quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

“Do Holocausto Brasileiro ao CAPS: o que o psicólogo deve saber sobre a história da Reforma Psiquiátrica e da construção da Política de saúde mental no Brasil”



“Do Holocausto Brasileiro ao CAPS: o que o psicólogo deve saber sobre a história da Reforma Psiquiátrica e da construção da Política de saúde mental no Brasil” 



O tilintar do vagão, o som da buzina, apito das vozes mortas, ressoa na colina. Barbacena de montes, de curvas e de bonitas paisagens, no cantar dos vagões da vida permeia e ao apito do trem semente de dor semeia. Esse canto é como anúncio e prenúncio da morte em vida, ou; da vida em morte. Defina-se o que quiser, pois não há como esquecer o que a milhões de despercebidos passa no manobrar as massas. Massas são alvos que ainda perpetuam a dor. Dos loucos ainda guardamos um pouco. Afinal, a vida imita a arte e a arte a vida, nos trens da desesperança. Assim começa a raça na fileira da loucura. Loucos eram eles, mas loucos somos nós! Louco, ainda hoje te pedirão a sua alma, e o que tens preparado pra quem será?

Será para os milhões de flagelados, para a morte dos teus afilhados. Filhos de uma pátria sem mãe, sem gentil, sem berço, sem esplêndido. Assim Barbacena é o retrato da dor de milhões de bastardos marginalizados. Quem é o braço forte que se ergue em clava forte? Ouve a voz! A voz dos mártires desse terrível Holocausto!

A história remonta 1903 quando muitos foram trazidos de trens à Barbacena. Alguns ilustres, depois; mais tarde proletários rechaçados pela vida numa certa limpeza sanitária iludida. Pessoas mortas em vida, destituídas de humanidade. Essa barbárie durou até meados de 1980 computando 60 mil mortos “indignos”. 

Dos sobreviventes muito pouco. Dos relatos historiográficos somente a dor na voz de Luiz Alfredo: “Milhares de mulheres e homens sujos, de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas. (...) Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. [...]”(Arbex, 2013 apud Truffi, 2017).

Esse durante anos foi o retrato da saúde psiquiátrica no Brasil e no mundo. A começar em Pinel, embora tivesse boas intenções, com seus tratamentos disciplinadores com ênfase ao respeito às normas e também a um arrefecimento das más condutas, tratou o doente e não a doença. Impôs uma cultura da alienação, pois; apesar da gentileza, tirou os seres do lugar humano e social para isolá-los numa pseudo amorosidade.

Em Barbacena apenas o reflexo de nossas construções histórico culturais. Dessas representações falsas, desses estereótipos criados, transferidos e perpetuados na história oral de pai para filho. Elis Regina canta “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais!” (Belchior, 1976).

E ainda há quem tenha medo dos loucos!

A luta psiquiátrica no Brasil enquanto movimento pôde ser o braço forte dos loucos e a voz desses mártires. A loucura enquanto fenômeno sempre existiu. Desde os tempos mais remotos o louco era escarnecido e marginalizado. A loucura sempre foi uma afronta incoerente com o mundo idealizado. Essa história, da Renascença a Idade Média, baniu o louco do convívio social, a um caminhar errante e sem destino. Foi na Idade Média que os “loucos” começaram a ser “confinados em asilos e hospitais”. Os indesejáveis podiam ser “inválidos, portadores de doenças venéreas, mendigos e libertinos”. (Passos, 2017). É em Phillippe Pinel no século XVIII que a história de manicômio se inicia, história de adestramento social. 

Característico dos adeptos de determinadas ideias o que se seguiu foi o massacre de muitas pessoas em experimentos disciplinadores de “medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias”. (Passos, 2017). Não é a toa que no tilintar dos vagões a caminho de Barbacena a perpetuação da exclusão se desse. Sob a égide do modelo biomédico o Regime Militar mantinha no Brasil a ideia focal “doença no indivíduo”, cuja única cura era o tratamento. Aliado a isso perpetuava a ideia de higiene social e moralista como manutenção de imagem ilibada da família e a hegemonia das raças elitistas, ou seja, superiores e distintas.

Em Barbacena a dor da maioria negra confinada é relatada por Luiz Alfredo. Reflexo de uma cultura escravagista que libertou, mas manteve cativo. Segundo a historiadora Daniela Arbex o Hospital Psiquiátrico de Barbacena foi criado para “atender pessoas com deficiência mental, mas acabou sendo usado para colocar pessoas indesejadas socialmente, como gays, negros, prostitutas, alcoólatras”. (Arbex, 2013 apud Truffi, 2017). Perpetua-se a ideia da Idade Média daqueles “indesejáveis”. 

A esperança surge na voz de Franco Basaglia que em 1979 visitou o hospício com a intenção de tentar reverter o que ocorria no local e assim afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”. (Arbex, 2013 apud Truffi, 2017).

É em Franco Basaglia, na Itália, na segunda metade do século XX, que se inicia uma crítica profunda às ideias difundidas e perpetuadas até então. Essa “crítica radical” objetivava a “transformação do saber, do tratamento e das instituições psiquiátricas” (Passos, 2017). Era o grito que se fazia ouvir às margens da Sanidade.

A Luta Antimanicomial nasceu desse grito no grito de muitas vozes e no Brasil, em especial, essas vozes deram a luz uma luta marcada por uma radical defesa dos direitos humanos, e da apropriação da cidadania por aqueles que carregam a dor de serem rotulados como “doentes mentais”. 

A Reforma Psiquiátrica enquanto movimento começou em 1970 e veio marcada pelo espírito da denúncia às injustiças sociais. Meio profético isso. Os profetas loucos já denunciavam injustiças sociais em tempos bem remotos. 

O ato profético denunciava as violências ocorridas nas instituições e apontava soluções futuras como a “construção de uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias, profundamente solidárias, inclusivas e libertárias.” (Passos, 2017).

Esse ato profético e libertador resultou em mobilização de profissionais da saúde e de familiares das pessoas com condições mentais fragilizadas em direção a “redemocratização do país” e de suas políticas públicas e sociais (Passos, 2017).

Esse movimento resultou no fechamento de clínicas e hospitais psiquiátricos no Brasil. Entre eles a Clínica Anchieta em Santos/SP. Em 1989 “Paulo Delgado por meio do projeto de lei nº 3.657” para revisão legislativa “impulsiona a Reforma Psiquiátrica Brasileira.” (Passos, 2017). Segundo Daniela Arbex “As “atrocidades” no hospício de Barbacena só começaram a diminuir quando a reforma psiquiátrica ganhou fôlego em Minas Gerais, em 1979”. (Arbex, 2013 apud Truffi, 2017). 

A partir daí seguiram-se, em 1990, a Declaração de Caracas na Venezuela que propôs a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde e em 2001 a Lei Federal 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. 

É a partir dessa lei que a Política de Saúde Mental tem origem, objetivando garantir o cuidado ao paciente com transtorno mental em serviços que substituíssem os hospitais psiquiátricos, superando assim a lógica das internações de longa permanência que tratavam o paciente pelo isolamento e os destituíam do convívio familiar bem como da sociedade em geral.

Recentemente no Brasil, a Portaria nº 3.088 de 2011 instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) dando a ela suas características principais ou componentes principais assim subdivididos: Atenção Básica em Saúde, Atenção Psicossocial Especializada, Atenção de urgência e emergência, Atenção Residencial de caráter transitório, Atenção Hospitalar, Estratégias de desinstitucionalização e Reabilitação psicossocial.

O importante é lembrar que A RAPS é uma rede de atenção, ou seja, assim como metaforicamente no desenho de uma rede de pesca ela está entrelaçada a todos os campos que carecem de cuidado e de crédito para que nenhum peixe se perca. Essa rede é composta desde a atenção básica até a reabilitação social. 

Ora deve haver uma dialética coerente entre todas as estratégias sejam elas de prevenção e cuidado, tratamento e internação. O importante é manter a via da humanização, introduzindo o humano, independente do local seja UBS, Equipes de Atenção básica de Rua, NASF, Centros de Convivência, CAPS, Hospitais Gerais, Residenciais Terapêuticos, ou Clínicas de Reabilitação. 

Essa portaria resgatou o processo histórico da luta antimanicomial reforçando as diretrizes dos direitos humanos, combatendo os estigmas, e ampliando a participação social dos indivíduos acometidos por doença mental ou uso de entorpecentes.

Ela é muito importante porque proporciona para a pessoa com deficiência mental e para os usuários de drogadição a sua inclusão como melhor participação nos serviços de habilitação mental e social num caráter de sujeito de direito com acesso a moradia, aos direitos sociais, etc.

Dentro da Atenção Psicossocial Especializada encontramos hoje as unidades CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Essas por sua vez têm ocupado um espaço social bem importante nas comunidades municipais, pois atrelado a elas existe “muito carinho” pelo posicionamento histórico que ocupa. Sua história começa quando a Reforma Psiquiátrica ainda ocupava o seu lugar ao sol juntamente com os NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), em 1992, pela Portaria nº 224/92. Eles surgem como um procedimento do SIA/SUS em “unidades de saúde locais/regionalizadas a fim de oferecer atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, porém nesse começo não há menção a serviços substitutivos ou a uma mudança de modelo assistencial. Serviram, então, a priori, para ampliar a oferta de atendimento. (Luzio, 2010, p. 19).

Hoje, a CAPS não é apenas um território, mas um lugar para pessoas e culturas, ou seja, pretende ser um lugar de referência para a comunidade. Embora ainda existam fragilidades que podem ser melhoradas a CAPS é uma parte da rede de apoio e serviço especializado em um serviço estratégico para além dos muros da vida cotidiana estigmatizada. É um lugar que acolhe e reinsere proporcionando produção de novas culturas. Significa dizer que a dignidade humana é imprescindível, ou seja, é preciso visualizar a existência humana nas políticas públicas tendo a consciência de que a dor do outro nos toca e por isso desejamos dar a ele dignidade.

Piui! piuiii! Você pode ouvir? Eu ouço o ronco do trem dos esperançados, dos loucos dramáticos. Sou eu, é você, somos nós. “Você me pergunta pela minha paixão, digo que estou encantada como uma nova invenção. Eu vou ficar nesta cidade não vou voltar pro sertão, pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação. Eu sinto tudo na ferida viva do meu coração”. (Belchior, 1976).


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. 1. ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

‘Holocausto Brasileiro' documentário mostra barbárie em hospital psiquiátrico em Minas Gerais. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CVMGZqV2cP4, Acesso em 18 out. 2017.

Holocausto Brasileiro Manicômio de Barbacena. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=1xBQr5zFAHs, Acesso em 25 out 2017.

Intervenção na Casa de Saúde Anchieta. Santos – 1989. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=7J192djiUvg, Acesso em 25 out. 2017.

Saúde mental – Rede de Atenção Psicossocial. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=1D4YK-t3uYk, Acesso em 25 out 2017.

O que é o Caps? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oR4UkG6oLCo, Acesso em 25 out 2017.

O que é o CAPS AD? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7pP8VQgQaHk, Acesso em 25 out 2017.

Minuto do Concurseiro - Saúde Mental - Tipos de CAPS Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wCsS4qmp8h0, Acesso em 25 out 2017.

Minuto do Concurseiro - Saúde Mental - Modalidades de Assistência voltada para o CAPS. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vi_dYnTUvwU, Acesso em 25 out 2017.

Nasf. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a1M-X9_F_rU&app=desktop, Acesso em 01 nov 2017.

Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1ZF68O8Sa0s&app=desktop, Acesso em 01 nev 2017.

Atendimento NASF. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VAP1iRh2_JM, Acesso em 01 nov 2017.

Hospital Dia de Saúde Mental | Desmistificando a saúde mental. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yu_6pJljDUA, Acesso em 01 nov 2017.

Hospital Dia Psiquiátrico: Para quê e para quem? | Ueliton Pereira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a_SI2aRezOk, Acesso em 01 nov 2017.

Geração POA - Geração de Trabalho e Renda na Reabilitação Psicossocial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Hd8klx284uo, Acesso em 01 nov 2017.

Comunidade terapêutica de MT tem vagas para tratamento de dependentes químicos. Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso/bom-dia-mt/videos/v/comunidade-terapeutica-de-mt-tem-vagas-para-tratamento-de-dependentes-quimicos/4620103/, Acesso em 01 nov 2017.

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Luzio, Cristina Amélia, Yasui, Silvio. Desafios da política de saúde mental. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 1, p. 17-26, jan./mar. 2010.

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