sábado, 12 de dezembro de 2020

REFLEXÕES A PARTIR DE ATIVIDADE PRÁTICA NA INSTITUIÇÃO ESPECIALIZADA RESIDÊNCIA TERAPÊUTICA

 

Resumo

Este estudo objetivou a preparação para o trabalho produtivo do educando, sem criar vínculo empregatício de qualquer natureza, propor possibilidades psicoterapêuticas em Psicologia, de acordo com a ética profissional, bem como; compreender as possibilidades e limites de atuação clínica do psicólogo em equipes multidisciplinares e realizar projeto de Oficinas Terapêuticas com os usuários dos serviços de saúde mental e familiares. A intervenção, conduzida por acadêmicos do 8º semestre de Psicologia, teve como público-alvo os moradores de uma Residência Terapêutica, localizada em um município do sudoeste brasileiro. Trata-se de um estudo qualitativo com uso de observação participante. Os resultados apontaram para dificuldades biopsicossociais e organizacionais. Concluiu-se que as intervenções foram eficazes ao movimentarem reflexões sobre a ação multiprofissional no cuidado de pessoas com comprometimento mental.

Palavras-chave: Saúde Mental. Cuidado Humanizado. Residência Terapêutica.

Introdução

Os moradores em Residência Terapêutica (RT) devido às condições psicopatológicas que geralmente abalam sua interação social, bem como relações afetivo-familiares e comunitárias acabam por encontrar-se em situações de abandono parental, bem como em ambiente restritivo. Isto gera aliado aos efeitos colaterais de medicações e efeitos próprios da doença uma diminuição da interação sociocognitiva.

A presença de estagiários nas RT’s torna-se imprescindível para uma retomada da interação humana afetiva própria dos indivíduos. “O conhecimento da teoria psicanalítica permite que a equipe responda em um nível de desenvolvimento apropriado, aceitando a noção de que o paciente é uma criança no corpo de um adulto. Essa perspectiva ajuda a equipe a evitar os perigos da despersonificação[1] . . .” (Gabbard, 2016, p. 156).

Estas interações pretendem retomar vínculos, bem como estimular aprendizado, já que estudos apontam para correlação entre: a vida funcional social, ocupacional e executiva e memória declarativa, memória operacional e vigilância, bem como capacidade de execução para uma vida independente. Sabe-se que “Muitos pacientes com esquizofrenia apresentam prejuízos cognitivos significativos, especialmente em relação à memória, à atenção e ao funcionamento executivo.” (Monteiro & Louzã, 2007, p. 179).

O Acompanhamento Terapêutico (AT) se caracteriza como uma intervenção em saúde mental baseada em cuidados domiciliares, facilitando um retorno a condições existenciais perdidas e, por conseguinte, ambicionadas. Importante pensar que o AT possui como traços uma intervenção em saúde mental que se preocupa e se norteia com os cuidados em domicílio já que isto facilita uma volta às raízes da existência que se perderam, mas que são desejadas. A compreensão dos limites por parte dos AT’s é fundamental para o exercício do cuidado, já que o AT atua como aquele que dá limites à desordem do imaginário, servindo como âncora da realidade, reatando os laços sociais quando a ordem simbólica se restaura (Neto & Amarante, 2013; Londero & Pacheco, 2006).

O cuidado mais individualizado possibilita reconstrução de algumas questões que são importantes para a vida social dos indivíduos. Fica, portanto, evidente que outras maneiras de assistir e inserir pessoas com psicoses foge de um círculo viciante que se utiliza da reclusão em asilos e hospitais psiquiátricos. A comunicação é essencial para que o trabalho em equipe ocorra de forma satisfatória porque é nesta interação que informações são dialogadas e problematizadas o que culmina no estabelecimento de acordos sobre as melhores formas de cuidar dos pacientes (Neto & Amarante, 2013; Suguyama, Buzzo & Oliveira, 2016).

A manutenção de contato compreensivo sobre as ideias desestruturalistas da pessoa com transtorno mental com eminência de fim ou apocalíptica é muito relevante, já que se compreende que é própria da esquizofrenia a existência de uma sensação intuitiva de destruição personalística, ou de desconhecimento de suas sensações estranhas sendo muito corriqueira a ideação de que calamidades iminentes estão para acontecer (Dalgalarrondo, 2000).

Além dos comprometimentos orgânicos oriundos das medicações e da própria doença já estabelecida, pessoas com transtorno mental também acarretam em si fatores característicos do envelhecimento, sendo papel dos municípios e das políticas públicas de saúde o direcionamento e enfrentamento das incapacidades funcionais característicos à idade. “[...] o que significa a ampliação da família da saúde, pela incorporação das práticas de fisioterapia na atenção primária” (Aciole & Batista, 2013, p. 11).

Ajudar pessoas com transtorno mental a tomar consciência de suas emoções e controle das mesmas é tarefa do profissional psicólogo. Estar atento para esta necessidade auxilia no direcionamento de processo educativo como o controle da raiva, inveja, medo, entre outras que provocam emoções secundárias. Logo, “Tomar consciência das emoções nos ajuda a entender o que as pessoas querem dizer e nos direcionam para a melhor forma de lidar com aquilo.” (G1, 2017).  

Quando se fala de emoções não se pode excluir o profissional de saúde, pois o exercício desta profissão pode ser bem estressante. As condições emocionais e psicológicas dos profissionais não podem ser assim ignoradas. Numa abordagem centrada no indivíduo é preciso levar em conta todas as pessoas envolvidas no processo. A crítica sempre deve perpassar as condições holísticas e integrais do social, político, afetivo e psicológico, pois seres humanos são potencialmente capazes de atualização (Chalom et. al, 1999).

Metodologia

O presente estudo se caracteriza como uma pesquisa qualitativa e quanto aos procedimentos, diz respeito a uma pesquisa de campo com observação participante que se caracteriza pela participação ativa do pesquisador na vida do grupo ou na situação observada. Com essa técnica, o pesquisador adquire um conhecimento sobre o grupo a partir de sua integração a ele (Gil, 2006). Um procedimento importante para a coleta de dados deste estudo foi a observação que se caracteriza pela presença constante do pesquisador e percepção deste sem a intermediação de outros. Ou seja, os fatos ou fenômenos são diretamente percebidos e registrados nos diários de campo. Por meio de intervenções em oficinas terapêuticas e dinâmicas de interação, discorreu sobre temas relevantes para a articulação entre Psicologia, saúde, sociedade e direitos humanos. As intervenções em saúde mental obedeceram aos critérios éticos estabelecidos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510, de 07 de abril de 2016.

Resultados e Discussões

Moradores de residências terapêuticas possuem em sua maioria dificuldades cognitivas e sociais, bem como baixa-estima e organicidade afetada por efeitos colaterais medicamentosos e próprios da doença. As intervenções ocorreram semanalmente às segundas-feiras com moradores em RT, com faixa etária entre 30-70 anos. A média de participação ficou entre 50% da amostra, em média cinco moradores participaram regularmente das atividades interventivas em oficina terapêutica. Abaixo são apresentados quadros com conteúdos levantados nos diários de campo.

 

Quadro 1.

Datas e horários referentes às práticas de intervenção em oficina terapêutica na residência terapêutica

Cronograma das Atividades Interventivas em Oficinas Terapêuticas

Práticas

Desenvolvidas

Datas/Horários

Dia

Início

Término

Confecção de Massinha de Modelar

26/08/2019

15h

17h30

Confecção de Cartelas de Bingo e Jogo

02/09/2019

15h

17h30

Confecção de Jogos de Memória e Jogo

09/09/2019

15h

17h30

Colagem com Papel Crepom

16/09/2019

15h

17h30

Confecção de Porta Retratos com palitos

23/09/2019

15h

17h30

Alfabetização e letramento

30/09/2019

15h

17h30

Confecção de Boneco Sensorial c/ bexiga

07/10/2019

15h

17h30

Dinâmica em Saúde Mental/Confecção de jogo: Batalha das Cartas

14/10/2019

15h

17h30

Arte e Terapia: Patchwork e Fuxico

21/10/2019

15h

17h30

Recorte e Colagem

28/10/2019

15h

17h30

Confraternização

04/11/2019

15h

17h30

Nota. O cronograma de datas e horários, bem como de conteúdos interventivos em oficina terapêutica seguiu orientações acadêmicas em parceria com a Prefeitura Municipal e a Universidade Paulista no segundo semestre letivo de 2019.

 

Observou-se de forma geral que os moradores da residência terapêutica possuem características próprias e histórico particular de vida, bem como de saúde e doença. Portanto, suas reações e participações levaram em conta esta subjetividade peculiar a cada um em específico.

As atividades desenvolvidas durante as onze semanas objetivaram interação e convivência social, comunicar medos, expectativas, afetos, sonhos, cooperação, compreensão de medidas, comparar números e relacioná-los em maior/menor, apropriar-se das regras de jogo, espírito de jogo, identificar barreiras físicas, coordenação psicomotora fina e grossa, autoestima, criatividade, lazer, relaxamento, noção espacial, quantidade e números (0-90), sequência, atenção, memória episódica, concentração, criatividade, estimulação tátil, percepção visual (cores, formas, tamanho e peso), manejo de materiais artes, brincadeiras, movimento de pinça, estética, traçado de moldes, riscado em tecido, recorte, preparação das partes, fechamento, pertencimento, atitudes, valores, leitura de imagens, estética, imaginação, vocabulário, escrita e nome próprio.

De forma geral a participação das oficinas terapêuticas foi produtiva levando-se em conta as limitações orgânicas próprias das pessoas inclusas na RT-8. Foram ativos no processo quatro moradores. Os outros seis intervieram a seu tempo, ora com entusiasmo, ora com restrições físicas, ora com indisponibilidade. Os comportamentos mais evidentes foram: oposicionismo, dificuldades de interação social, doença orgânica, complicações da doença, surtos e crises, alternância de humor e ausência vincular. Percebeu-se que apesar de as pessoas com esquizofrenia e desorganização mental estarem inclusos nas RT’s, ainda faltam olhares mais apurados e desvelados sobre os estigmas que encobrem as pessoas com esquizofrenia. Durante as intervenções verificaram-se algumas práticas consideradas abusivas, como instabilidade emocional da casa, ataques de estresse e posicionamentos reativos. Alguns residentes estavam sob efeito de remédios fortes e impossibilitados de comunicação, outros em crise, outros desanimados. No decorrer das visitas e intervenções verificaram-se modificações na dinâmica da casa. Houve melhoras significativas.

As observações referentes às relações entre cuidadores e residentes, bem como equipe multiprofissional implicaram numa imersão das condições prévias exigidas para tal, pois durante as observações semanais e contatos diretos e indiretos na observação das dinâmicas relacionais houve inquietação. Observou-se uma rotatividade de pessoas, pois geralmente os cuidadores são diferentes. Geralmente, há medidas de contenção que se utiliza de formas verbais mais diretivas, o que é apropriado já que o AT também atua como um superego. No entanto, algumas atitudes foram incômodas já que implicaram em deboche, impaciência e desrespeito.

Outra questão observada foi a indisponibilidade de estar presente e atento a quem mais necessita, então; tombos e acidentes graves ocorreram com frequência. Notou-se que amarrar ou conter na cama ou cadeira com faixas parece ser mais cômodo. Os cuidadores se ausentam, saem para fumar, ficam no telefone celular, etc. Entende-se que a demanda é grande e o número de cuidadores é pequeno, porém muitos na casa (em sua maioria) estão autônomos em suas funções básicas, o que proporciona um maior acompanhamento àqueles impossibilitados das mesmas. A crítica não é em relação às demandas e precariedades notórias, mas ao entendimento ético de que todas as pessoas precisam ser respeitadas no seu direito de existir e que para atuar nesta área é preciso disponibilidade interna de assistência, empatia e vínculo.

Observou-se como a atenção e escuta das problemáticas que envolvem as relações nas RT’s são necessárias. O momento da ludicidade não foi descartado, nem ao menos os jogos em dinâmica e apesar das dificuldades na realização foi possível que as mesmas ocorressem com as devidas mediações. Da mesma forma os jogos interativos foram excelentes porque resgataram a interatividade entre pares, já que não se joga sozinho. A presença do outro foi essencial para o resgate de vínculos. Foi difícil ver expressões de afetos entre os residentes, mas não foi impossível. A busca por uma maior interatividade não só com residentes, mas com toda a equipe multiprofissional foi muito importante e necessária.

O conhecimento das condições de saúde física desta população é importante [o que é observado existir na RT], porém observou-se que é preciso conhecer os aspectos alterados desta população que decorrem da idade para, a partir deste conhecimento, atuar efetivamente na prevenção dos riscos que esta condição impõe. Observou-se que a incapacidade funcional é um destes riscos na população interna na RT [maioria de idosos]. Logo, atentar-se para o fato de que é deles o direito de participarem de atividades de lazer, recreação e próprias de prevenção em saúde, como fisioterapia e hidroginástica, etc. é imprescindível e esta não ocorre na RT.

Considerações Finais

            Considera-se que a intervenção foi importante. Foi possível constatar que no cotidiano destes indivíduos existem tanto expressões de afetividade negativas como positivas e que trabalhar com elas é fundamental para a formação dos futuros profissionais da psicologia que possivelmente estarão envolvidos na reabilitação de pessoas. Por esta razão compreende-se que as intervenções devem estar pautadas naquilo que ocorre em tempo real e nas emoções que afetam os indivíduos promovendo possibilidades de reavaliação e readaptação do que se tem estudado e praticado no passado para inovação do presente, objetivando um único fim que é a promoção do bem estar social destes cidadãos.

Como equipe, refletiu-se que alguns posicionamentos impregnados na ação comportamental de cuidadores em geral levam a práticas desumanas apreendidas na cultura da exclusão e da ótica manicomial. Verifica-se que como equipe não podemos coadunar com as mesmas lógicas. Não são somente os pacientes psiquiátricos que não conseguem descrever suas próprias emoções, mas todos os indivíduos humanos. Por esta razão acredita-se que é preciso prestar atenção nas emoções e valorizar cada porção mínima dela, pois esta é uma maneira de compreender a si mesmo e educar-se para viver de uma forma mais plena.

Analisando estas premissas e as ocorrências interacionais, bem como as dinâmicas que aconteceram nas RT’s verificou-se que as pessoas com esquizofrenia são indivíduos que devem ser entendidos em sua integralidade, pois sentem falta da família e do convívio familiar. Os momentos ali vividos com os estagiários restabeleceram de alguma forma estes vínculos, pois os mesmos esperavam ansiosos os retornos da equipe. De alguma forma resgatou-se a autonomia, já que eles puderam decidir participar ou não dos processos interacionais com respeito a sua subjetividade.

Concluiu-se que o trabalho nas residências terapêuticas envolvem muitas variáveis relacionadas à constituição psicoemocional de todos os envolvidos no processo de adoecimento. Se os residentes sofrem pela sua condição orgânica que trás como consequência abandono familiar, desvinculação social, isolamento, fragilidades egoicas e fisiológicas, também os envolvidos no cuidado destas pessoas possuem em suas humanidades restrições psicoemocionais que de alguma forma afeta sua atuação profissional. Algum destes fatores pode ser a falta de preparo para a lida com pacientes desorganizados mentalmente, estresse laboral, condições precárias de trabalho, ausência de auxílio psicológico, pois para além do profissional existe um ser humano necessitado de acolhimento e escuta. Por que não dizer! Tão necessitado de ajuda quanto os que dele dependem.

Referências

Aciole, G. G. & Batista, L. H. (jan./mar. 2013). Promoção da saúde e prevenção de incapacidades funcionais dos idosos na estratégia de saúde da família: a contribuição da fisioterapia. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, 37(96), p. 10-19.

Chalom, M. et al. (1999). A experiência de implantação de um serviço de plantão psicológico no Projeto esporte-Talento por alunos de graduação do IPUSP (p. 177-185). Em Morato, H. T. P. (Org.) Aconselhamento Psicológico centrado na pessoa, São Paulo: Casa do Psicólogo.

Dalgalarrondo, P. (2000) Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artes Médicas. Cap. 29, 201-204.

G1 (dez. 2017). Bem Estar explica a relação entre os sentimentos e a saúde física e mental. Recuperado de https://g1.globo.com/bemestar/noticia/bem-estar-explica-a-relacao-entre-os-sentimentos-e-a-saude-fisica-e-mental.ghtml.

Gabbard, G. O. (2016). Psiquiatria Psicodinâmica na prática clínica. 5 ed. Porto Alegre: Artmed.

Gil, A.C. (2006). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas.

Londero, I. & Pacheco, J. T. B. (mai./ago. 2006).  Por que encaminhar ao acompanhante terapêutico? Uma discussão considerando a perspectiva de psicólogos e psiquiatras. Psicologia em Estudo, Maringá, 11(2), 259-267. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n2/v11n2a03.pdf.

Monteiro, L. C. & Louzã, M. R. (2007). Alterações cognitivas na esquizofrenia: consequências funcionais e abordagens terapêuticas. Rev. Psiq. Clín. 34(2), 179-183. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/rpc/v34s2/a06v34s2.pdf.

Neto & Amarante (2013). O Acompanhamento Terapêutico como Estratégia de Cuidado na Atenção Psicossocial. Revista Ciência e Profissão, 33 (4), 964-975. Doi 10.1590/S1414-98932013000400014.

Suguyama, P., Buzzo, L. S. & Oliveira, M. L. F. (2016, jan./abr.). Desvelando a vivência da equipe multiprofissional no cuidar do paciente esquizofrênico. Revista Saúde e Pesquisa, v. 9(1), pp. 65-71. Doi 10.177651 / 1983-1870.2016v9n1p65-71.



[1] . . . se espera que o paciente se comporte como um adulto maduro e educado, apesar de sua grave patologia.” (Gabbard, 2016, p. 156).

 

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