JÚNIOR, W. C.; MORATO, H. T. P. Uma Prática Psicológica Inclusiva em Hospital Psiquiátrico: Do cuidado de ser ao Resgate de Cidadania. (In) MORATO, H. T. P.; BARRETO; C. L. B. T.; NUNES, A. P. (coord.). Aconselhamento psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma introdução. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009. Cap. XI, pp. 146-162.
Os autores expõem seu trabalho com mulheres acometidas por doença mental em um hospital psiquiátrico. Chamam atenção para a inexistência de um existir autêntico, apontando para além do isolamento dado nas quatro paredes, evidenciando a insustentabilidade do ser, agora excluído do mundo. Objetivam, portanto, resgatar a cidadania deste ser institucionalizado em uma prática psicológica inclusiva. Para tanto fazem um apanhado histórico da loucura no mundo e dos principais precursores de trabalhos voltados à temática, bem como a libertação da opressão social sobre os “pacientes psiquiátricos”.
Segundo Foucault (1987) na Idade Média a loucura era vista como uma visão ilusória mediante a vida. A relação com a loucura era pacífica, de senso comum. Apenas quando ameaçadoras recebiam atenção especial. A loucura podia ser manifesta e corrigida sem nenhum caráter excludente. A vida coletiva, sossegada e segura tinha como base a religião, crenças e valores de submissão total aos deuses que possuíam o domínio dos destinos.
O quadro começa a mudar no Renascentismo e com o advento do Iluminismo. Inicia-se o processo da exclusão. Os métodos de sustentação existencial foram perdendo seu poderio para o viver pacificado. Surgem inseguranças e falta de controle do destino. O homem é lançado na desesperança e desamparo existencial. O surgimento da racionalidade como única fonte capaz de reordenar o caos existencial surge com a modernidade. “[...] a razão oferece-se como único método possível para sustentação existencial [...] tal método não se mostra suficientemente coeso e eficaz [...] a modernidade criou um método de sustentação que se predispõe a excluir tudo que não é contemplado pela razão.” (p. 147).
A partir da segunda metade do século vinte, fatos históricos como Nazismo, Segunda Guerra, milagre econômico no pós-guerra, stalinismo levaram a sociedade refletir o homem moderno e as consequências do milagre tecnológico questionando os métodos racionais de sustentação existencial.
Em contraponto ao objetivismo que exclui o diferente e incerto, esta nova perspectiva defende que mente e corpo se unam e que a singularidade individual se apresenta de forma subjetiva na relação mundo real e incerto abrindo caminho para uma visão mais humanista da loucura. “Essa nova ótica admite o mundo real como naturalmente incongruente, indeterminado.” (p. 147).
Por abarcar o ser humano ambíguo o novo método abriu caminho de possibilidades de ação terapêutica inclusiva. Alguns destaques neste campo estão Conolly e a Laborterapia que tratava a doença em comunidade, Jones e Basaglia (1985) com a negação do institucionalizado para a liberdade já que o hospital psiquiátrico está para o sistema como forma de subjugar o doente adaptando-o às normas.
Os autores não coadunam com a radicalidade do autor em questão, mas acredita, assim como ele, que “[...] a manifestação da loucura é uma resposta do indivíduo ao sistema [...] Não podendo lidar com um contexto que é vivido como inóspito, a pessoa tende a desenvolver uma forma malsucedida de existir como solução.” (p. 148).
Defendem tornar a instituição como um espaço de curta permanência com atendimento de multiprofissionais que se proponham a facilitar o movimento de inclusão e possibilitar o resgate de um existir autêntico. Movimentar relações que beneficiem os internos equilibrando as relações de poder. Para Basaglia (1985) “[...] qualquer ação psicoterápica é barrada pela estrutura hospitalar, que tenta manter o sistema, ou pela estrutura humanista paternalista, que não acredita na possibilidade de escolha do interno.” (p.148).
Para Júnior e Morato (2009) embora o que aponta Basaglia (1985) seja verdade “[...] o hospital ainda mantém uma função necessária e específica na constelação de suportes assistenciais.” (p. 148). No momento do surto há desestabilidade do individuo e de toda a estrutura familiar. O hospital é e deve ser este espaço de acolhimento até que haja uma reorganização das atividades e sentimentos humanos que dela decorrem. A questão para os autores não é este curto espaço na instituição, mas o seu retorno a vida normal, porque há muito preconceito com o ser doente que o paralisa e estagna na existência real. Na maioria das vezes “[...] o hospital estaria se revelando um espaço pouco propício para que os pacientes psiquiátricos possam desenvolver suas potencialidades para gerenciar seus conflitos e levar adiante sua vida como indivíduos e cidadãos.” (p.149).
A manutenção de ideias que coisificam o ser e que se fixam na doença e não no indivíduo ampliam relações desfavoráveis e a justificativa de que uma relação mais humanista desqualificaria a institucionalização e a colocariam como frouxa não se sustentam. Não se está a negar os papeis dentro da instituição, mas está-se buscando uma relação horizontalizada permitindo que o usuário faça suas próprias escolhas e participe dos processos referentes à sua própria vida.
O louco aqui é colocado dentro das questões que envolvem ações excludentes, já que estes têm a sua existência tolhida nas suas possibilidades. Não é só uma questão social porque ele é resultado de complexas interações entre fatores externos e internos. Não sabendo lidar com a existência o divergente desenvolve um comportamento atípico. Havendo um desagregamento do existir surge diante de confrontos não solucionáveis.
É necessário compreender os modos de relação da pessoa consigo e com os outros já que os comportamentos divergentes resultam desta interação. Através da técnica de compreensão artística (matriz grega) é possível perceber peculiaridades. “Binswanger (1977), que compreende a doença como uma existência malograda, tais pessoas parecem manifestar um desconforto e um sofrimento em estar no mundo.” (p. 151).
O malogro da existência e o próprio isolar-se denuncia a falta de tato e ginga destas pessoas para lidar com as intempéries da vida, evidenciando uma carência de ferramentas de luta diária, “[...] pelo hospital, potencializa-se a possibilidade do resgate de aptidões perdidas e da construção de novas habilidades [...] Trata-se de evidenciar onde a pessoa se perdeu a si mesma no seu projeto existencial.” (p.151).
O trabalho dos autores propõe um lugar de resgate de autonomia e de novas possibilidades não só para o interno como para sua família. Criam-se oportunidades de retecimento da existência rompida na crise. O serviço de psicologia atua com grupos de atenção psicológica, atendimentos individualizados e plantões psicológicos.
Grupos de atenção psicológica: diariamente, até três vezes por semana, grupo aberto até 10 pessoas, horários compartilhados como usuário que toma as rédeas do comparecimento.
Atendimentos individuais: a pedido do usuário, conforme demanda. è no plantão ou nos grupos que os pedidos de atendimento individual se configuram.
Plantão Psicológico: curto espaço de tempo, resposta criativa, demandas emergentes, espaço aberto, ajuda psicológica, momento de crise ou dificuldades. Lugar central dentro da proposta interventiva, atendimento psicológico sem burocracia. Ultrapassa o objetivo terapêutico e viabiliza outros encaminhamentos multiprofissionais. Espaço que resgata o cuidado de si, a autonomia e a cidadania.
Minha experiência junto às pessoas institucionalizadas tem possibilitado compreender como o movimento de inclusão ao contexto social na verdade é um caminho de sucessivas aberturas a trilhas possíveis [...] Assim, a ação do psicólogo procura ir além do estreito campo do atendimento à pessoa internada, passando a buscar, também, mudanças no modo como a equipe do hospital se dirige ao interno. (pp. 154-155).
Arendt (2002) expõe que o sentido da vida vivida está em três atividades essenciais: Labor, Trabalho e Ação. O Labor é processo biológico cujo sentido é a manutenção da espécie. Já o trabalho é a forma como o homem exercita o processo criativo de objetos utilizando-se da matéria-prima natural e compartilhando-o a outros de sua espécie. Ao ser lançado no mundo o homem transforma o mundo e a natureza. A Ação é única em seu processo porque nela o homem atua diretamente sobre a natureza não necessitando de mediação material. É uma condição plural e coletiva sendo fundante da polis e da política.
No campo da Ação, são as palavras e os atos que nos inserem no mundo humano. A condição fundante do homem diz respeito a agir; e as palavras são o que gera a distinção (diferença entre os homens) [...] O resgate da cidadania do divergente, agora compreendida como habitar um espaço político na acepção grega do termo, inaugura-se através da recuperação dos atos e das falas. [...] O cuidado de si torna-se fundamental para um compromisso, pessoal e intransferível, no sentido de cuidar de ser. Ou seja, a partir do cuidar de si, o homem é convocado no agir, como projeção para seu destino, a abrir possibilidades de ser que permitam um estar possível e próprio no mundo com outros. E por esse dirigir-se que se desvelam as possibilidades de inclusão (pp. 156-157).
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