam a sexualidade e a posicionam, estática, no sistema binário com as suas pretensas organizações naturais (BENTO, 2003, FERNANDES, 2009, MASIERO, 2005).

Masiero (2002) afirma em suas pesquisas que se pode observar na utilização de instrumentos psiquiátricos do séc. XX, cujo objetivo era a purificação de raças e o controle social, afinidades com algumas técnicas contemporâneas que mantém, ainda que em contextos diferentes e disfarçadamente, os mesmos propósitos. Por esta razão, entende-se que o que se apresenta na concretude social retratados no comportamento e nas representações sociais tende a uma demora significativa no movimento de transformação. E, portanto; até que haja o aniquilamento total do ideário desigual o empreendimento para tal ocorrência exige grande esforço (PATY, 1998).

Na cultura ocidental, independentemente da existência de outras culturas onde a vivência das diversas manifestações da sexualidade era livre, há uma imposição do binarismo macho e fêmea ou masculino e feminino tão retomado pela medicina tradicional. Até o séc. XVIII, a oratória que imperava construía as anatomias fisiológicas, masculino e feminino, em graus sucessivos e posicionados verticalmente, ou seja; sob a hierarquia de um único sexo. “Não é incomum que as palavras sexo e gênero sejam utilizadas como sinônimos, embora pertencer a determinado sexo signifique ser homem ou mulher, biologicamente, enquanto gênero define o masculino e o feminino, do ponto de vista comportamental e psicológico.” (ABDO, 2016, p. 21, LAQUEUR, 1991 apud FERNANDES, 2009).

Historicamente, as pesquisas nesta área são recentes e surgem no séc. XX com grande influência da ciência médica e com o advento das pesquisas de reprodução e suas tecnologias tanto conceptivas quanto contraceptivas, porém não é somente a medicina que inicia este processo. Outras áreas como as ciências sociológicas, pedagógicas e psicológicas, sob o enfoque psicanalítico, também se preocuparam em pesquisar o desejo e o comportamento sexual (ABDO, 2016).

Na contemporaneidade, a visibilidade de temas advindos de outras áreas, incluindo os estudos feministas, está em evidência nos espaços acadêmicos, bem como; na formulação de políticas públicas. O acolhimento de linhas de pesquisas e grupos de estudos que se debruçam sobre a temática de gênero em diversas áreas do conhecimento e de matrizes teóricas tem sido mais valorizado. Há investimento nacional e internacional de agências de fomento à pesquisa que estão apostando nestes estudos a fim de assegurar a alteridade das minorias e incentivar a formulação das políticas públicas (FELIPE, 2007). Portanto, as pesquisas nesta área se justificam, já que:

As demonstrações atuais de intolerância contra minorias étnicas, religiosas e sexuais, comuns no mundo todo, Brasil incluído, nos indicam que não se trata de um assunto definitivamente encerrado, circunscrito a um passado longínquo e esquecido, como pode parecer à primeira vista; mas de um grave problema contemporâneo, cabendo, portanto, contestar o papel da ciência, sobretudo da psicologia, na construção histórica de preconceitos raciais e estigmas diversos (MASIERO, 2005, p. 204).

Estudos realizados nos Estados Unidos da América (USA) por autores renomados, entre a década de 30 e 60, romperam com o que já estava cristalizado pela sexologia clínica dos desvios sexuais, trazendo novos fomentos à pesquisa. O advento da AIDS nos anos 80, enquanto epidemia, e o alto índice de gravidez na adolescência entre 10 e 14 anos desencadearam, ainda mais, os estudos sobre a sexualidade contemporânea. “Nesse campo, a influência da epidemiologia e notadamente da biologia experimental sobre a clínica médica, teve enorme relevância no século XX. Por sua magnitude, afetou também a sexualidade no século XXI.” (ABDO, 2016, p. 21; FELIPE, 2007, LOYOLA, 2003).

Foram muitos os avanços científicos que aconteceram desde o início do século XX. Garantiu-se a vida pelo transplante de órgãos, da barriga de aluguel e; posteriormente, a fertilização in vitro. Estudos nos campos da genética humana avançaram para a elucidação dos códigos genéticos, do genoma, da possibilidade de clonagem humana, das células tronco e etc., foram essenciais para movimentar e romper com simbologias e constructos de representação sociais referentes à identidade parental de origem genética e a própria identidade social em contraste ao sexo biológico de nascimento (ABDO, 2016).

A liberação da sexualidade experienciada e vivida movimentou a busca por um gênero específico, individual e ao mesmo tempo genérico, cujas respostas são cada vez menos possíveis já que existem muitas formas de atingir prazer e muitas maneiras de significar uma identidade sexual. Este movimento é o que se apresenta nas estruturas sociais do séc. XXI e que está em voga nas pesquisas da contemporaneidade, porém; ainda lida com as forças de movimentos socioculturais influenciadores de oposição àquilo que se apresenta de novo no campo das biotecnologias (ABDO, 2016, LOYOLA, 2003).

Como verificamos, historicamente, houve muitas mudanças no campo social, biomédico, antropológico, pedagógico e psicológico em relação às expressões de amor e a sexualidade exercida, a priori, separada das concepções tradicionais biológicas, que enquadram homem e mulher no exercício de uma única prática sexual, bem como; a identidade rompida das lógicas binomiais. Os estudos de enfoque feminista, de vários segmentos, tiveram relevância nesse movimento mutatório, sendo grande influenciador, justamente por abordarem temas que outrora eram considerados minoria, de menor valor. Questões como família, infância, maternidade versus paternidade, bem como; a sexualidade, adquiriram um status primeiro ganhando expressividade como objeto de pesquisas e estudos (ABDO, 2016, FELIPE, 2007).

Este tema não é novo, embora as pesquisas mais revolucionárias sobre ele sejam recentes. Sabe-se que esta frente instiga tanto os pesquisadores como a população em geral na busca por respostas mais amplas do que as dadas pela cultura majoritária ou também, pelo contrário a fim de manter antigos paradigmas referentes aos estereótipos de masculinidade e feminilidade (ABDO, 2016).

A preocupação com questões envolvendo os conflitos de classe é histórica e permeou a práxis central dos movimentos que estavam preocupados com as problemáticas sociais. É a partir dos anos 80, que se verifica uma emergência na discussão circular de temas como identidade e diversidade cultural. Estas discussões serviram de pano de fundo para a formação de um “novo movimento social” (DURHAM, 1984, EVERS, 1984).

Atualmente, o compromisso com a diferença faz frente à lógica binária que se estabeleceu até o sec. XVIII como um único sexo completo, masculino e outro incompleto, o feminino e que a partir do séc. XIX tomou a proporção de dois sexos, um feminino com características estereotipadas, bela, recatada e do lar e outro; masculino, poder, força e conquista. Portanto, o comportamento de gênero ganha novos significados e estes têm uma multiplicidade de conceitos significantes dentro de uma mesma cultura, porém ainda sofrem com o caráter adaptativo social que impõe regras sociais. É inegável, portanto, que o comportamento sexual carrega em si um caráter ideológico, já que está para atender as demandas de um estilo de vida pré-determinado socialmente (ABDO, 2016, FERNANDES, 2009, LAQUEUR, 1994, MONEY; TUCKER, 1981).

Judite Butler, nos anos 90, em suas pesquisas e estudos de Teoria Queer, fez frente justamente a essas proposições pré-estabelecidas defendendo um aniquilamento destas estruturas para uma aceitação natural das diferenças de expressão da sexualidade. Não há, então; a necessidade de uma separação binomial, nem mesmo uma caracterização comportamental do que seja feminino ou masculino, mas uma vivência despolitizada ideologicamente das estruturas familiares apoiadas nas diferenças biológicas (PRADO; MACHADO, 2008; WELZER-LANG, 2001).

Na contemporaneidade, as pesquisas de Teoria Queer estão para esmiuçar as dicotomias, as rotulações, as normatizações e a heteronormatividade, logo; ela não se fixa apenas ao suporte teórico, dos quais os estudos na área da pesquisa fazem uso, dissertando temas ligados à orientação sexual ou identidade de gênero. Mais que isto, ela se tornou um agente político e social a fim de transformar a realidade social preditiva e excludente, que caminha na lógica da exclusão, cujo posicionamento heteronormativo impõe-se por si só (SANTOS, 2005).

Além das pesquisas no campo sociocultural, existem pesquisas atuais importantes no campo das neurociências. Houve neste campo evoluções de técnicas de imagens cerebrais (ressonância magnética e tomografias), podendo-se através delas perceberem-se as diferenças entre os cérebros masculinos e femininos (NORO, CRESPI, NÓBILE, 2018; SPIZZIRRI, 2018). Estas possibilidades são muito importantes para as pessoas transgênero, já que elas apontam para semelhanças entre o funcionamento cerebral de um cérebro feminino e masculino com o cérebro de pessoas transgênero. Logo, pode-se afirmar que existem possibilidades para embasamentos teóricos que dão aos estudos de gênero e de diversidade sexual, o caráter de científico (NORO, CRESPI, NÓBILE, 2018).

Muotri (2017) afirma que as pesquisas realizadas por ressonância magnética dos cérebros transgêneros dão pistas, poucas, de que existem alterações na estrutura do córtex cerebral e de suas conexões nervosas. As neurociências contribuem para o entendimento da diversidade sexual e de gênero ao desfazer a rígida compreensão da homossexualidade como resultado de uma influência do meio, favorecem a instrumentalização dos/as docentes em minimizar o preconceito e proporcionam o acolhimento de cada pessoa na sua individualidade e inteireza (NORO, CRESPI, NÓBILE, 2018, p. 112).

Entende-se que os resultados advindos de pesquisas, que tomam por base a ressonância magnética, cooperam com outros estudos que se pautam na morfologia através de neuroimagens, sendo reforçadores da ideia de que a identidade de gênero de pessoas transexuais está correlacionada com a variação fisiológica existente na biologia humana (SPIZZIRRI, 2018).

Do ponto de vista histórico, a Psicologia, reclama para si o forjar de profissionais e pesquisadores compromissados, criticamente, com o desvelamento dos paradigmas científicos que estão em constante transformação e não mais detém a verdade absoluta. Este compromisso está para além de uma pretensa neutralidade, a qualquer tempo, pois se sabe que “a ciência pode servir a interesses de classes ou de justificativas para a segregação de minorias, sobretudo no Brasil, onde as teorias racistas foram outrora cultivadas por uma elite intelectual motivada mais ideológica que cientificamente” (MASIERO, 2005, p. 205).

1.1. Metodologia[ii]

O método dialético utilizado baseou-se em estudo descritivo, que utilizou a análise qualitativa dos dados colhidos durante as entrevistas realizadas. As entrevistas foram realizadas de forma remota, através da plataforma online Zoom, devido ao momento histórico vivido durante a pandemia da Covid-19. Foi realizada pesquisa de campo remota, através de um roteiro semiestruturado, onde os psicólogos atuantes em serviços sociais voltados exclusivamente à temática e atendimento da população LGBTQIA’s, principalmente; de indivíduos transgênero, localizados nas cidades de Campinas/SP, dissertaram sobre suas funções e atividades exercidas em tal âmbito, assim como suas dificuldades e facilidades para o desenvolvimento do mesmo.

1.1.1.     Participantes

A amostra foi composta de 05 profissionais da equipe multidisciplinar, 03 psicólogos e 02 profissionais de outras áreas da saúde: médico psiquiatra e assistente social, da cidade de Campinas – SP.

1.1.2.     Procedimentos

A pesquisa obedeceu aos critérios éticos estabelecidos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510, de 07 de Abril de 2016. Inicialmente foi feito contato com os profissionais para esclarecimento dos objetivos e procedimentos da pesquisa. Posteriormente, foi solicitada a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) destes profissionais. Foram definidas as estratégias de pesquisa e de horários para permanência no serviço, conforme realidade diagnosticada. O levantamento de dados foi iniciado após apreciação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP) da Universidade Paulista, submetendo-se a presente pesquisa ao sistema CEP/CONEP da Plataforma Brasil.

Os procedimentos de pesquisa com os profissionais obedeceram a três etapas: Primeira etapa – Autorização de pesquisa e entrevista com psicólogos responsáveis pelo serviço. Segunda etapa – Entrevista com os participantes da equipe multiprofissional, conforme disponibilidade dos mesmos entre espaços próprios, pré-estabelecidos dentro de sua carga horária habitual. Terceira etapa – Tabulação, análise e discussão dos resultados.

Tais procedimentos possuíram o risco de causar algum desconforto no participante, como por exemplo, ao falar de sua vida profissional e de vivências pessoais nesta área de suas vidas, situação em que poderiam emergir emoções de pesar ou tristeza. Os entrevistados foram acolhidos pelos pesquisadores, e puderam interromper a participação, imediatamente, continuando ou não mais tarde.

2.     RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados apontaram para a existência de tendência à manutenção de uma matriz ideológica, no caso a capitalista, que pôde ser observada quando dois psicólogos entrevistados afirmaram que gerenciar as condições estruturais do Centro de Referência LGBTQIA+ de Campinas (CR LGBTQIA+ Campinas) por questões políticas e conseguir manter o usuário no serviço de atendimento após os primeiros encaminhamentos é um grande desafio. Observa-se que as respostas que se seguem apontam para o fato de que o viés ideológico estatal ainda se mantém desprezando a pluralidade cultural fazendo manutenção de uma cultura majoritária em meio a uma sociedade multicultural, investindo poucos recursos financeiros no atendimento das minorias (HELLER, 2016).

Importante notar que, dos três psicólogos entrevistados, dois apontaram como dificuldade a permanência do usuário no programa ofertado pelo CR LGBTQIA+ Campinas, pois sua adesão ao “tratamento psicoterápico” é dificultada por muitos fatores biopsicossociais como falta de acesso aos serviços, inacesso aos meios de transporte, ser profissional do sexo (prostituição), estar na dependência de cafetões, etc. e um deles apontou para dificuldades de atendimento dessas realidades biopsicossociais.

Estes dados denotam o problema existente na sociedade democrática que é o mascaramento das minorias e que está interligado ao impingimento da cultura majoritária por intermédio do poder político que nega aos indivíduos a igualdade de direitos, ferindo a identidade dos cidadãos. Agiganta-se a política neoliberal, própria do sistema capitalista, que promete ampla concorrência mercadológica, vendendo ilusões de uma falsa igualdade, entretanto; sendo a mantenedora da desigualdade social. A pobreza necessita ser compreendida pelos indivíduos envolvidos no processo de inclusão social como um fenômeno histórico sempre existente, mas que no capitalismo toma formas mais perversas, já que os recursos financeiros são existentes, porém chegam para a população mal distribuída, retroalimentando a desigualdade social (FECHINE, ROCHA, CUNHA, 2014). Conforme as palavras da psicóloga entrevistada (informação verbal)[1] e do psicólogo entrevistado (informação verbal)[2]:

Nós temos o desafio institucional de estrutura, de curso mesmo, de ter uma impressora colorida para imprimir um laudo, de ter mesmo papel sulfite, que são coisas assim que faltam por serem serviços públicos. Muitas vezes essa população tem a dificuldade de aderir [...] o tratamento psicológico, a psicoterapia, porque é uma população que tem uma característica muita especifica [...] elas são muito emergenciais, elas tem uma expectativa de vida muito curta, então; essa psicoterapia para elas, uma coisa mais longa, é muito sem sentido [...] porque não sabem se vão estar vivas daqui 30 minutos. Os desafios maiores são vencer essa questão de quanto à família ainda é um problema, de quanto a religião é um problema, porque vai totalmente na contramão do que a gente acredita (Psicóloga, 50 anos). O CR é bem sucateado pela estrutura que o governo nos oferece [...] a aderência [...] as pessoas vem até o centro de referência com o objetivo de conseguir um encaminhamento e quando conseguem [...] vão embora (Psicólogo, 31 anos).

Faz-se notório no discurso dos psicólogos entrevistados, que sua atuação não pode ignorar os aspectos políticos, sociais e religiosos que envolvem a atenção específica dada ao público LGBTQIA+ e que este deve trabalhar para incluir de fato esta população na sociedade, propiciando conhecimento de luta de classes e alcance aos seus direitos mais básicos, além de obter conhecimento das políticas de inclusão social vigentes no país. Toda ação na sociedade que visa à transformação é libertadora, pois tem uma natureza que trabalha as relações horizontais e éticas. Portanto, estas relações são produtoras de diálogos entre as partes envolvidas que podem levar a construção do conhecimento que conduz a ação. “Os sujeitos envolvidos em uma ação transformadora são igualmente capazes e responsáveis pela construção de relações inclusivas ou excludentes”.  (MARTÍN-BARÓ, 1996; COSTA, 2015, p. 273). 

Observa-se que esta preocupação funcional do psicólogo aparece nas respostas dos psicólogos, já que um deles apontou que o maior desafio é a conscientização valoral do ser humano transexual e o seu empoderamento como cidadão de direito e que outro profissional acredita, que vencer a questão da família e da religião, como um problema, é um desafio, porque suas ideologias vão totalmente à contramão daquilo que se acredita atualmente no campo psicológico, médico e social. Sendo, portanto, esta uma preocupação de dois dos psicólogos entrevistados.

Estas observações coadunam com os estudos teóricos que apresentam as barreiras religiosas, médicas e sociais existentes e construídas ao longo da história na sociedade ocidental como influências negativas diretas na construção do pensamento, na família da pessoa transgênero, em relação à prática sexual homoafetiva. Sendo estas barreiras uma retroalimentação do estigma e do preconceito, pois posicionam a prática sexual fora da norma naturalizante ou biológica em condição de pecado, aberração ou abominação (BENTO, 2003; FERNANDES, 2009; HELLER, 2016; LAQUEUR, 1994; MASIERO, 2002/2005).

No tocante as dificuldades e facilidades encontradas no desenvolvimento do trabalho do psicólogo no CR LGBTQIA+ Campinas dois dos entrevistados retomaram a questão estrutural, parte física e financeira e a ingestão municipal. Elencaram que precisam utilizar recursos próprios na realização de seu trabalho, confirmando que a política social, na prática, privilegia os que pertencem à maioria, desprezando a minoria pré-existente (ABDO, 2016; HELLER, 2016, FECHINE, ROCHA, CUNHA, 2014).

Questões políticas abriram espaço para a volta do preconceito e de agressões verbais, afirmou um dos entrevistados. O mito da ideologia de gênero dificultou o trabalho nas escolas (palestras, etc.). As perseguições políticas e religiosas ganharam ênfase sob a desculpa do politicamente correto. Esta afirmação do profissional leva à reflexão e retoma a ideia marxista que aborda a questão dos espaços e como o indivíduo se apropria dos mesmos. Em sua obra, Marx expõe como o homem se desenvolve dentro de seu meio social, que é assinado por construções de produção histórica, tendo como impulso o trabalho nos processos societários, grupais. Logo, a herança cultural deixada de geração a geração vem acompanhada, também; do viés negativo, sendo eles a manutenção de estigmas, preconceitos e estereótipos. O universo religioso aliado ao sistema político perpetua preconceitos e dificulta a aceitação do comportamento sexual diverso (ABDO, 2016; MARX, 2009; MASIERO, 2002/2005).

As facilidades relatadas pelos profissionais psicólogos apontaram para a necessidade que a população atendida possui, de ajuda e apoio, pois a mesma é carente de base biopsicossocial e de religiosidade, já que enfrenta muitas barreiras na constituição de sua identidade e aceitação de sua condição por familiares e a sociedade em geral, amor pelo trabalho e fé na causa com disponibilidade de luta e enfrentamento e engajamento no projeto de levar informação e empoderamento à população atendida. Estes apontamentos facilitadores corroboram para a importância de proporcionar ao paciente acolhimento de suas demandas reais e escuta de suas problematizações.

Os psicólogos, quando questionados sobre a relação multidisciplinar dos serviços disponibilizados à população transgênero e sobre a importância desta relação na execução do trabalho em equipe, em sua maioria; expuseram fragilidades na relação de equipe multidisciplinar, apontando acúmulo de funções, poucos funcionários e utilização de apoio extra de organismos governamentais e entidades colaboradoras e parceiras e apontou como essencial o trabalho de equipes, embora apenas um deles tenha respondido esta questão de forma objetiva, entendendo a quase ausência de trabalho multidisciplinar na organização CR LGBTQIA+ Campinas.

Importante notar que dois deles apontaram para o trabalho multidisciplinar “extraoficial” de natureza colaborativa e de parcerias com CAPS, profissional ginecologista da prefeitura, movimentos sociais: Casa sem Preconceito e CEPOP e que um deles apontou falhas de governo municipal que não enxerga o trabalho desta instituição como importante no empoderamento das pessoas transgênero. Dando ao trabalho realizado pela equipe apenas um sentido burocrático.

Denota-se que a situação atual da organização é precária, pois quando atenta-se à fala da psicóloga responsável pela supervisão psicológica do CR LGBTQIA+ Campinas, a realidade, nua e crua, aparece nos relatos oficiais informados por ela e estes apontam para a existência de apenas duas funcionárias oficiais na organização e acúmulo de tarefas. De acordo com a psicóloga entrevistada (informação verbal)[3]:

A gente não consegue [...] fazer uma coisa muito interdisciplinar porque só sobrou eu e a [...] assistente social e ela está coordenadora, então a gente passa semanas sem se encontrar. Hoje a gente tenta se virar como dá [...] tenta conversar como [...] consegue, por exemplo, nós falamos pelo wattsapp, ela consegue me passar recados. Eu acabo falhando um pouco nesta questão interdisciplinar porque a gente não consegue muito encaixar nossas agendas, ela acabou ficando muito nessa parte da coordenação, que tem um monte de pepino pra resolver e eu fico na parte da psicologia (Psicóloga, 50 anos).

Observa-se que a quase ausência de uma equipe multiprofissional que se complemente e intercomunique adequadamente, em reuniões periódicas, a fim de discutir as demandas sociais específicas do público atendido pelo CR LGBTQIA+ Campinas é um agravante para o trabalho em equipe que tem prejudicado a proposição de novas estratégias de intervenção em saúde, que se utiliza de diferentes campos do conhecimento científico na objetivação da garantia do direito a assistência social das pessoas que se encontram em processos injustos (PEDUZZI, 2001). 

Os psicólogos, ao serem questionados sobre as queixas levantadas pelos usuários dos serviços disponibilizados à população transgênero na perspectiva do profissional psicólogo; indicaram para queixas que foram implantadas no campo psicossocial ou familiar dos indivíduos, ou seja; ideia e valores impostos pelo convívio social, que estão intimamente ligados ao preconceito e a discriminação social, um deles apontou para as dores psíquicas que estão relacionadas ao sistema de crenças e valores das pessoas transexuais, um deles para questões de despatologização da população LGBTQIA+ não só do homossexual, mas também das transexuais, um deles apontou para as questões de identidade, questionamentos e confusões relativas ao estado de ser homossexual e ser transexual, etc., bem como aos modos de se relacionarem afetivamente, um deles expressou acreditar que as questões de violência relativas ao gênero são um plus a mais, pois muitos deles sofrem violências por serem transexuais, além de muitos sobreviverem da prostituição e outro expôs que há necessidades básicas relativas à segurança e alimentação.

Observa-se, que todas as queixas apresentadas acima pelos profissionais se entrelaçam e derivam da primeira, já que se entende que a cultura do preconceito está implantada na sociedade por meio da religião hegemônica e da política estatal e que esta se encontra disseminada no imaginário popular, sendo transmitida como verdade às gerações. Esta verdade imposta afeta as famílias e consequentemente as pessoas transgênero, por isso elas sentem-se confusas em sua relação identitária, ou seja; de quem elas são de verdade e de como devem se relacionar e em qual modelo familiar. Em decorrência destes estigmas e estereótipos estabelecidos na cultura social reconhece-se que a violência contra o público LGBTQIA+ é alta (ABDO, 2016; BENTO, 2003; FERNANDES, 2009; MARX, 2009; MASIERO, 2002/2005).

No Brasil, em 2020, foram registrados, nos primeiros oito meses, 129 assassinatos de pessoas transexuais, com um aumento de 70% em relação ao ano anterior. O período da pandemia Covid-19 agravou ainda mais as desigualdades já existentes, pois a maioria não conseguiu acesso ao auxílio emergencial. A violência doméstica teve aumento de 45% no período de quarentena, já que as transexuais foram obrigadas a permanecerem junto de seus algozes e familiares intolerantes. “Os cinco estados com mais mortes de pessoas transexuais entre 1 de janeiro e 31 de agosto de 2020 são: SP com 19 casos, BA e MG com 16, Ceará com 15 e RJ com 7 assassinatos” (p. 03). Além disso, muitos travestis e transexuais acabam por ser marginalizados pela sua condição caindo nas teias da prostituição, aumentando o risco de morte. Logo, por não terem oportunidades justas de emprego e subsistência, necessidades básicas, segurança e alimentação, terminam na precariedade (ANTRA, 2020).

Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) 90% das pessoas transexuais utilizam-se da prostituição em algum período de sua ontogênese. Isto ocorre porque muitas destas pessoas são expulsas de casa, não conseguem escolarizar-se e acabam sendo excluídas do mercado de trabalho que discrimina sua condição. A segregação e a humilhação acabam por retirar desta população o direito ao trabalho. Importante notar que no Brasil não existe uma lei que garanta a pessoas transexuais oportunidade de emprego (MAYUMI, CAMILA, 2020; FERREIRA, 2020).

Os apontamentos dos psicólogos relacionados aos dados de pesquisa apresentados por órgãos competentes inferem que a necessidade de atuação do psicólogo no trato das questões político sociais ultrapassa as funções nominais estabelecidas pela sua profissão. O profissional psicólogo ao trabalhar com problemas relativos à injustiça estrutural deve adequar sua atuação aos contextos reais das populações. Embora não seja sua função específica, ele deve dar suporte a partir de sua singularidade, em resgate de uma resposta, ou seja; sua atuação implica na sua autoconscientização de que é seu dever amparar os indivíduos a fim de suplantar a alienação de sua identidade, objetivando transformar o seu contexto opressor (MARTÍN-BARÓ, 1996).

Os outros profissionais, psiquiatra e assistente social, ao serem questionados sobre as ferramentas e técnicas utilizadas no exercício profissional afirmaram dar apoio emocional aos usuários dos serviços através do acolhimento das demandas sociais e encaminhamento a outros serviços necessários. Relataram priorizar a participação por meio do diálogo e de intercomunicações entre serviços ofertados fora do âmbito profissional e um dos profissionais afirmou encaminhar os usuários a serviços ofertados por outras organizações conforme a demanda biopsicossocial e de religiosidades, como exercício da fé em igrejas inclusivas ou católica, time esportivo inclusivo e o Centro de Referência LGBTQIA+ de Campinas-SP.

Individualmente, de acordo com suas especificidades, os profissionais relataram suas intervenções a partir de técnicas e ferramentas com o público atendido. O psiquiatra apontou utilizar-se de medicação, publicidade, trabalho em rede, rodas de conversa e acessibilidade. A assistente social afirmou utilizar a anamnese e visitas domiciliares em casos de extrema urgência. De acordo com o médico psiquiatra (informação verbal)[4] e da assistente social (informação verbal)[5], cada um realiza seu trabalho conforme suas especificidades:

Eu trabalho no serviço SUS [...] referencio o centro de referência, passo essas informações [...] em Campinas temos o primeiro time LGBTQIA+ do interior, o Camaleões, eu encaminho para a pessoa entrar em contato. Coloco as informações que tenho para que a pessoa possa ter uma rede de apoio e sustentação [...] quando a pessoa tem uma prática espiritual se é católica, eu encaminho para a universidade católica, se é evangélica sugestiono/encaminho para conhecer as igrejas inclusivas. Para que serve a medicamento psiquiátrico, o atestado, o relatório [...] a gente tenta acompanhar o paciente [...] continuar conversando, continuar tendo canais de comunicação, acessibilidade, acho que isso é um grande critério, porque às vezes as portas para essa população são fechadas, o que me deixa triste (Médico Psiquiatra, 58 anos). Anamnese [...] é instrumental nosso, o qual foi desenvolvido por nós e nos ajuda a extrair as informações que precisamos para trabalhar [...] visitas domiciliares, quando possíveis, também podem ser realizadas. Tudo se resume ao que disse sobre o mundo ideal e o real, no ideal poderíamos fazer tudo, mas, no real, por exemplo, visitas domiciliares só são realizadas em casos de extrema urgência e necessidade. Durante nossos trabalhos, se necessário, também adaptamos os instrumentos ao nosso alcance para que eles nos auxiliem da melhor forma possível durante o processo (Assistente Social, 50 anos).

Observa-se, que neste caso, o trabalho interdisciplinar não ocorre, já que o médico atende fora do CR LGBTQIA+ Campinas. Ambas as falas corroboram para intervenções limitantes da estrutura física oferecida, que não abarca o trabalho em equipe. O atendimento médico se descola de sua equipe multiprofissional da UBS, já que afirma enfrentar desafios de mentalidade no atendimento das pessoas transexuais, principalmente em relação ao encaminhamento para operações intersexo. Ambos os profissionais demonstram interesse no bem-estar social dos indivíduos, apesar de todas as barreiras estruturais que se apresentam na cotidianidade. O trabalho coletivo deve ser realizado para a diminuição de desigualdades e; quando isso ocorre, a interação integral da equipe fica satisfatória, no entanto; o que se observa nas relações hierárquicas entre profissionais é a prevalência de determinadas profissões sobre as outras, em detrimento aos discursos críticos acerca das divisões compartimentadas de tarefas (PEDUZZI, 2001, p. 107).

3.     CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se que há prevalência de mecanismos sociais próprios da sociedade capitalista, já que, como cidadão, se está inserido numa nação com historicidade ocidental que tem por base a instituição do capital e suas formas de exclusão. Isto se verificou nas teias que envolvem o cotidiano da pessoa transexual que, na lógica do capital, é excluída da empregabilidade e jogada a precariedade social, tendo que recorrer muitas vezes à prostituição como forma de sobrevivência. Isto se verificou nos relatos dos profissionais que apontaram para dificuldades financeiras como barreiras para um acolhimento efetivo, já que muitas transexuais chegam ao CR LBTQIA+ com fome, sujas, são moradoras de rua, prostitutas profissionais, possuem dificuldades de acesso por não terem o dinheiro da passagem para chegar ao local do tratamento psicológico.

Averiguou-se que não bastam apenas, como psicólogos, cumprir os papéis delegados ao exercício da função profissional, pois o psicólogo precisa ir além de suas aptidões básicas, já que os desafios políticos e formação da sociedade exigem luta de classes e consciência da práxis que é o movimento teórico, base de direcionamento, e a prática atuando juntos como agentes de transformação. Percebeu-se o quanto os profissionais envolvidos no atendimento das pessoas diversas atuam para além de suas proposições específicas, engajando-se no empoderamento e na luta contra ações preconceituosas e estigmatizadoras, oriundas das políticas sociais.

Portanto, a autoanálise das próprias concepções profissionais e pessoais, bem como a busca pela superação dos vieses ditados a priori pela ideologia predominante, das maiorias, a autoconsciência humana precisa estar em constante transformação e suspensão, já que existe a tendência pela manutenção e comodismo profissional. Acredita-se que o profissional psicólogo tem fundamental importância neste movimento transformador, mas para tanto precisa modificar-se a si mesmo, ou estará fadado à manutenção do status quo “curativo”, que pretende manter as separações, as injustiças e a inoperância político-social, mesmo que pela simples imitação reiterativa e espontânea.

Em outras palavras, é preciso encarar os movimentos reacionários e estar preparado para as represálias oriundas dos órgãos e instituições que dominam os pensamentos em massa. A emancipação dos seres somente ocorre para os que de alguma maneira opõe-se a toda forma de opressão e dominação política neoliberal, portanto; o processo de transformação emancipatória somente ocorre pela intencionalidade de natureza política que objetiva antes de tudo a liberdade para ser cidadão de direitos no mundo.

REFERÊNCIAS

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[1] Entrevista concedida por Psicóloga responsável pela supervisão psicológica do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 21 de maio de 2020.

[2] Entrevista concedida por Psicólogo colaborador do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 27 de maio de 2020.

[3] Entrevista concedida por Psicóloga responsável pela supervisão psicológica do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 21 de maio de 2020.

[4] Entrevista concedida por Médico Psiquiatra responsável pelo atendimento de pessoas transexuais, encaminhadas pelo CR LGBTQIA+ Campinas ao Sistema Único de Saúde para orientação de cirurgia intersexual numa Unidade Básica de Saúde de Campinas/SP, em 28 de maio de 2020.

[5] Entrevista concedida por Assistente Social responsável pela coordenação do CR LGBTQIA+ de Campinas/SP, em 26 de maio de 2020.



[i] DAMARIS ALCIDIA DA COSTA MELGACO. PEDAGOGA, PSICÓLOGA, ESPECIALIZADA EM DOCÊNCIA DO ENSINO SUPERIOR PELA FACULDADE EDUCAMAIS. PÓS-GRADUANDA EM POLÍTICAS DE INCLUSÃO (EDUCAMAIS).

 

[ii] O presente artigo é um recorte individual do Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) apresentado ao Instituto de Ciências Humanas da Universidade Paulista, São José do Rio Pardo, 2020, intitulado, A Importância da Atuação do Psicólogo como Agente de Transformação e Proteção da População Transgênero e teve como autores: ALVES, C. F. J.; MELGACO, D. A. C.; LEÃO, M. F. de S.; PASSONI, M. F. F. e EDUARDO, T. A., sob a orientação do professor Me. Marcio Ângelo Menardi. 113 f. O mesmo obteve nota máxima e foi apresentado, online, no V Encontro de Produção Científica do Curso de Psicologia da UNIP em 12 de novembro de 2020, sob a coordenação de sala do professor Dr. Paulo Benzoni.

Das introspecções de o ovo e a galinha em Clarice Lispector.

Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis Quem sou eu para desvendar tal mistério se nem mesmo Clarice desvendou, embora intuitivamente eu o sai...