quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

A ESCOLHA ENTRE O DIREITO DE VIVER E MORRER

Dâmaris Alcídia da Costa Melgaço *
 
FIGUEIREDO, Thaisa. Morre em SP jovem alvo de debate sobre eutanásia no Brasil em 2005. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/ribeirao-pretofranca/noticia/2017/02/morre-em-sp-jovem-alvo-de-debate-sobre-eutanasia-no-brasil -em-2005.html>. Acesso em 26 jul. 2017. 14:38. 

Dia 27/04/2017 (vinte e sete de abril de dois mil e dezessete) morreu na cidade de Franca, São Paulo, o jovem Jheck Brenner Oliveira, aos 16 anos de idade. Esse jovem ficou conhecido pela polêmica que envolveu seus pais e um pedido de eutanásia feito em 2005 (dois mil e cinco) em decorrência de uma doença degenerativa assim denominada: "Síndrome Metabólica Degenerativa". 

Em 31/08/2005 (trinta e um de agosto de dois mil e cinco) alegando estar "cansado de sofrer" e após ter conhecimento de que o quadro de saúde de seu filho de quatro anos era irreversível, Jeson de Oliveira, 35 anos na época, decidiu entrar na justiça pedindo autorização para eutanásia do filho. A justificativa foi: "Ninguém sabe o que passo. É um sofrimento que não tem fim. Sei que a eutanásia é proibida no Brasil, mas vou até o fim porque não agüento ver meu filho sem sorrir, brincar ou caminhar". De acordo com o advogado de Jeson, Diniz, a defesa da eutanásia na Justiça iria se basear no conceito de vida. "Valeria a pena viver com aparelhos assim? Queríamos uma definição do conceito de vida. Ele está ou não vivo? Essa era a tese". 

Em contrapartida sua mãe, Rosemara dos Santos Souza, com 22 anos na época, mostrou-se totalmente contrária a atitude do pai e declarou: "Eu sou a favor da vida. Meu filho pode perder um braço, uma perna. Pode ficar deformado. Eu nunca deixarei de estar ao lado dele". O resultado foi a separação do casal e uma disputa recheada de discussões sobre o direito ou não de desligar os aparelhos que mantinham Jheck vivo. A população se uniu pelo direito à vida e se disponibilizaram com ajuda financeira e pesquisas sobre a doença, com o objetivo de fazer com que seu pai desistisse da idéia de "eutanásia". Houve uma revolta popular e de grupos religiosos contra a ideia de Jeson, inclusive apoiado pelo bispo da época, dom Diógenes Silva Matthes. 

Iniciou-se uma "pressão" para que o pai desistisse de tentar obter a autorização judicial. Em 02/09/2005 (dois de setembro de dois mil e cinco) o médico Marco Aurélio Guimarães, 35 anos de idade, diretor do Centro de Medicina Legal e docente de bioética da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, defendeu o direito de Jeson em requerer judicialmente a morte do filho. Não que ele fosse a favor da "eutanásia", mas entende que o prolongamento da vida por aparelhos seria uma rebeldia contra a vontade de Deus: "A suspensão do esforço terapêutico é uma situação que não vejo com ressalvas. Se é a vontade de Deus que ele viva, ele viverá. Se não for a vontade de Deus, ele não viverá. Se ele morrer, essa não terá sido a vontade divina?". Outra idéia evocada nesse caso foi a possibilidade da "Ortotanásia" que se caracteriza pelo ato de cessar a utilização de recursos que prolonguem artificialmente a vida quando não há mais chances de recuperação.
 
No dia 07/09/2005 (sete de setembro de dois mil e cinco) Jeson desistiu do processo e afirmou: "Estou desistindo oficial e definitivamente. Quero dar chances à mãe e estou entregando meu filho a Deus", porém em 23/02/2006 (vinte e três de fevereiro de dois mil e seis) voltou a falar novamente na possibilidade de "eutanásia". Ao que tudo indica Jeson desistiu por "pressão psicológica", conforme percebemos em sua declaração na ocasião da desistência: "Como eu estou entrando com uma ação que é inédita no Brasil, as pessoas estão me massacrando, me criticando. Então isso ataca meu psicológico, estou abaladíssimo". 
Finalmente, após todas as polêmicas houve uma superação da crise e segundo Jhony, irmão de Jheck, o pai fazia constantes visitas ao filho e a mãe de Jheck dedicava a vida a cuidar do mesmo. Jhony afirmou acerca do pai: "Caso ele quisesse mesmo esse pedido de eutanásia, ele não estaria visitando o Jheck nos últimos anos. Ele tem muito amor pelo Jheck". Essa história reflete bem as complexas variáveis que envolvem casos de atuação do campo bioético, porque quando falamos de "vida" e "morte" adentramos no campo da subjetividade dos sujeitos e também na cultura e produção social/conceitual acerca da vida e do direito de viver ou morrer. 

Conforme Lolas (2001) são inúmeras as variáveis desse campo, desde a saúde reprodutiva, que envolve a fertilização in vitru (bebê de proveta, barriga de aluguel, etc.), até o tema da morte que abarca o transplante e a eutanásia assistida, consciente ou não, por decisão de familiares, etc. O surgimento da alocução bioética, de acordo com Lolas (2001, p.73) "causou um reordenamento de conhecimentos tradicionais em novas sínteses. Essas se caracterizam por centrar-se em dilemas humanos, não em rígidas fronteiras de especialidades".
 
A história de Jheck e sua família caracterizam-se, dessa forma, num dilema humano que envolve toda uma gama de emoções, sentimentos, medos, convicções e moralidade, além de princípios éticos. De um lado temos um pai que entende o sofrimento humano de seu filho e apega-se a esperança de reduzir esse sofrimento dando-lhe o descanso necessário, já que "não" há nenhuma expectativa de melhora ou cura. Do outro uma mãe que independentemente da situação entende o amor em expressão maior na manutenção da vida, pela convicção de uma cura milagrosa ou de luta até o último momento apegada ao fio da "esperança da longevidade". Ambos apegam-se à "esperança", porém com bases distintas. 

Como afirma Lolas (2001, p. 73) "são problemas humanos, provavelmente eternos, que adquirem uma nova face em virtude do progresso". Em outras palavras os problemas humanos sempre existiram porque a morte ainda é inevitável. A diferença está em quanto a ciência evoluiu e em quanto ela pode interferir na manutenção da vida. No caso de Jheck, aqui relatado, naturalmente a deficiência enzimática leválo-ia a morte iminente em curto espaço de tempo, porém com os avanços tecnológicos e aparelhos de última geração a manutenção da vida foi possível, tanto que o levou a viver doze anos "vegetativamente". Tanto é verdade essa realidade que, em depoimento; médico e especialista declararam em entrevistas a possibilidade do desligamento dos aparelhos evocando o conceito cultural religioso "Seja feita a vontade de Deus e não a nossa". 

Há, portanto dois vieses: manter em aparelho quem já está morto tecnicamente seria uma forma cruel de manutenção do sofrimento "versus" desligar os aparelhos seria caracterizada desistência e homicídio. A pergunta que se faz é: Até que ponto o homem pode ser responsabilizado pelo conhecimento que possui? Lolas (2001, p. 78) deixa-nos a pergunta: "[...] "quando" alguém está morto? ao cessar a respiração, ao parar o coração, quando o cérebro deixa de estar ativo?". 
O autor declara que a resposta a pergunta que ele faz vai depender dos meios técnicos de que aquela população ou sociedade se apropria naquele momento histórico, ou seja, qual conhecimento disponível, "cultura técnica e seus pressupostos", ela tem para intervir na vida ou na morte do homem. Segundo Lolas (2001) na alocução da ciência que estuda a relação entre os princípios morais e a pesquisa e a prática médica existem vários sensos que se juntam quando o assunto é morte, ou seja; a temática "morte" possui várias racionalidades nela mesma. O autor explica que de um lado temos o senso instrumental, a ação em si mesmo que tem um fim e que é pautada na idéia de que um fato vai acontecer e ponto. Do outro o senso da ciência que deseja compreender a ação humana sobre o fato e que tem conseqüências, ou seja, o que a atividade humana traz consigo? 

O autor inclui a ideia de Habermas sobre o senso da emancipação como uma força libertadora e motriz que tira a humanidade da servidão ignorante e injusta. Porque cada razão ou senso possui um fim objetivo instaura-se na visão de Lolas (2001) um debate que é um processo, ou seja; um debate que precisa desvendar as lutas de interesses que estão escondidas nessas razões ou sensos, por isso elas devem ser examinadas racionalmente. 
Verificamos na história de Jheck que essas razões ou racionalidades se manifestaram na cultura de várias pessoas, parentes, amigos, comunidade, líderes religiosos, médicos especialistas, etc. Todos eles apegados à sua razão. No discurso do pai a racionalidade instrumental se manifesta, pois ao verificar o fato e as informações da racionalidade instrumental e científica, aceita-os e decide por uma solução imediata e factível, a eutanásia. 

No seu discurso seria libertador para ele ver o filho morrer bem. Já a mãe, absorvida por uma consciência ético-emocional refuta totalmente tal ideia, entendendo que se a ciência tem o poder de pela racionalidade científica intervir nos processos da vida e da morte essa é a melhor escolha: a da manutenção da vida por uma reversibilidade esperada. No discurso dos especialistas vemos uma busca por soluções libertadoras e ao mesmo tempo científicas. Um misto entre a responsabilidade científica de uma ação que pode resultar em negligência e a "consciência emancipatória" da libertação do sofrimento injusto e prolongado. 
Nessa razão, então; morrer bem seria melhor que viver mal, já que a morte seria inevitável. O caso de Jheck é um dos muitos existentes no Brasil, onde ainda a eutanásia não é permitida. As implicações que absorvem as representações sociais brasileiras sobre a morte e a vida são muitas, até pelo berço católico-cristão que inegavelmente forjam a cultura geral desse país em sua maioria, num processo que é histórico, social e cultural. Para a razão cristã a "preservação da vida" é a priori. 
Toda ação que de alguma forma se opõe à vida é rejeitada, logo, é função do homem zelar por ela e se de alguma forma a racionalidade humana proporciona "salvar vidas" esses esforços quando negados caracterizam dano à vida tornando o homem responsável pela morte do outro, um homicida. Essa é a razão do bispo de Franca, dom Diógenes e de dona Rosemara. 

Como exemplo de que em matéria de vida e morte há mais surpresas do que podemos imaginar citamos que são muitos os casos que, ao contrário de Jheck, tiveram sucesso, reversibilidade e cura. Segundo Bassette (2007): Sarah Rampazzo, 25 anos, após ser atropelada e ter declarada a morte encefálica, reagiu e está plena e sem seqüelas. Érico Theodorovitz, 47 anos, que sofreu queda livre com 72 fraturas, algumas expostas nos braços, no fêmur e nos pés, órbita ocular deslocada e perda de praticamente todos os dentes recuperou-se e vive sem sequelas. Carlos Alberto Gomes da Silva, 49 anos, que teve rompimento da aorta, infecção pulmonar, choque séptico, insuficiência renal, cardíaca, pulmonar e neurológica recuperou-se milagrosamente e vive uma vida normal. Observamos então que esse debate temático sobre a vida e a morte é verdadeiramente um grave dilema bioético. 

Para Lolas (2001, p. 77): "Não é só o começo da vida que provoca dilemas bioéticos, mas também o seu fim. Ao examinar as origens - sempre graduais e imprecisas - de qualquer discurso científico, normalmente se observam as discrepâncias que o originam. [...]". Em sua introdução de reportagem à Revista Veja em 30/07/2016 (trinta de julho de dois mil e dezesseis), Bassette (2007) apresenta alguns discursos interessantes de pessoas da área da saúde sobre essa temática "vida e morte".

Episódios do tipo intrigam os especialistas e, não raro, viram objeto de estudo na comunidade científica. "É algo fundamental para aprimorar as terapias, mudando protocolos estabelecidos", diz o professor Milton de Arruda Martins, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Mas que fatores podem influenciar esses finais felizes improváveis? "A experiência dos médicos conta muito, pois as urgências demandam decisões precisas, tomadas em momentos de muita tensão", afirma Silvia Lage, diretora da Unidade de Terapia Intensiva Clínica do Instituto do Coração (Incor). O cardiologista Sergio Timerman, diretor do Centro de Treinamento do Incor, cita outros elementos importantes. "O apoio familiar e a fé atuam na parte psicológica e são pontos em comum de boa parte dos casos que conheci em 33 anos de carreira." Antônio Carlos Lopes, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), observa que o princípio de preservação da espécie é tão inato que aparece mesmo nos momentos de inconsciência dos pacientes. "Enquanto houver vida, sempre existe esperança", acredita. (BASSETTE, 2007). 

Ao analisarmos as frases desses especialistas e teóricos vemos que no campo da vida e da morte, a ciência cumpre um papel que é limitado e muitas vezes contraditório e impreciso. A ciência e sua razão não detêm a palavra final, mas podem determinar a morte precipitada de alguém. As razões dos discursos aqui expressados, é óbvio; advêm de uma formação cultural e até mesmo espiritualista. 
Palavras como "apoio familiar", "fé", "princípio de preservação", "inato", "esperança" são termos para tentar explicar a quebra do paradigma médico e as improbabilidades, ou seja, as contradições dos diagnósticos. Uma coisa é certa Jheck sobreviveu à eutanásia. Recebeu amor, carinho, e uma chuva calorosa de solidariedade. Se para nós humanos apenas a racionalidade é o caminho, entre uma decisão precisa sobre viver ou morrer, o que faremos com os sonhos, as esperanças, as lutas, os instintos inatos de dependência de sua própria raça e espécie e de sobrevivência? Extirpá-los também? Quem poderia saber se Jheck desejava morrer? Muito pequeno para decidir. Os pais podem decidir? Os médicos? Qual a escolha que possibilita a libertação? 

Vamos mais fundo: Havendo ciência capaz de detectar sua doença ainda no ventre num mapeamento genético, deveria Jheck nem ter o direito de nascer? Para muitos a humanidade estaria melhor sem Jheck, sem seu sorriso, sua infância aparentemente normal até a manifestação da síndrome. As preciosas lições de vida aprendidas sob a forma da abnegação e doação e que nos tornam humanos melhores nos seriam poupadas, afinal ao passo de uma ação e de um bisturi, desligamos a vida [...], e para "esses" nós podemos. 

REFERÊNCIAS: 

LOLAS, F. Bioética. O que é, Como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 
O Menino Jheck : Grande Lição de Vida ... Disponível em: <http://www.medicinaintensiva.com.br/jheck.htm>. Acesso em: 30 jul. 2017. 

TOLEDO, Marcelo. Pai vai pedir à Justiça a eutanásia do filho/Folha de S.Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112547.shtml> Acesso em 30 jul. 2017. 

MAGALHÃES, Katiucia. Mãe acampa em hospital e luta pelo filho. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112549.shtml>. Acesso em 30 jul. 2017. 

TOLEDO, Marcelo. Pai recebe apelos contra eutanásia do filho. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0109200501.htm>. Acesso em 30 jul. 2017. 

Médicos, OAB e igreja são contra eutanásia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112548.shtml>. Acesso em 30 jul. 2017. 

Médico defende fim do tratamento de Jhéck: Professor da USP apóia interrupção de terapia para garoto com doença degenerativa em Franca. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0209200521.htm>. Acesso em 30 jul. 2017. 

TOLEDO, Marcelo. Pai desiste de pedir a eutanásia do filho. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0709200501.htm>. Acesso em 30 jul. 2017. 

BASSETTE, Fernanda. Milagres: as histórias de pacientes que ficaram a um passo da morte: Desenganados, eles acabaram se recuperando a ponto de surpreender os especialistas e virar tema em congressos científicos. Disponível em: <http://vejasp.abril.com.br/cidades/historias-pacientes-desenganados - morte-capa/> Acesso em 07 Ago. 2017.

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